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1. Cidade e literatura

1.4. Cidade e modernidade

1.4.4. Flânerie: um modo de habitar as ruas

O conceito de flânerie é, por sua natureza peripatética, relacionado com a prática psicogeográfica. Assim, Merlin Coverley bem indica que a psicogeografia não nasce, de facto, do movimento protagonizado por Guy Debord, o qual cunhou este termo, mas de literatura muito anterior, em que a figura de um deambulador pelas ruas urbanas se torna marcante. Tal acontece já nas obras da “tradição visionária” de uma vertente da escrita londrina, a que pertenceram autores como Daniel Defoe, William Blake ou Thomas De Quincey (Coverley, 2018, pp. 18-21). Daniel Defoe é, conforme Coverley, o primeiro escritor que ofereceu uma visão de Londres desenhada pela sua própria topografia imaginária, inaugurando assim a tradição psicogeográfica londrina (Coverley, 2018, p. 37). É sobretudo na sua obra Journal of the Plague Year (1722) que Defoe, ao amalgamar factos e ficção, fez uma pesquisa psicogeográfica, correspondente em vários aspetos às práticas contemporâneas. O caráter muito especial da deambulação urbana cinge-se, nesta obra, ao facto de o aspeto da cidade mudar de acordo com o prosseguimento da infeção, sendo o narrador subjugado a uma “geografia assombrada”:

In effect, the catastrophe of the plague creates the characteristic sense of disorientation that we find in all narratives of urban catastrophe, whether caused by warfare, revolution or natural disaster. (…) In such moments the city is momentarily made strange, defamiliarized, as its inhabitants are granted an alternative vision of the city (Coverley, 2018, p. 40).

Noutros autores, a transfiguração da topografia urbana deflui diretamente de um estado de imaginação visionária, como se vê em William Blake. Como alega Marlin Coverley, Blake era um deambulador, cujos poemas descrevem a realidade das ruas londrinas setecentistas, mas que são carregadas de uma visão imaginativa intensamente individualista para criar uma nova e

73 transcendente topografia da cidade (Coverley, 2018, p. 42). Por meio desta visão, Blake era capaz de se aperceber de uma essência invariável do espaço londrino, de uma realidade imutável, ou seja, de uma existência simbólica que permanece no decorrer do tempo. Aos outros autores estritamente ligados à cidade de Londres que podem ser considerados, ao lado de Defoe e Blake, precursores da psicogeografia, pertence Thomas de Quincey, cujas Confessions of an English Opium-Eater (1821) são, como diz Coverley, um relato sobre o papel da imaginação e sobre o poder do sonho de transmutar a natureza familiar do nosso ambiente em algo estranho e maravilhoso (Coverley, 2018, p. 45). Convém mencionar ainda Robert Louis Stevenson que inspirou a linha psicogeográfica do imaginário gótico para simbolizar o mistério que se encontra debaixo da superfície banal da cidade quotidiana, ou Arthur Machen com a sua arte de deambulação pela cidade, livre de qualquer objetivo, orientada somente pela imaginação.

Foi na Paris oitocentista que a figura peripatética recebeu a designação de flâneur, sendo na posteridade relacionada sobretudo com a obra de Baudelaire. Recorde-se que em Le peintre de la vie moderne, Baudelaire definiu esta figura como um espetator da vida alheia:

Sa passion et sa profession, cʼest dʼépouser la foule (...) Lʼobservateur est un prince qui jouit partout de son incognito. Lʼamateur de la vie fait du monde sa famille, (...). Ainsi, lʼamoureus de la vie universelle entre dans la foule comme dans un immense réservoir dʼélectricité. On peut aussi le comparer, lui, à un miroir aussi immense que cette foule, à un kaléidoscope doué de conscience, qui, à chacun de ses mouvements, représente la vie multiple et la grace mouvante de tous les éléments de la vie. (Baudelaire, c/d, p. 9)

