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1. Cidade e literatura

1.4. Cidade e modernidade

1.4.3. Formas: organismo, diagrama, labirinto, palimpsesto

A cidade “vivida” tem muito em comum com o corpo, afirma também Daniela Hodrová, com o seu lado mental e afetivo, sua consciência e seu inconsciente, interioridade (2006, p. 17). A este respeito La Salette Loureiro diz-nos que a tradição de comparar a cidade com um corpo data do século XVII quando, para além de metáforas relacionadas com a natureza (mar, ondas, selva), as metáforas orgânicas (membros, circulação, artérias, sangue, coração, ventre, pulmões etc.) começaram a servir para descrever/ler a cidade moderna (1996, p. 36). Recordemos ainda, junto com La Salette Loureiro, que a cidade pode ser imaginada não só como um corpo humano, mas também como um “corpo cósmico” ou “métacosme” (1996, p. 36). Esta ideia foi verbalizada por Claude-Gilbert Dubois, o qual ainda invoca sentimentos de amor, de um prazer quase erótico-orgástico, que pode ser sentido em relação à cidade (“Le roman dʼamour à la ville superpose lʼorgasme amoureux et lʼextase mystique”, Dubois apud Loureiro, 1996, p. 37). Com efeito, ao estudar as imagens urbanas em Sá-Carneiro, La Salette Loureiro reparou na “relação sexualizada” que o narrador de um conto (“Ressurreição”) mantinha com a cidade de Paris, como se esta pudesse ser possuída à maneira de uma mulher:

e ele lograra, em vitória lograra, possuir toda essa capital de assombro – possuir o seu movimento, o seu estrépito, o seu brilho ... oscilá-la no seu sangue ... sê-la, sê-la realmente um instante... esvaí-la num espasmo de altura – hialino, ogival, emaranhado, subtil de multicolor... (Sá-Carneiro apud Loureiro, 1996, p. 290)

Por tradição muito antiga, a cidade costuma ser apreendida como mulher, seja em termos de um estatuto etário (menina, moça, velha), de condição (rainha, noiva, amante, meretriz, madrasta) ou por meio de certos atributos (santa, dessacralizada, pura, virgem, morena etc.). Não admira, portanto, que também as cidades invisíveis de Calvino tenham nomes femininos ou que haja tendência de falar sobre a cidade em código afetivo, como se de uma mulher se tratasse.48 Uma outra concepção da “cidade-organismo” relaciona-se com a imagem da urbe

48 De uma forma mais abrangente, não limitada necessariamente à cidade (embora esteja relacionado), Bertrand Westphal refere-se aos paralelos entre o espaço e o corpo feminino. Neste sentido, podem existir interações entre o corpo feminino e o mapa (p.ex. pinturas de Kathy Prendergast, designadas como Body Map Series, de 1983, estudadas por C. Nash em Writing Women and Space: Colonial and Poslcolonial Geographies, organizadas por A. Blunt e G. Rose) ou entre o corpo feminino e a paisagem (que tem uma longa tradição iconográfica pelo menos desde O cântico dos cânticos; recorde-se por exemplo a novela O físico prodigioso de Jorge de Sena, em que a paisagem é descrita em termos de corpo feminino e este, inversamente, como a paisagem). Este processo de erotização do espaço visto como um corpo feminino pertence ao que Steven Marcus, referido por Westphal, chama de pornotopia (“For, in all these fantasies, the body to be conquered or penetrated is always that of the woman”, Westphal, 2011, p. 68). É evidente que este imaginário tem feito parte também do processo de conquista do espaço alheio, em que um lugar acaba por ser (re)nomeado com um nome feminino segundo o homem

69 como mandala. É evidente que esta concepção valoriza tanto o potencial “psíquico”/ “interiorizado” da cidade, como a sua estrutura em forma de diagrama. É exatamente esta forma de mandala que se observa, por exemplo, na urbe atravessada por um peregrino em Labirinto do Mundo e Paraíso do Coração (1631) de Comenius. Não é necessário, contudo, restringir-se à literatura de séculos passados. A ideia da cidade como uma mandala, assente numa estrutura de diagrama em sobreposição sucessiva de níveis concêntricos, pode funcionar como um ponto de partida para as leituras modernas da cidade. Convém referir, por exemplo, a divisão de Daniela Hodrová (2006) em modelos de jin de jang, em que o tipo jang é geométrico, linear e regular (p. ex. Petersburgo), enquanto o tipo jin , de desenho circular ou ondeante, se assemelha a um tecido, rizoma (p. ex. a Praga antiga ou a Lisboa antiga). O crescimento da cidade pode seguir o traçado de xadrez, para o tipo jang, ou de círculos concêntricos, para o tipo jin. Além disso, a cidade pode ser também vista como um “átomo” com “núcleo em torno do qual gravitam os elétrons-subúrbios, ou cidades-satélites, combinando conotações de espaço e energia, para representar os contornos da cidade” (Gomes, 2008, p. 83).

