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Fundamentos históricos e descrição

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 46-49)

Os sistemas de uso comum nas regiões de colonização antiga podem ser observados sob as mais variadas formas e com certos aspectos fundamentais comuns, tanto de natureza histórica quanto relativos ao tipo de agricultura desenvolvida. Tais aspectos bem os distinguem, em termos qualitativos, daqueles referenciais históricos geralmente acionados e concernentes às “sobrevivências” e “vestígios feudais”. Contrariando as interpretações de cunho evolucionista, observa-se que antes mesmo daqueles sistemas mencionados terem suas bases assentadas em outros modos de produção, como o escravismo ou o feudalismo, representam, em verdade, produtos de antagonismos e tensões peculiares ao próprio desenvolvimento do capi- talismo. Constituem-se, por sua vez, paradoxal e concomitantemente, em modalidades de apropriação da terra, que se desdobraram marginalmente ao sistema econômico dominante. Emergiram, enquanto artifício de auto- defesa e busca de alternativa de diferentes segmentos camponeses, para assegurar suas condições materiais de existência, em conjunturas de crise econômica também cognominadas pelos historiadores de “decadência da grande lavoura”. Foram se constituindo em formas aproximadas de corporações territoriais, que se consolidaram notadamente em regiões periféricas, em meio a múltiplos confl itos, num momento de transição em que fi ca enfraquecido e debilitado o poderio do latifúndio sobre populações historicamente submissas (indígenas, escravos e agregados).

Tornaram-se formas estáveis de acesso e manutenção da terra, que foram assimiladas, sobretudo, nas relações de circulação. Distribuíram-se de ma- neira desigual e descontínua por inúmeras regiões geográfi cas sem guardar necessariamente maiores vínculos entre si, mas quase sempre cumprindo função de abastecimento de gêneros alimentícios (farinha, arroz, feijão) aos aglomerados urbanos regionais.

Vale esclarecer, todavia, que se há, por um lado, um sem-número de situa- ções nas quais a disfuncionalidade explica a tolerância para com as formas de uso comum, existem, por outro lado, tentativas outras que conheceram medidas fortemente repressivas e completo aniquilamento, em especial, quando imbricadas em manifestações messiânicas e de banditismo social. No bojo desses movimentos religiosos e de rebeldia, especialmente em fi ns do século XIX8 e primeiras décadas do século XX,9 ocorreram tentativas

de estabelecer novas formas de relações sociais com a terra. Promulgaram que a terra deveria ser tomada como um bem comum, indivisível e livre, cuja produção resultante seria apropriada comunalmente. Tanto no sertão nordestino quanto no Sul do país tais movimentos, ao conhecerem uma expansão e desenvolverem o que apregoavam, foram considerados uma ameaça ao sistema de poder. Ao estimularem o livre acesso à terra, fora de áreas tidas como periféricas, contrastavam vivamente com os mecanismos coercitivos adotados nas grandes propriedades, encerrando “grave ameaça” que fi ndou coibida pela força das armas.

Do mesmo modo foram duramente reprimidas, mas não necessariamen- te aniquiladas em toda sua extensão, aquelas tentativas de se estabelecerem territórios libertos, que absorviam escravos evadidos das grandes fazendas de algodão e cana-de-açúcar (Almeida, 1983, p.156-87). Estas últimas formas conheceram sua expressão maior com a multiplicação de quilombos nos séculos XVIII e XIX, encravados em locais de difícil acesso, inclusive nas regiões de mineração aurífera. Lograram êxito, em inúmeras situações, na manutenção de seus domínios.

Os sistemas de uso comum podem ser lidos, neste sentido, como fenô- menos fundados historicamente no processo de desagregação e decadência de plantations algodoeiras e de cana-de-açúcar. Representam formas que emergiram da fragmentação das grandes explorações agrícolas, baseadas na grande propriedade fundiária, na monocultura e nos mecanismos de imobilização da força de trabalho (escravidão e peonagem da dívida). Compreendem situações em que os mesmos proprietários entregaram, doaram formalmente ou abandonaram seus domínios diante da derrocada. Entenda-se que se tratavam de terras tituladas, já incorporadas formalmente ao mercado desde, pelo menos, a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850,

8 Para aprofundamento, leia Cunha (1973) e Facó (1980). 9 Leia Queiroz (1977) e Holanda (1983, p.15-21).

a qual dispunha sobre a mediação, a demarcação e a venda das chamadas “terras devolutas do Império”. Em certa medida ocorre uma reversão numa tendência tida como ascensional de estabelecimento de domínios privados com valores monetários fi xados.