A primeira inspiração para a gestação desta figura advém, contudo, de Edgar Allan Poe, cuja obra Baudelaire admirou e divulgou em França. Trata-se do conto “The man of the crowd” (1840) em que, de acordo com Coverley, “we witness the emergence of the flâneur, the wanderer in the modern city, both immersed in the crowd but isolated by it, an outsider, even a criminal, a man impossible to fathom and one whose motives remain unclear” (Coverley, 2018, p. 71). Este conto tornou-se também paradigmático da situação do homem na cidade moderna, por relevar como problema, segundo Renato Cordeiro Gomes, a “legibilidade da cidade moderna, através da complexa vida urbana em sua constante mobilidade” (Gomes, 2008, p. 75), cujo cenário são as ruas labirínticas e a multidão. O narrador do conto põe-se a observar um estranho comportamento dum homem que deambula obsessivamente pelas ruas, num percurso circular, como se estivesse num labirinto. A seguir, empreende a mesma rota com o objetivo de perceber o sentido desse trajeto do homem desconhecido, demonstrando, contudo, “a compulsão similar à do perseguido” (Gomes, 2008, p. 80). Deste modo, como diz Renato

74 Cordeiro Gomes, o narrador transforma-se em outro “homem da multidão”, unido ao primeiro pela mesma solidão e alheamento (cf. Gomes, 2008, p. 80). Assim se cria o binómio da multidão/solidão, “termos iguais e conversíveis”, conforme definido por Baudelaire em “Les foules” (apud Gomes, 2008, p. 80). Simutanemante, como diz Gomes, “[o] conto de Poe é um dos textos inaugurais na fixação da imagem da cidade moderna associada à imagem de um homem caminhando, sozinho, pelas ruas fervilhantes.” (Gomes, 2008, p. 80).

A figura de flâneur procura dar resposta à multiplicidade urbana. Além disso, a cidade moderna é um espaço em que eclodem crises de personalidade. O anonimado fornece uma ideia (ou ilusão) de liberdade, a qual, no entanto, pode levar a uma alienação (cf. Derdowska, 2011, p. 56). É preciso frisar que embora se fale de flâneur sobretudo em relação à época da modernidade, a sua presença pode também ser rasteada na pós-modernidade. Nos seus ensaios sobre a época pós-moderna, como já foi observado por Derdowska, Zygmunt Bauman utiliza esta figura para a descrição da situação pós-moderna, mudando-lhe o estatuto social, porque enquanto na modernidade flâneur era relacionado com as élites, na pós-modernidade verifica-se a sua expansão em massa (cf. Derdowska, 2011, p. 60). Mas já não verifica-se trata de um deambulador cruzando as ruas ao deus-dará, dono do seu próprio percurso e destino, porque o flâneur pós-moderno é subjugado aos poderes que ele não controla e que são na maioria dirigidos pela publicidade comercial e/ou redes sociais. Os livres percursos pelas ruas que visavam unicamente observar o mundo circundante, ao qual, no entanto, o flâneur mantinha sempre uma indiferença e superioridade alheia, são suplantados pelos trajetos pragmáticos dentro de centros comerciais (cf. Derdowska, 2011, p. 60).

A flânerie viveu, contudo, certos períodos de revitalização no século XX. O primeiro passo foi neste sentido dado pelo movimento surrealista francês que chamou estes percursos a pé “deambulation”, a forma de andar “automaticamente”, a perda desorientadora de controle. Foi com base neste conceito que, como foi lembrado por Coverley, nasceram três obras sobre a vida nas ruas parisienses entre duas guerras mundiais: Le Paysan de Paris (1926) de Louis Aragon, Nadja (1928) de André Breton e Les Dernières Nuits de Paris (1928) de Philippe Soupault. Estas três obras coincidem na ausência da trama e num impulso digressivo, o que as faz muito próximas de romances psicogeográficos da contemporaneidade (cf. Coverley, 2018, p. 95). O espírito rebelde dos percursos “automáticos” que animou a vanguarda francesa teve a sua continuação no movimento dos Situacionistas (herdeiro do movimento dos Letterist), protagonizado por Guy Debord que também como primeiro cunhou o termo de psicogeografia e exprimiu a sua definição, conforme a qual se trata de um estudo de efeitos especiais do espaço geográfico nas emoções e comportamento individual (cf. Coverley, 2018, p. 120).

