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Pensar no feminismo no Brasil nos remonta a dois momentos históricos distintos: o primeiro, nas décadas de 1920 e 1930, com as sufragistas; o segundo, nas décadas de 1970 e 1980. Porém, é preciso ressaltar que essas são narrativas hegemônicas que desconsideram diversas outras mulheres, organizadas ou não, que estavam questionando seus lugares na sociedade em outros espaços.

O voto feminino, conquistado no país em 1932, tinha como defensoras as mulheres organizadas na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), com destaque para a cientista Bertha Lutz. Ainda que seja importante salientar que essas mulheres eram brancas, oriundas de uma elite intelectual e política e, portanto, não representavam a maioria das brasileiras, elas se organizaram e lutaram dentro de seus espaços e conforme as condições que tinham para desafiar o Estado.

As mulheres desse momento histórico, inscritas nesse contexto, lutavam pela emancipação econômica e educacional, pois acreditavam que somente a educação formal e um emprego assalariado lhes dariam dignidade. Essas mulheres bem articuladas internacionalmente - uma vez que o movimento sufragista corria toda a Europa e Estados Unidos, e tendo Bertha Lutz se educado em Paris – e com alianças com políticos que estavam

no poder, não questionavam valores como a família e a maternidade. Porém, de acordo com Besse (1999, p. 190):

Bertha Lutz estava convicta de que o feminismo deveria ser entendido como algo mais do que um movimento reformista pacífico que surgia naturalmente no momento histórico em que a produção doméstica se transferia para o mercado; era também um movimento que visava a uma “revolução permanente” nos costumes, hábitos e leis.

O feminismo das sufragistas não questionava a naturalização de certas atribuições femininas, como o cuidado do lar e das crianças, reforçando os papéis de esposa e mãe. O divórcio foi assunto sobre o qual se esquivaram de emitir opinião (BESSE, 1999) e o aborto nem sequer era objeto de discussão. Falamos apenas em aborto, pois a construção dos Direitos Sexuais e Reprodutivos é algo alheio à realidade destas mulheres, visto que é algo recente na história dos Direitos Humanos.

Importante também ressaltar que as demandas da FBPF não encontravam eco entre as mulheres pobres e negras, pois estas sempre trabalharam. As mulheres operárias também tinham outras demandas sobre o trabalho, diferentemente daquelas apontadas pela FBPF e, assim como as empregadas domésticas, não estavam associadas à entidade.

Há um hiato na história sobre a organização das mulheres feministas entre os anos de 1940 até 1970. Enquanto a França estava vivendo o Maio de 68, no Brasil a realidade era de uma ditadura militar repressiva. Aquelas mulheres que romperam com os valores tradicionais da sociedade estavam nas organizações lutando pelo retorno da democracia e o fim do Golpe Militar.

Não é possível traçar uma narrativa linear do percurso do feminismo no Brasil. Diversas lutas, formas de organização, atores sociais, avanços e recuos formaram o que tentamos estabelecer como uma história única. Enquanto as mulheres das camadas médias, que contavam com empregadas domésticas, podiam questionar seu papel na sociedade, buscar satisfação pessoal fora do lar para outras milhões de mulheres pobres não era uma escolha, e sim o único caminho a ser seguido. Enquanto temos mais visibilidade das lutas das trabalhadoras urbanas, as rurais também estavam organizadas.

A presença das empregadas domésticas nas casas brasileiras permitiu que as mulheres das camadas médias pudessem escolher suas profissões e se organizar politicamente já nas décadas de 1960 e 1970. Sarti (1988) chama a atenção para as diferenças de raça e classe que marca a relação entre patroas e empregadas, pois enquanto as primeiras tinham no trabalho remunerado uma escolha e realização pessoal, isso não era possível para as

trabalhadoras domésticas. “Escolher e cumprir a sina são representações que traduzem as diferenças estruturais de classe” (SARTI, 1988, p. 39).

A situação das mulheres negras que não encontravam no feminismo um lugar de identificação é tratada por Hooks (2004). Ainda que num contexto estadunidense, a autora mostra a partir de sua própria experiência que aquilo pelo qual ansiavam as mulheres brancas não tinha sentido para as negras, que há muito estavam trabalhando.

Os problemas e dilemas específicos da classe das ociosas donas de casa brancas eram problemas reais que mereciam atenção e transformação, porém não eram os problemas políticos urgentesde uma grande quantidade de mulheres. Muitas delas viviam preocupadas com a sobreviv^ncia econômica, a discriminação racial e étnica, etc” (HOOKS, 2004, p. 34, tradução nossa). Butler (2003) argumenta que mesmo com algumas mudanças no horizonte do pensamento feminista, incluir outros eixos de opressão como raça, etnia e classe, ainda é algo difícil de ser superado. A insistência de feministas brancas no argumento de que todas as mulheres são iguais e que sofrem da mesma maneira a opressão machista é típico da invisibilidade que se dá às mulheres negras e de classes populares – pois, como bem lembra Hooks (2004), a luta de classes é inseparável da luta para acabar com o racismo.

