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Francisco Batista Júnior

No documento contradições e desafios para a saúde (páginas 91-103)

Bom dia. Procurei fazer uma apresentação que, de alguma forma, ficasse sinto -nizada com o texto que elaborei e enviei para a coordenação desse evento. Comecei o texto exatamente dizendo que o trabalho e os trabalhadores da saúde, no nosso entendimento, têm que ser avaliados, debatidos, colocados na mesa, antes e depois do Sistema Único de Saúde. Não há comparação, são duas realidades no país total e absolutamente distintas, não dá para desconsiderar as profundas transformações que aconteceram no mundo do trabalho e, particularmente, no trabalho da saúde e nos trabalhadores, também, após a instalação do SUS. Trouxe alguns dados muito rápi-dos, que estão à disposição na última pesquisa do IBGE, que provam as profundas transformações que aconteceram no mundo do trabalho da saúde a partir da institu-cionalização, implementação e implantação do SUS. Por exemplo, em relação a estru-turação das redes públicas, em 1986 nós tínhamos, no Brasil, 30.872 estabelecimen-tos de saúde. Em 2009, ou seja, vinte e três anos depois, esse número já saltou para 94.070 estabelecimentos de saúde. Uma transformação histórica. Além disso, com o advento do Sistema Único de Saúde, é óbvio que o conceito de atuação em equipe foi revisto. Aliás, antes do SUS nem havia, de fato, esse conceito. Com o advento do SUS, passou-se a discutir o conceito de trabalho em saúde, o trabalho em equipe, passou-se

a falar em trabalho em equipe multiprofissional. Isso, do ponto de vista conceitual e

estruturante, é absolutamente fundamental. E passou-se a ter os concursos públicos como instrumento de acesso às redes, aos serviços e às instituições.

Destaquei também as transformações que aconteceram nos postos de traba-lho. Em 1992, quatro anos após a aprovação do SUS e dois anos após sua regula-mentação através da Lei Orgânica, nós tínhamos 1.438.708 postos de trabalho. Dez anos depois, esse número já havia saltado para 2.180.598; e, em 2005, chegamos a 2.566.694 postos de trabalho. Esses dados da pesquisa do IBGE mostram, de forma

absolutamente insofismável, a profunda transformação que aconteceu, em pouquís -simo espaço de tempo, do trabalho em saúde e dos trabalhadores em saúde com o advento do Sistema Único de Saúde.

Começo também chamando atenção para o que considero como processo de desconstrução do Sistema Único de Saúde e do trabalho em saúde que foi colocado em curso. Quando faço a apresentação a respeito do Sistema Único de Saúde, mos-tro, de forma didática, as diversas fases do processo de desconstrução do SUS, então colocado em prática. Nós já tínhamos, em 2009, um dado contundente no que diz respeito à apropriação do SUS pela iniciativa privada. De acordo com o IBGE, nós tínhamos, em 2009, dos 94.070 estabelecimentos de saúde existentes, nada menos do que 42.049 de natureza privada. Isso, para quem discute o SUS na Reforma Sanitária e para quem discute o SUS do ponto de vista conceitual, era um dado absoluta-mente contundente, porque nós aprendemos durante o debate da Reforma Sanitária que é impossível colocar em prática um Sistema de Saúde que se propõe universal e integral, na lógica de mercado. É impossível se viabilizar uma proposta de sistema como essa competindo com o sistema privado fortalecido. E muito mais difícil, eu diria até impossível, é viabilizar-se uma proposta de sistema como esse concorrendo

com o sistema privado que é financiado pelo ente público, o que acontece de fato no

Brasil. Em 2009, já tínhamos esse dado. Mais ainda, no mesmo ano, era de natureza privada mais de 50% dos 51.305 estabelecimentos localizados nas regiões Sudeste e Sul, onde se concentra maior poder aquisitivo e maior tecnologia. A privatização se impunha com 8.323 serviços privados e 7.631 públicos, na Região Sul; e 18.790, contra 16.561 públicos, na Região Sudeste. Ou seja, chegamos a uma situação, já em 2009, onde as instituições da Rede do SUS, nas duas regiões mais importantes, do ponto de vista político e econômico do país, eram privadas. Isso diz praticamente tudo em relação ao processo de desconstrução do SUS.

