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CAPÍTULO 2: O LUGAR DA INTERPRETAÇÃO: PRESSUPOSTOS

2.2 Formação Ideológica e Formação Discursiva

Na base dos dispositivos de análise formação ideológica e formação discursiva, propostos por Pêcheux (2009), encontram-se dois conceitos centrais que compõem o quadro teórico da AD: ideologia e discurso. O primeiro conceito é tributário de Althusser em sua obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. O segundo conceito tem por base a noção de formação discursiva de Michel Foucault desenvolvida em sua Arqueologia do Saber.

Embora se reconheça a dificuldade de precisar o conceito de ideologia, torna-se relevante a definição do conceito tomado como referencial para se compreender a noção de formação ideológica aqui definida. No espaço desta pesquisa, a ideologia funciona como interpelação dos indivíduos em sujeitos do discurso (PÊCHEUX, 2009).

É a ideologia que oferece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a “transparência a linguagem”, aquilo o que

chamaremos o caráter material dos sentidos das palavras e dos enunciados (PÊCHEUX, 2009, p. 146, grifo do autor).

Ademais, o caráter material do sentido mascarado pela sua evidência transparente ao sujeito corresponde à sua dependência constitutiva do que se denomina complexo das formações ideológicas. Com efeito, esse complexo das formações ideológicas está submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação. De acordo com Pêcheux (2009), as formações ideológicas correspondem aos elementos que combinados compõem uma instância ideológica plural. Em outros termos, tratar-se-iam de uma ideologia em contraposição à noção de ideologia geral. Na perspectiva discursiva, a ideologia é re-significada e se apresenta como processo de produção de evidência de sentidos, que nega a interpretação múltipla.

Orlandi (2007) esclarece que essa interpretação pautada em evidências decorre de sua ancoragem no dispositivo ideológico utilizado pelo sujeito comum, que não se coloca no espaço privilegiado da crítica. A ideologia se produz na interseção entre a materialidade da língua e a materialidade histórica, em um espaço de relações de força em que se manifestam diversos posicionamentos e confrontos ideológicos, segundo filiações sócio-históricas e produzindo diversos efeitos de sentido. O efeito ideológico camufla os conflitos ou tensões existentes em determinada estrutura social, promovendo a ideia de ausência de contradições ou conflitos de classe. Esse efeito promove na ordem do discurso a ilusão de unidade, de transparência e de evidência das construções enunciativas, que compõem o imaginário discursivo.

As formações discursivas são compreendidas como “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada, numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.)” (PÊCHEUX, 2009, p. 147, grifo do autor).

As formações discursivas correspondem às diferentes regiões do dizível para o sujeito, que recortam o interdiscurso e que refletem as formações ideológicas. Em outras palavras, pode-se dizer que estas se constituem no conjunto de formulações de enunciados que se reúnem em pontos do dizer, em regiões historicamente determinadas de relações de força e de sentidos. Essas diferentes regiões são desigualmente acessíveis aos sujeitos do discurso, uma vez que a relação destes com aquelas é regulada sócio-historicamente (ORLANDI, 2007).

É nesse contexto da materialidade discursiva que Pêcheux (2009) esclarece que o indivíduo é interpelado em sujeito-falante ou, dito de outro modo, em sujeito do seu discurso, pelas formações discursivas representativas na linguagem de suas formações ideológicas

correspondentes. Dessa forma, há necessariamente uma relação entre as formações discursivas e as formações ideológicas que as sustentam. Nesse processo constitutivo, as formações discursivas, por seu turno, materializam as formações ideológicas.

Diremos, nessas condições, que o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material e contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal objetividade material que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo de formações ideológicas (PÊCHEUX, 2009, p. 149, grifo do autor).

É importante ainda esclarecer que, conforme Pêcheux (2009, p. 151, grifo do autor), “[...] a formação discursiva que veicula a forma-sujeito é a formação discursiva dominante, e que as formações discursivas que constituem o que chamamos de seu interdiscurso determinam a dominação da formação discursiva dominante”. As formações discursivas mantêm entre si relações dissimétricas em função dos efeitos de pré-construído e de efeitos- transversos/articulação. Elas são lócus de reconfigurações que, conforme o caso, podem se configurar em um trabalho de recobrimento, reprodução e reinscrição ou de produtividade política e/ou científica (PÊCHEUX, 2009). Nesse contexto, Orlandi (2007), destacando a heterogeneidade das formações discursivas, esclarece que o limite de uma formação discursiva corresponde ao que a distingue das demais regiões discursivas.

Para Pêcheux (2009, p. 238, grifo do autor), “um efeito de sentido não preexiste à formação discursiva na qual ele se constitui. A produção de sentido é parte integrante da interpelação do indivíduo em sujeito, na medida em que, entre outras determinações, o sujeito é ‘produzido como causa de si’ na forma-sujeito do discurso, sob o efeito do interdiscurso”.

Essa dinâmica da interpelação do indivíduo em sujeito do discurso se constitui na base de todo o processo discursivo, que se dá em uma rede de relações entre uma memória discursiva, que veicula o interdiscurso e o pré-construído e uma atualidade que se estabelece a partir de um intradiscurso. Trata-se de um constante processo de ressignificação.