Estas estruturas podem ser também correlacionadas com a forma mais arquetípica da cidade, que é o labirinto. A relação de labirinto com a cidade é, com efeito, muito antiga. Recorde-se que já na era romana (os Romanos conheceram a forma do labirinto graças à moeda de Creta), a imagem de labirinto fazia parte de vários elementos arquitetónicos e decorativos (p. ex. o mosaico em Conímbriga, a inscrição Labyrinthus. Hic habitat Minotaurus no peristilo da Casa de Lucretius em Pompei etc.). Curiosamente, como recorda Penelope Reed Doob (2019), as formas labirínticas medievais (de pedras etc.) recebiam denominações “urbanas” como “Trojaburg”, “Jerusalem”, “Babel” ou “Jericho”. Tróia era considerada, na Idade Média, o arquétipo da cidade, o labirinto relacionado com Tróia (através de Lusus Troiae) talvez tenha denotado outras cidades também. O paralelo entre o labirinto e Jericho é ainda mais próximo: os hebreus sitiaram a cidade por sete dias (o número de círculos em muitos labirintos) e Rahab, como Ariadne, ajudou os espiões hebraicos a fugir da cidade com ajuda de um fio escarlate. Babel, relacionada com o labirinto por Petrarca (Liber sine nomine), é continuamente associada à confusão.

O traçado labiríntico é, como lembra Daniela Hodrová, excecional nas cidades realmente existentes. Como a pesquisadora checa aduz, a cidade pode só apresentar alguns aspetos

(conquistador), p. ex. o estado brasileiro de Rondônia (originariamente Guaporé) foi renomeado segundo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, ou a antiga colónia de Rhodesia em África (hoje Zimbabwe) foi nomeada segundo Cecil Rhodes. É evidente que esta prática ilustra a violação do espaço pelo colonizador e desrespeito pela cultura local, reflete também a própria violência sexual praticada no espaço conquistado/colonizado.

70 labirínticos, p. ex. na fortificação ou num emaranhamento de ruas estreitas e ziguezagueantes (2006, p. 18). A imagem do labirinto pode ser, contudo, veiculada por uma perspetiva exógena (p. ex. no caso de um estrangeiro não muito familiarizado com o mapa e/ou perdido na cidade) ou por uma perspetiva transfiguradora (p. ex. num sonho, febre, loucura). Para Ricardo Cordeiro Gomes, por outro lado, a cidade moderna (como um arquétipo) encarna um mito de labirinto, não por causa do seu aspeto, como afirma Hodrová, mas pelo seu estatuto ontológico e existencial. Na era moderna, pois, a cidade expande de tal forma que engole os arredores, eliminando-se a fronteira entre o cá e o lá, entre a cidade e o campo, entre a cidade e uma outra cidade, numa imbricação e caos constante:

O homem citadino é presa dessa cidade, está enredado em suas malhas. Não consegue sair desse espaço denso, uma vez que a civilização urbana espraiou-se para além dos centros metropolitanos e continua a preencher grandes áreas que gravitam em torno desses centros. A partir da Revolução Industrial, o fenômeno urbano parece ter ultrapassado as fronteiras das “cidades” e ter-se difundido pelo espaço físico. O signo do progresso transforma a urbanização em movimento centrífugo, gerando a metrópole que se dispersa. Assim, o citadino – homem à deriva – está na cidade como em labirinto, não pode sair dela sem cair em outra, idêntica ainda que seja distinta (para repetir a imagem de Octavio Paz). (Gomes, 2008, p. 68)

O labirinto urbano, portanto, é um produto do próprio homem que nele se perde, tornando-se tornando-seu prisioneiro (cf. Gomes, 2008, p. 68). Este estado angustiante tem obviamente influência no comportamento humano, no seu “sentir”. Como já foi referido acima, a cidade moderna está particularmente ligada a várias manifestações de perturbação mental. Por isso, podemos concordar com Ricardo Cordeiro Gomes quando ele afirma que “[o] sujeito se fragmenta no choque das vivências na cidade transformada pelo progresso” (2008, p. 73), perdendo a sua identidade: “A metrópole não é mais o espelho que poderia confirmar a identidade do corpo inteiro. A pólis perversa gerada pela modernidade associa-se à fragmentação e à ruína da sociabilidade” (Gomes, 2008, p. 73). Os heróis deste universo da cidade moderna passam a ser “os inadaptados, os marginais, os rejeitados que reagem à atrofia da experiência” (Gomes, 2008, p. 73).