Paralelamente, também, temos que acusar a desresponsabilização dos entes federal e estaduais. Com o advento do SUS, o processo de municipalização foi colo-cado na ordem do dia e, na verdade, o que aconteceu no Brasil não foi um processo de municipalização. Porque, de fato, o que aconteceu foi um processo de sobrecarga dos municípios, de obrigações e tarefas, com desresponsabilização dos entes estadu-ais e federal. Por exemplo, dos 94.070 estabelecimentos de saúde existentes em 2009, apenas 1.318 era de natureza estadual. E, pasmem, num país como o Brasil, com

a complexidade geográfica, política, cultural e econômica que encerra, apenas 950

eram de natureza federal - na absoluta desresponsabilização. Sem falar nos processos de desconstrução de concurso público, de contratação precária e por aí afora.

A força de trabalho, na contramão da história e os ecos do neoliberalismo. O SUS foi aprovado, no Brasil, exatamente no momento em que a ordem mundial dizia exatamente o contrário, a privatização generalizada era a ordem econômica estabe-lecida em 1988. No início da década de 1990, enquanto no mundo todo o processo neoliberal avançava com a reestruturação produtiva, no Brasil acontecia o inverso, concursos públicos, contratos de trabalhadores e incremento no número de traba-lhadores na saúde. Por isso, estávamos na contramão da história. Mas, ao mesmo

tempo, os trabalhadores, o sistema e o trabalho em saúde, começaram a sentir os ecos do neoliberalismo.

A evolução dos postos de trabalho no setor saúde foi de 1.438 mil, em 1992, para 2.566 mil em 2005, treze anos depois. No setor privado, houve um salto bas-tante razoável, de 702 mil para 1,117 milhão. A consequência se deu exatamente do

processo de crescimento da rede privada, principalmente na rede privada financiada

pelo SUS. No setor público, esse número foi maior ainda: de 753 mil, em 1992, para 1,448 milhão, em 2005. Isso é o que chamo de contramão da história, porque no mundo todo era demissão, precarização, exoneração, privatização. E, no Brasil, acon-tecia esse processo inverso. Só que a evolução desses postos de trabalho, claramen-te percebidos nos números do IBGE, dava-se principalmenclaramen-te no plano municipal, porque o processo de municipalização entre aspas obrigava os municípios a fazerem a contratação, a realizar os concursos, a compor a sua força de trabalho, para arcar com a responsabilidade do processo de municipalização.

Nos municípios, as contratações saltaram de 306 mil, em 1992, para 997 mil, em 2005. Ou seja, praticamente, mais que triplicou o número de postos de trabalho na saúde municipal. Nos Estados e no Governo Federal, sob os ecos do neolibe-ralismo, foi exatamente o inverso. Os Estados saltaram de 315 mil para, treze anos

depois, 345 mil. Foi absolutamente insignificante. Mais ainda, tem que levar em con -sideração que, no meio do caminho, no ano de 2002, esse dado diminuiu de 315 mil para 306 mil. Ou seja, entre 1992 e 2002, 10 anos, os postos de trabalho diminuíram no plano estadual, e aumentaram, a partir de 2002, numa atuação política do Go-verno Federal, do GoGo-verno do Lula, que teve um impacto nos estados também. É o caso também dos postos de trabalho no Governo Federal. Em 1992, eram 113 mil e, no auge do Governo Fernando Henrique Cardoso, haviam caído drasticamente para 96 mil. Com o Governo Lula, houve uma pequena recuperação para 105 mil, mas que não chegou ao patamar de 1992, que era de 113 mil trabalhadores no serviço público federal. Isso mostra claramente o impacto das ideias neoliberais no plano federal e nos planos estaduais também.