É na década de 1970 que vão surgir os primeiros grupos feministas no Brasil, localizados principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nesse momento, as mulheres estavam à frente de várias demandas não só de caráter feminista, daí a nomeação de “movimentos de mulheres”. Importante salientar que há uma diferença entre movimentos feministas e movimentos de mulheres. Nem todas as mulheres que atuavam em outros movimentos sociais, como os de bairro, por exemplo, se identificavam como feministas.

Assumir-se como feminista não era – e não é – tarefa fácil para aquelas mulheres. Muitas militavam em partidos de esquerda e eram acusadas pelos companheiros de estarem desvirtuando a luta de classes. As questões feministas eram consideradas de segunda ordem. Goldberg (1989) denuncia que havia um silenciamento das mulheres na esquerda sobre processos machistas na militância em nome de "um bem maior". Aquelas que na década de 1960 rejeitavam os valores vigentes do casamento e da moral não tinham o mesmo posicionamento dentro das organizações de que faziam parte.

O retorno ao país das mulheres exiladas marca profundamente o feminismo brasileiro, repercutindo tanto na vida pessoal das mulheres quanto no projeto político feminista. Sobre isso, Menicucci (2005, p. 132) comenta:

As feministas brasileiras nosotras, ex-exiladas, ex-presas políticas, viajantes trouxeram, no final da década de 1970 e no início de 1980, essa questão dos direitos humanos das mulheres com muita força e muita radicalidade para as

mobilizações. Radicalidade que está associada à luta pelo direito ao aborto, na medida em que essa questão relaciona-se à noção mais forte, mais reacionária, mais conservadora da maternidade compulsória, que é a base moral judaico-cristã. Nesse raciocínio, a questão do aborto é uma questão de direitos humanos para as mulheres.

Embora compreendamos a impossibilidade de tratar o feminismo brasileiro como um espaço homogêneo, sem disputas, consideramos que o direito ao aborto legal e seguro, bem como a luta contra a violência doméstica e sexual, são pautas que unem as diversas expressões do feminismo.

Corrêa; Januzzi; Alves, 2006, p. 6) apontam que o movimento feminista tem na garantia dos direitos reprodutivos das mulheres um de seus pilares:

O movimento feminista sempre colocou como ponto fundamental a luta pela autonomia, o que implica em um projeto de existência abarcando as diversas esferas da vida, especialmente nos campos da sexualidade e da reprodução. O direito de escolha e a liberdade de decisão nos assuntos sexuais e reprodutivos são pontos centrais que orientam as ações e demandas do movimento feminista no Brasil e no mundo. Assim, toma relevância as questões relativas à saúde integral da mulher e à saúde sexual e reprodutiva, incluindo o acesso à contracepção e ao aborto seguro. Historicamente, as reivindicações pelos direitos sexuais e reprodutivos têm funcionado como um catalisador para a ampliação de outros direitos.

Os dois exemplos são marcas da conhecida ideia de que o “pessoal é político”, que buscou evidenciar que a opressão não estava só do lado de fora da casa, mas também muito presente no âmbito privado. Nas discussões acerca da legalização do aborto tanto no Brasil quanto na América Latina, sua defesa esteve muitas vezes associada à saúde pública. Porém, as feministas defendem a legalização como um direito humano. Desde a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo (1994) e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher de Beijing (1995) definiram-se os Direitos Sexuais e Reprodutivos como Direitos Humanos e que devem ser assegurados pelos Estados signatários, entre eles, o Brasil.

A Conferência do Cairo abriu novas perspectivas quanto aos direitos humanos das mulheres. Pela primeira vez, no capítulo VIII “o aborto inseguro é reconhecido como um grave problema de saúde pública. Afirma-se que as mulheres devem ter acesso a serviços para tratar as complicações decorrentes do aborto inseguro” (CORRÊA, JANUZZI; ALVES, p.10). Já a Conferência de Pequim recomenda aos países signatários, do qual o Brasil faz parte, que revisem as leis que punem as mulheres que recorram à interrupção voluntária da gravidez.

Os direitos sexuais e reprodutivos são conceitos recentes que se inserem dentro do conjunto dos Direitos Humanos. Os documentos finais da Conferência do Cairo em 1994 e da

IV Conferência de Pequim no ano seguinte foram os primeiros passos no sentido de tratar o assunto da saúde sexual e reprodutiva das mulheres no campo dos direitos. Embora os planos de ação de ambas sejam documentos importantes que baseiam as leis dos Estados signatários, elas não têm força de convenções ou tratados internacionais o que não obriga a alteração da legislação dos Estados.

Mello (2005) aponta que no mesmo ano da Conferência de Pequim, em 1995, foi apresentada uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) pelo deputado pernambucano Severino Cavalcanti, que incluía o direito à vida desde a concepção e que acabou sendo derrotada. Caso fosse aprovada, a proposta restringiria o debate no aborto do país.