75 Além da conceção “clássica” da figura peripatética num espaço físico, foi criado, paralelamente, um flâneur na esfera da imaginação, ou seja, um viajante mental. Como obra fundamental para este tipo de flâneur deve ser referido o texto Voyage autour de ma chambre (1795) de Xavier de Maistre, em que se observa um modo híbrido entre um viajante pedestre e um “viajante de poltrona”. Nas famosas Viagens na minha terra (1846), Almeida Garrett abre o primeiro capítulo com a referência à esta obra, apontando com muita graça para o facto de o clima em Turim, onde Xavier de Maistre escreveu a sua Viagem, ser demasiado frio em comparação com o clima de Lisboa, sendo portanto natural que a viagem à roda dum quarto não seria muito natural nas terras lusitanas:

Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira do Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia ao quintal. (Garrett, 1986, p. 7)

Garrett não podia prever que, no início do século XX, um autor, inspirado precisamente pela sua poesia, irá criar, entre muitas outras, uma figura que realmente se satisfaz em viajar mentalmente, sem sair da casa, no espaço de clima ameno lisboeta. Refiro-me ao dr. Quaresma, criado por Fernando Pessoa, que talvez impedido pelo seu estado de saúde resolve vários casos policiais, literalmente, a partir da sua poltrona, uma vez que a pesquisa empírica dos sítios reais pode perturbar a faculdade de raciocinação. Há, contudo, mais uma nota importante no início do primeiro capítulo das Viagens garrettianas, quando o narrador diz:

Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. (Garrett, 1986, p. 7).

Com efeito, as viagens dentro de um quarto, com o objetivo de se chegar à janela, adequam-se melhor para a situação das mulheres, cujo habitat era tanto nos século XIX, como no incício do século XX, maioritariamente domiciliário. A figura de flâneur que se movimenta livremente no espaço urbano é, nessa época, a expressão do mundo exterior masculino. Por essa razão, as pesquisadoras de gender aproveitaram-se desta figura para poderem criticar as limitações que as mulheres enfrentavam no espaço público. Ou seja, como diz Merlin Coverley:

The dandy, the stroller, these are invariably male figures, dominating the street life and public spaces of cities in which solitary women are largely absent figures. In nineteenth-century Paris and elsewhere, the flâneur principally represented freedom; a

76 kind of freedom which was, however, largely denied to women, to whom the streets were to remain sites of prohibition and exclusion. (Coverley, 2018, p. 77)

Num estudo (“The Invisible Flâneuse: Women and the Literature of Modernity”, 1985), Janet Wolff considera mesmo impossível a criação de uma variante feminina (flâneuse), comparável à figura masculina. É evidente, contudo, que se trata sobretudo das mulheres burguesas, uma vez que existia sempre um tipo de flâneuse que dominava a rua noturna, a prostituta. Além disso, Merlin Coverley recorda que têm surgido vários estudos que corrigem um pouco a afirmação sobre a inexistência da flâneuse e, apesar de esta sofrer sempre de uma menor visibilidade, os seus traços podem ser observados nos casos de escritoras como George Sand, Frances Trollope, Kate Chopin, Djuna Barnes, Virginia Woolf, Jean Rhys or Martha Gellhorn (cf. Coverly, 2018, p. 78). O mesmo pode ser verificado no caso português. Embora concordando com a insustentável equiparidade hipotética dos dois géneros, urge admitir que existem também alguns casos de flânerie feminina no início do século XX, como adiante se verá.