Em relação à formação profissional, podemos colocar como aspectos rele

-vantes, naquilo que diz respeito à formação profissional, a partir da década de 1990, primeiro, uma formação profundamente massificada. Durante a década de 1990,

particularmente, houve uma política deliberada do Governo Federal de estimular a

massificação da criação de cursos na área de saúde, sem levar em consideração qual -quer critério de qualidade mais apurado. Se formos nos ater à questão da legislação, existem pré-requisitos que são exigidos para a abertura de curso, e, na prática, isso

foi solenemente ignorado. Para que se possa ter ideia, na minha área específica, em

1986, no Brasil, se não estou enganado, havia por volta de 36 Cursos de Farmácia; desses, quase 90% eram cursos públicos. Hoje, nós temos 491 Cursos de Farmácia, no Brasil; desses, 80 são privados, que funcionam, nós sabemos muito bem, sem

qualquer exigência maior de qualificação, sem qualquer critério mais rígido. É um

absurdo. Isso vale para quase todos os cursos. A Enfermagem é pior ainda. Quem foi preservado nesse processo foi o Curso de Medicina, que também teve um crescimen-to razoável, mas não que acompanhasse a demanda no mercado, principalmente pelo

crescimento da saúde privada. As demais profissões, todas foram vilipendiadas, agre

-didas, violentadas, pelo processo de massificação profundamente mercantilizado.

Quando avaliamos o crescimento desses cursos, a grande maioria foi na região onde existe poder econômico, não se vê a criação de Faculdade de Enfermagem e Farmácia em lugares que não têm poder aquisitivo e a população não pode pagar a faculdade. Vê-se crescimento nas regiões com retorno econômico, sem critérios

mais rígidos de qualificação, voltado para o mercado e para o setor privado. Há uns

anos, venho batendo nisso violentamente, nós temos uma formação no Brasil pro-fundamente equivocada. Eu trabalho em hospital e vejo o quanto nossos estagiários de farmácia são absolutamente desvinculados da realidade do SUS. Recebemos

tur-ma de estagiário toda setur-mana no hospital, é incrível a desinfortur-mação dos profissio -nais que vão se formar esse ano, são estagiários no último ano de graduação e não

conhecem absolutamente nada do Sistema Único de Saúde e da inserção profissional

no Sistema. E não é de agora. Uma formação não sintonizada com a realidade do

SUS e do país; e por fim, uma formação profundamente elitista e mercantilizada.

Nós, trabalhadores da saúde, nos achamos diferentes dos demais, nós nos

conside-ramos “doutores”. Vejo profissional de saúde no hospital que, se não for chamado

de doutor, tem briga. É uma visão profundamente arcaica, eu diria até reacionária. Como a organização dos trabalhadores se deu durante esse processo de trans-formação ideológica? Primeiro, sindicatos profundamente corporativistas e econo-micistas. Fui dirigente sindical de base, fui da direção do SINDSAÚDE do meu Estado durante uns seis, sete anos. E, nos diversos momentos em que fazíamos capacitação, planejamento, eu chamava a atenção para isso: o movimento sindical brasileiro não consegue o equilíbrio entre a visão meramente economicista e o de-bate ideológico, porque nos habituamos a passar para os trabalhadores sindicaliza-dos a impressão de que o sindicato é um instrumento única e exclusivamente para conseguir vantagem econômica para o trabalhador. Isso desideologiza o debate, e o trabalhador vê o sindicato exatamente como isso. É comum a gente ver o

trabalha-dor dizer: “Ah, não vou para o sindicato, porque ele não consegue nada para mim”; “Não vou me filiar porque o sindicato não faz nada”.

Fui dirigente sindical, continuo sendo, e é o que mais ouço: “O sindicato não

faz nada, vou fazer o quê lá?” Ora, que visão mais conservadora! Quem tem que fazer

são os trabalhadores, não há possibilidade do sindicato fazer absolutamente nada se os trabalhadores não estiverem na linha de frente. Mas essa é a visão que foi alimentada, eu diria mais - retroalimentada - pelo movimento sindical mais tradicional. E quando o sindicato saía da visão economicista e tentava fazer o debate ideológico, errava na dose

também. Vinham aqueles discursos ultra-sectários nas assembleias, de que a revolução tem que ser feita agora, que a gente tem que derrubar o governo. Não tem como con-vencer o trabalhador a fazer parte do sindicato desse jeito. Para completar, nós conti-nuamos com a organização sindical fortemente controlada pelo Estado.

Durante a década de 1990, principalmente, começamos a tentar a construir uma nova ordem de organização e, dentre os elementos dessa nova ordem, um dos grandes momentos que pensamos no Brasil foi a criação dos sindicatos gerais, os SINDSAÚDES e os sindicatos de seguridade social, com a perspectiva de come-çar a superar a visão meramente corporativista, e de, através de um sindicato geral, nós construirmos a cultura do trabalho e da ação em equipe, com a perspectiva de

superarmos definitivamente a visão egoísta e corporativista que cada categoria pro

-fissional tem.

