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3. EXPERIÊNCIA DA FESTA, EXPERIÊNCIA DA MEMÓRIA

3.1. A festa e as narrativas

A festa pode ser definida como um evento coletivo marcado pela ruptura do cotidiano que alça a experiência num tempo extraordinário e de exaltação coletiva. “Cada um longe de si” (p. 149). Segundo Roger Caillois, as festas opõem, em relação aos dias de trabalho, a concentração da sociedade a sua dispersão, formulando, destarte, um contraste entre explosão e continuidade, frenesi e repetição, efervescência e calma. Festa e cotidiano constituem-se, assim, em situações antitéticas uma vez que propõem uma dinâmica pautada pela contraposição entre um tempo forte e fases átonas na existência de uma comunidade (CAILLOIS, 1988, p. 98).

Esse evento coletivo, nesse sentido, com todas ações que o compõem, é uma experiência diversa que tonifica – seja através da bebida, dos cantos, da movimentação e da energia despendida em seu curso – o espaço concreto, os corpos e o cenário da natureza circundante. Não seria demais pensar, pois, numa fisiologia da memória relacionada à festa. Uma tal idéia sugerem as análises do sociólogo francês Émile Durkheim acerca dos rituais das tribos australianas. Dir-se-ia que, no decurso dos rituais, não só os homens têm sua corporeidade transformada, senão que todo o caminho concretamente percorrido é metamorfoseado pela ação coletiva, tornando-se, por assim dizer, um hino à memória coletiva (DURKHEIM, 2003, p. 224-225).

O caráter extraordinário dos dias de festa será, como vimos, sentido pelo protagonista de Uma estória de Amor, o vaqueiro Manuelzão. Em diversas ocasiões, seus pensamentos explicitam-no: “Agora, o que se estabelecia era a festa. Uma festa terrível. Até para fazer festa a gente carece de estar acostumado” (p. 140). A tônica do tempo da festa é

a celebração, a doação e o envolvimento na comunhão do grupo, o que torna propícia a atualização das experiências e dos saberes guardados na memória coletiva.

Em Uma estória de Amor, a memória coletiva remete à cultura pecuária, que se materializa na “vida de vaqueiro” e em tudo que ela envolve: sua relação íntima com o gado, com o catolicismo popular, com os poetas populares, a vegetação do sertão e os mananciais de água. Desse substrato cultural procede a feição característica das representações que dão expressão à memória e às questões vitais da Samarra, essa comunidade em fundação no conto.

Do que ficou dito acima, é importante ressaltar o que – na falta de outro conceito para denominá-lo – chamaremos de fusão entre a experiência da festa e a experiência da memória. O próprio ato coletivo poderia ser visto, no sentido indicado, como uma grande narrativa que subtrai do esquecimento a memória da comunidade. Esse hino à memória coletiva, de outra parte, certamente não exclui a presença da memória individual, assim como não exclui a possibilidade de diferentes temporalidades na festa. Noutras palavras:

se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que, do instrumento comum, nem todos aproveitam do mesmo modo. Todavia quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social. (HALBWACHS, 2004, p.55)

A possibilidade de diferentes tempos, de percursos diversos que confluem na malha da memória coletiva não parece contestável. Razão pela qual alertamos que o itinerário de

Manuelzão vem a ser, dentro da obra de Guimarães Rosa, um dentre outros desígnios possíveis à condição humana. O tratamento multívoco que ele dá à condição humana encontra, por seu turno, na festa da Samarra, solo fértil para suas formulações cuja fonte reafirma sua importância na obra do escritor: a memória coletiva.

A experiência da festa, imergindo seus participantes no tempo cíclico em que vige o caos primordial, no qual a desordem reina e as distâncias entre os homens, a natureza e os deuses se rompem, possibilita uma ocasião singular para enlaçar as reminiscências do vaqueiro Manuelzão à memória coletiva. Segundo Walter Benjamin, “aquilo que dá grandeza e importância aos dias de festa é o encontro com uma vida anterior” (BENJAMIN, 1989, p. 133). O que se dá, decerto, em consórcio com a memória coletiva, cuja presença é marcante em Uma estória de Amor: nas cantigas, nas histórias, nas quadras, nos cantos, enfim, nos modos, por assim dizer, sertanejos de fazer festa.

Se, em Uma estória de Amor, o voltar atrás é um ato individual, que propicia a Manuelzão um retorno ao seu tempo de origem, isto é, aos primórdios de sua história pessoal, lembremos, por outro lado, que esse retorno é inextricável da memória coletiva. As reminiscências de Manuelzão, com efeito, estão intrinsecamente ligadas ao substrato dessa memória cultural, em diálogo com a qual, de várias formas, o itinerário do vaqueiro amplia os sentidos das questões que dão contorno à condição humana.

Com efeito, da memória coletiva, viva no intercurso das gerações e do saber da experiência, emanam as várias narrativas que compõem o conto. Aí amalgamadas, elas podem brotar de outras memórias individuais ou de percursos diversos da vivência festiva do protagonista Manuelzão. Dir-se-ia, ademais, ser do contraste complementar desses

itinerários, isto é, dessas narrativas e vozes que compõem o conto, que a significação do próprio destino de Manuelzão adquire contorno e singularidade.

O destino do vaqueiro será cifrado ou, se o quisermos, selado pelo contato direto com o saber das narrativas. Esta espécie de saber, contudo, deve ser caracterizada, em razão de sua peculiaridade no domínio do conhecimento humano. De outro modo, perder- se-ia de vista o modo pelo qual as narrativas incidem no percurso de Manuelzão e, por conseguinte, o possível sentido da história desse vaqueiro.

A análise lingüística contemporânea descreve o processo de preservação e transmissão da tradição, efetuado pelos videntes e poetas, entre outros, como uma pragmática do saber narrativo. Essa espécie de saber é distinta do conhecimento, em sentido estrito. O conhecimento corresponderia à produção de um conjunto de enunciados passíveis de serem declarados verdadeiros ou falsos. Ao passo que o saber narrativo implica numa afinidade com os costumes de um grupo social e aparece como resultado de uma formação complexa de competências convergentes. Ele implica não apenas num conjunto de enunciados, num saber-dizer, mas principalmente num saber-agir, num saber-viver, num saber-falar e num saber escutar. O registro do mito, ou saber narrativo, está situado paralelamente ao domínio do que é verdadeiro ou falso. É uma competência que se estende às determinações e aplicações de critérios de eficácia, de capacidade técnica, de sabedoria ética, de justiça, etc. O saber narrativo é, portanto, mais que competência intelectual, ele é formação e cultura, num sentido antropológico (MARQUES, 1994, p. 24).

As narrativas, destarte, eivadas de um saber da experiência, podem vir a englobar, no então nomeado “mundo misturado” de Guimarães Rosa, questões facilmente abarcáveis sob denominações demasiado úteis – modernidade, tradição e até mesmo pós-modernidade

– mas pouco esclarecedoras do que seja, dentro da obra essencialmente poética do escritor, a elaboração de um conhecimento acerca do mundo e do homem em todas as suas dimensões66. As narrativas, dizíamos, guardam uma outra espécie de saber, o qual, à diferença do conhecimento denominado, nos tempos hodiernos, científico ou demonstrável, não pode ser falseado.

66

A acertada expressão “mundo misturado” foi utilizada, pela primeira vez, pelo crítico David Arrigucci Jr. e intitula seu homônimo ensaio, anteriormente citado.

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