Nesta conexão regressa também a questão de genius loci, uma vez que se trata de um conceito adequado à perceção do “inconsciente” urbano. A alma da cidade, diz Hodrová, é algo que trabalha às escondidas, como o inconsciente humano (2006, p. 39). A cidade é, portanto, um organismo vivo, do qual o ser humano constitui uma das partes fundamentais. Tal simbiose torna-se especialmente patente nos casos em que predomina um simbolismo urbano tipicamente dark, assente em arquétipos sombrios – cidade morta, alheia, fantasmagórica, assombrada, a

71 cidade ligada com os aspetos sombrios do eu – duplicado, louco (cf. 2006, p. 39). É neste sentido que também podemos invocar os postulados de Merleau-Ponty sobre a intrincação do corpo humano no espaço circundante, neste caso, na carne urbana.

Além disso, a cidade percecionada pela consciência e pelo inconsciente ao mesmo tempo, não é só uma cidade, mas muitas cidades, um conjunto de cidades inseridas umas dentro das outras, cidades visíveis e invisíveis, do passado, do presente e do futuro (cf. Hodrová, 2006, p. 38). É evidente que esta estrutura – de mandala – exprime a ideia que Westphal sustenta na sua geocrítica. A concepção estratigráfica em que dois ou mais estratos temporais convergem num lugar é denominada por Hodrová como sintopia (Hodrová, 2006, p. 38). Este fenómeno, de facto, pode ser visível, por exemplo na estrutura de uma casa antiga, dentro da qual é possível descer a um estrato anterior (por meio da descida a uma cave gótica) ou invisível, críptica, guardada na memória coletiva como uma aura do lugar (cf. Hodrová, 2006, p. 44). Com isso Hodrová mostra que a conceção de estratigrafia não pode ser limitada à modernidade devido à relativização dos vetores de espaço-tempo, porque se trata de um aspeto pertencente a qualquer cidade em qualquer época da sua apreensão. Neste contexto, Renato Cordeiro Gomes refere-se à tela Ein Blatt aus dem Städtebuch (Uma folha do livro de registo da cidade, 1928) de Paul Klee, quadro pintado depois de uma viagem ao Egito, precisamente na época em que o pintor lecionava na famosa Bauhaus (1921-1930). Recorde-se que a ideia de Bauhaus era construir a utopia de ordem e forma, dominando o caos. Por isso, nesta tela, o pintor recusa-se a ser fiel à reprodução do objeto (cidade) porque, conforme Cordeiro Gomes:

Rechaça a noção de profundidade, este meio tradicional de construir o ilusionismo, e fixa a cidade na superfície da folha de um livro, através de elementos mínimos de composição, formas geométricas, sobriedade cromática, que se encaminham para a abstração, tendendo para o grafismo. As breves anotações lembram esquematicamente casas, cúpulas, telhados, muros, igrejas, encimados por um astro misterioso, e adquirem um ritmo geométrico, num equilíbrio racional.” (2006, p. 38)

Como Renato Cordeiro Gomes acrescenta, trata-se de uma “espécie de arqueologia de cidades sobrepostas”, em que a tela “serve de metáfora operatória e teórica para a leitura da cidade cifrada (...) de múltiplas e complexas inscrições” (2006, pp. 38-39). Mesmo que estejamos sempre dentro de um formato de diagrama, valoriza-se aqui ainda mais o processo contínuo de inscrição e apagamento, após o qual a prévia inscrição fica perceptível em certos fragmentos (palimpsesto). A cidade é assim lida como um composto de camadas sucessivas de construções e escritas, em que a camada anterior transparece parcialmente na camada ulterior. Nesta estrutura que permanentemente exige um trabalho de descodificação é também

72 valorizado o próprio ato de leitura, e com ela, do leitor que, de facto, acaba por “escrever” um novo texto da cidade. Ao lado da simbiose da cidade e do ser humano verifica-se, assim, uma nova simbiose, a da cidade e do texto. Por último, vale a pena não esquecer que a escrita da cidade não consiste somente na sua construção, ou seja, na inscrição e transcrição, mas também no seu sucessivo apagamento, onde a máquina de escavar funciona como se fosse um computador, em que o desmoronamento corresponde ao carregar na tecla DEL, com a qual apagamos o “texto” anterior.