Nesse sentido, conseguimos experiências importantes país afora, criando

sin-dicatos de trabalhadores em saúde, congregando quase todas as categorias profis -sionais, com movimentos muito interessantes em vários Estados. Ainda hoje, temos SINDSAÚDES que conseguem ter uma organização bastante razoável, mas já

co-meça a haver um refluxo nesse movimento. Há categorias profissionais saindo dos SINDSAÚDES e voltando a criar sindicatos de categoria profissional corporativista.

O SINDSAÚDE do Distrito Federal se resume, basicamente, ao pessoal de nível médio e nível elementar, porque cada categoria foi saindo e voltando a criar sua es-trutura de sindicato corporativista. Fica muito mais difícil. Veio o novo sindicalismo brasileiro, com a CUT, com as federações e confederações, mas veio, também, uma profunda resistência dos setores mais conservadores do sindicalismo brasileiro. A re-forma sindical é uma coisa absolutamente urgente. Hoje, o movimento sindical,

nes-se país, está falido. Se não fizermos uma reforma sindical que acabe com o imposto

sindical, que acabe com a unicidade sindical, que democratize a estrutura sindical, de alguma forma, não tem para onde andar, não tem jeito. Até tentamos fazer essa reforma ao lado do Governo Lula, não conseguimos. As centrais sindicais mais con-servadoras e os elementos que dominam as estruturas concon-servadoras do movimento

sindical foram vitoriosos, e hoje continuamos com muita dificuldade.

O que temos de concreto em relação ao projeto neoliberal no Brasil? A rees-truturação produtiva, que atingiu também a saúde das mais variadas formas, a Refor-ma do Estado com o conceito de Estado mínimo, as privatizações, a precarização do

trabalho e da remuneração profissional, através das terceirizações, quarteirizações,

das ditas cooperativas, que de cooperativas não têm absolutamente nada, são meros instrumentos privados de intermediação de mão de obra. E não é somente de mé-dico. Eu acompanho, pelo país, enfermeiro querendo fazer cooperativa, técnico de enfermagem também querendo fazer cooperativa, rendendo-se à lógica neoliberal, e

as gratificações como forma de precarização da remuneração. Não foram poucas as

proposta do Governo de apresentar mais uma gratificação para a gente. E eu perdia

no debate político, porque, para o trabalhador menos politizado, não interessa se é

gratificação ou não, ele quer mais dinheiro. A gente perdeu essa disputa. Se eu pegar

meu contracheque e mostrar para vocês aqui... É contracheque aqui também, não é? Holerite? Holerite é mais chique. No Nordeste é contracheque mesmo. Mas, se

eu mostrar para vocês aqui, vão dizer: “Esse cabra ganha muito dinheiro”. É tudo gratificação de 100 contos, 200 contos, que no final dá uma besteirinha. Isso não é só no meu caso, é o país todo e em todas as esferas de governo. Gratificações que,

quando você se aposenta, já era, não são incorporadas aos seus proventos. Trabalho no hospital, e o que tem de colega meu sem querer se aposentar, já com o tempo de serviço, mas com medo de se aposentar e perder 60% da remuneração... É a conse-quência desse processo de desestruturação.

Quanto ao desemprego, vinha conversando com o taxista agora, e ele revelando algumas frustrações com o Governo da Dilma e do Lula, mas reconhecendo, como temos que reconhecer, realmente, a transformação que aconteceu nesse país no quesi-to desemprego. No quesiquesi-to emprego, o Brasil vive hoje uma situação que é considera-da pelos economistas como pleno emprego. É difícil encontrar alguém desempregado no Brasil. Se formos discutir a qualidade do emprego, é outro debate, tenho sérias críticas a isso. Mas, concretamente, temos um dado relevante num país como o nosso, que é o desemprego baixo. Assim como a economia informal que, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, chegou a abarcar mais de 60% do produto interno bru-to no Brasil. Isso é um escândalo. Hoje, o Governo da Dilma conseguiu reduzir para, aproximadamente, 40%. Ainda é muito elevado, mas temos que admitir que houve uma transformação importante nesse período. Sobre o achatamento salarial, faço uma crítica ao Governo. Este estabeleceu que quem ganha dois mil e poucos reais por mês é da classe média. Então, eu sou classe média. Imagina esse país.