As fl utuações de preço dos produtos primários no mercado internacional provocaram sucessivas desorganizações no sistema produtivo das grandes explorações monocultoras. Antes mesmo da abolição da escravatura, que parece não servir como marco institucional que tenha favorecido esses sistemas de uso comum da terra, registram-se múltiplos casos de desmem- bramento e desagregação de grandes propriedades fundiárias. Em termos econômicos, o resultado mais imediato desse processo de dissolução, que se intensifi cou no fi nal do século XIX em regiões cujas grandes explorações não lograram introduzir inovações tecnológicas ou adotar agriculturas comerciais assentadas em novas relações de trabalho, consistiu no afrou- xamento dos mecanismos repressores da força de trabalho e na formação de um campesinato, congregando segmentos de trabalhadores rurais que viviam escravizados ou imobilizados naquelas unidades produtivas. Em diferentes situações examinadas, conforme se verifi cará adiante, registra- se que este campesinato pós-plantation não procedeu necessariamente a uma divisão da terra em parcelas individuais. A garantia da condição de produtores autônomos, uma vez ausente o grande proprietário ou por demais debilitado o seu poder, conduziu a formas organizativas, sendo os ditames de uma cooperação ampliada e de formas de uso comum da terra e dos recursos hídricos e fl orestais. Tais formas se impuseram não somente como necessidade produtiva, já que para abrir roçados e dominar áreas de mata e antigas capoeiras uma só unidade familiar era insufi ciente, mas, sobretudo, por razões políticas e de autopreservação. Os sistemas de uso comum tornaram-se essenciais para estreitar vínculos e forjar uma coesão capaz, de certo modo, de garantir o livre acesso à terra diante de outros grupos sociais mais poderosos e circunstancialmente afastados. Certa estabilidade territorial foi alcançada pelo desenvolvimento de instituições permanentes, com suas regras de aliança e sucessão gravitando em torno do uso comum dos recursos básicos. Este passado de solidariedade e união íntima é narrado como “heróico” pelos seus atuais ocupantes, mais de um século depois, e também visto como confi rmação de uma regra a ser obser- vada para continuarem a manter seus domínios. Para além da representação idealizada, destaca-se que estabeleceram uma gestão econômica peculiar, ou seja, não necessariamente com base em princípios de igualdade, mas consoantes diferenciações internas e interesses nem sempre coincidentes de seus distintos segmentos.

Ao contrário do que poderiam supor as análises deterministas, verifi ca- se que há formas de uso comum da terra, as quais consistem em processos sociais resultantes de contradições do próprio desenvolvimento do capi-

talismo. Dessa forma é que foram harmonizados de maneira consolidada interesses de diferentes segmentos camponeses. Assim, os mecanismos que nas formulações ortodoxas deveriam de modo fatal os destruir ou absorver constituem, justamente, suas fontes e determinações principais. Não teria ocorrido nestes casos uma transformação em proletário do ex-escravo e do camponês subjugados ao latifúndio. Verifi ca-se o acamponesamento do pri- meiro e uma redefi nição da condição do segundo, transformado, conforme expressão da literatura econômica, em campesinato livre.

Esses segmentos de camponeses e seus descendentes passaram a se auto- representar e a designar suas extensões de acordo com denominações especí- fi cas atreladas ao sistema de uso comum. A noção corrente de terra comum é acionada como elemento de identidade indissociável do território ocupado e das regras de apropriação, que bem evidenciam, por meio de denominações específi cas, a heterogeneidade das situações a que se acham referidas, a sa- ber: terras de preto, terras de santo, terras de Irmandade, terras de parentes, terras de ausente, terras de herança (e/ou terras de herdeiros) e patrimônio.

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 46-49)