Por fim, sobre o modelo de atenção, temos que colocar isso, o modelo de atenção e de financiamento são absolutamente equivocados. Falo muito sobre isso

quando o debate é sobre mais dinheiro para o SUS. Eu não participei do Movimen-to Saúde +10, neguei-me a participar, nós da Frente contra a Privatização também,

porque estamos sendo profundamente irresponsáveis se ficarmos defendendo mais

dinheiro para a Saúde sem discutir para onde vai esse dinheiro. Não dá para ser assim. Se formos avaliar, entre o último Governo Fernando Henrique Cardoso e o

atual Governo, houve um incremento considerável do financiamento federal na Saú -de. O Fernando Henrique, em 2012, investiu na Saúde por volta de 32, 33 bilhões de

reais. Hoje, são quase 100 bilhões de reais. No entanto, no bolo do financiamento,

esse incremento não se reproduz na ponta, muito pelo contrário. A sensação é que as coisas estão piorando, e estão, temos que ter coragem de dizer isso. E por que?

Porque o financiamento está sendo realizado de forma equivocada, está financiando

úl-timo plano. Está errado. Não estou aqui defendendo deixar a secundária e a terciária

de lado, não é isso. Mas tem que priorizar a atenção básica. É um financiamento que

prioriza o setor privado conveniado, contratado. E esse Governo atual tem sido

pe-rito nisso. O Governo da Dilma e do Padilha conseguem brechas para financiar cada vez mais a turma privada das mais variadas formas. É óbvio que o financiamento do

SUS está equivocado, paga o procedimento realizado, aí dá o que está sendo

mos-trado pela grande mídia, corrupção generalizada. O financiamento tem que ser de

acordo com as reais necessidades de cada local, é o que está na Constituição Federal

e na Lei Orgânica do SUS. Mas isso significaria romper com a lógica atual, privatiza

-da, fisiologista, corporativista. Eu me nego a defender mais dinheiro para a Saúde se

não for para debater também para onde esse dinheiro vai.

E veio também a desconstrução do arcabouço jurídico do SUS. É muito

co-mum nós dizermos: “O SUS é perfeito no papel, mas na prática é diferente”. Con -cordo, mas temos que atentar que até para chegar ao ponto em que chegamos, da diferença quase absoluta do que existe no papel e no que temos de fato, houve todo um processo, uma disputa política, um debate ideológico, um debate jurídico também. Os senhores do poder trataram, do ponto de vista jurídico, de fazer aquilo que era necessário para o processo de desconstrução. E como isso aconteceu? É um debate complexo. Tenho dito muito que não falta mais lei para nada. O Brasil é o país que tem mais lei do mundo, para absolutamente tudo. O problema é que a gente tem uma cultura criada na Casa Grande que continua em vigor, e as leis valem desde que interessem aos seus inquilinos. Se for para a senzala, não vale, essa é a questão.

Na Constituição Federal e na Lei Orgânica do SUS, está escrito que o setor privado é complementar em relação ao SUS, que o SUS só vai contratar quando não tiver disponibilidade. Na prática, inverteram isso, promoveram um brutal processo de contratação do setor privado, de forma substitutiva ao público. E, quando a gente ia questionar, diziam: “Estamos apenas cumprindo a Constituição, contratando de

forma complementar o setor privado”. Cheguei a ouvir de dirigentes de entidades médicas, tentando justificar a contratação de cooperativa médica: “o Governo não

tem condições de fazer concurso para médico e nós, médicos, apresentamos a

al-ternativa das cooperativas”. Isso é de uma má fé...! Fico chocado com esse tipo de

coisa. Até porque cooperativa não é ação de saúde, é intermediação de mão-de-obra.

Mas, enfim, começaram todo esse processo usando a legislação a seu favor. Aí veio

também o Decreto 2.271, de 07 de julho de 1997, das terceirizações. Fernando Hen-rique Cardoso o editou. Estabelecia a possibilidade de terceirização da mão-de-obra em áreas meio, mas sabíamos, na época, que, de fato, era para tudo. Todos sabemos

No documento contradições e desafios para a saúde (páginas 91-103)