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Assim como a questão de construção de identidade é importante para entender o consumo por uma perspectiva cultural, o futebol e as torcidas de futebol em específico também podem ser entendidos a partir do processo de construção de identidades sociais (OLIVEN e DAMO, 2001). Os fortes sentimentos e o profundo envolvimento demonstrados por torcedores em todo o mundo passam necessariamente, afirmam Oliven e Damo (2001), por esse processo.

Um dos pontos que influenciam o comportamento das torcidas de futebol é a afirmação das diferenças culturais. Exigir esse reconhecimento “significa

expressar uma diferença. Um grupo se afirma em oposição ou contraste a outros grupos”, afirmam os Antropólogos Oliven e Damo em sua obra “Fútbol y

Cultura”, de 2001. Os autores identificam que as torcidas de futebol podem ser

entendidas como metáforas dos Estados-nação, que articulam um passado real ou imaginário, o culto à tradição, e a comunidade de sentimento com o progresso e a modernidade. Nesse sentido, os sentimentos profundos despertados pelo futebol podem transformar-se em violência, da mesma forma que a lealdade aos Estados-nação faz com que pessoas aceitem ir à guerra. Afirmam que o futebol, nesse contexto, “passa a ser uma forma lúdica de substituir a guerra por um jogo com vencedores e vencidos” (OLIVEN e DAMO, 2001, p. 21), o que é coerente com o exposto por Elias (1980) e Elias e Dunning (1985).

O amor pela região ou país gera um sistema de lealdades que pode ser comparado à lealdade entre torcida e clube de futebol. Ser de uma torcida significa ser fiel e comprometer-se com um clube, sendo um ato de deserção negar-se a lutar em tempos de necessidade ‒ o que, em muitos casos, nas guerras entre nações, significa a morte (OLIVEN e DAMO, 2001). Afirmam ainda que, apesar de estar sendo cada vez mais praticado por mulheres, o futebol pode ser considerado como um ritual essencialmente masculino, e que o futebol “é, em certo sentido, uma ‘luta de machos’ similar ao que ocorre no reino animal” (OLIVEN e DAMO, 2001, p. 23).

O futebol também pode ser entendido como uma linguagem e, em alguns casos, um código quase obrigatório para os homens. Em países ou regiões onde o futebol é popular, parte-se do pressuposto de que todos entendem o assunto e têm vontade de falar sobre ele. Assim, afirmam Oliven e Damo (2001), o futebol “passa a ser uma forma de falar sobre o país e sobre a identidade nacional”. Os significados que as pessoas atribuem à forma de uma seleção nacional jogar, por exemplo, servem como entendimento, pelo menos em parte, da identidade nacional. “A ‘alma’ de um país ou de uma região se traduziria no modo de jogar futebol” (OLIVEN e DAMO, 2001, p. 24).

Afirmam ainda que o futebol deve ser visto como uma prática que mobiliza energia e sentimentos de milhões de pessoas, que põem nele não só energia física, mas também afeto e paixão, e que definem sua relação com grupos

desde o nível local até o nacional. Nesse processo, ocorre a atribuição de significados às ações humanas, a descoberta de diferenças e a apropriação e reelaboração das manifestações culturais (OLIVEN e DAMO, 2001), não devendo o torcedor ser entendido como um simples repositório inerte dos significados culturais impostos por um poder dominante via mídias de massa.

O futebol é um fenômeno da cultura moderna que se substancia pelas relações sociais e pelos laços afetivos que se estabelecem para dentro de certos grupos e com oposição a outros. Forma-se uma sociabilidade distinta da tipicamente identificada com a modernidade (OLIVEN e DAMO, 2001). Hobsbawm (1884, apud OLIVEN e DAMO, 2001) chama o futebol de “religião laica da classe trabalhadora” (p.45). Nessa linha, Oliven e Damo afirmam:

“[E]xiste uma preponderância ontológica do coletivo sobre o individual (...) isso não significa que o coletivo está mais além de nosso alcance, mas está em cima, nos transcende. Por isso mesmo o coletivo é sagrado e nos remete à esfera dos valores compartilhados, onde prevalece a vontade do grupo frente aos interesses individuais, considerados mundanos” (OLIVEN e DAMO, 2001, p.58).

No entanto, no futebol, os grupos estruturam-se a partir do conflito, conforme a configuração do jogo. Difere-se, então, da religião, na medida em que esta se fundamenta no consenso. Nos esportes, a violência simbólica e a segmentação são privilegiadas, como forma de manter a excitação. Nesse sentido, o sagrado no futebol difere do sagrado no religioso. Também pela configuração coletiva do jogo, os torcedores pensam-se como coletividades que transcendem aos indivíduos que dela participam (OLIVEN e DAMO, 2001). Oliven e Damo (2001) afirmam que isso pode ser observado no comportamento das torcidas organizadas e, em especial, nas relações que constroem para alianças e conflitos. Acreditam que estas se organizam como “bandos”, que pensam como bandos, mas não exatamente como tribos urbanas.

DaMatta (1982, apud OLIVEN e DAMO, 2001) vê o futebol como um “drama social”, como um ritual a partir do qual se expressam códigos, valores e atitudes que têm a ver com a esfera mais ampla da sociedade. Essa realidade pode ainda ser apreendida de diversos pontos de vista, como identidade nacional, coletividade, masculinidade, negociação de códigos de honra, de festa, de arte e de espetáculo (OLIVEN e DAMO, 2001).

Aspectos diretamente ligados a consumo e cultura no futebol também foram identificados por Damo (1998). O autor notou, por exemplo, a existência de hierarquias relacionadas ao valor do ingresso diferenciado para as diversas segmentações espaciais do estádio. Essas diferentes posições no estádio de futebol, por sua vez, oferecem visões mais ou menos privilegiadas do jogo e, por consequência, diferentes possibilidades de interpretação da partida. Essas diferenças posteriormente podem ter influência nas interações entre torcedores no seu dia a dia, nos bate-papos sobre futebol, diferenciando a posição que cada um ocupa nesse universo.

2.5.1 Globalização e profissionalização do futebol

Um ponto importante para a compreensão do papel da relação entre produtores e consumidores no consumo vem do conhecimento gerado pelos estudos sobre globalização e movimentos de profissionalização mundial. Segundo esses estudos, a lógica de mercado vem gradualmente tomando conta do universo do futebol, por meio do processo de globalização. A racionalização das diversas facetas do esporte abre as portas para a lógica de mercado e, portanto, para a crescente busca de maior venda de mercadorias e serviços, havendo, assim, impacto no consumo.

Para Andrews e Ritzer (2007):

“Virtualmente todos os aspectos das instituições esportivas globais (corpos diretivos, ligas, times, eventos e atletas individuais) são agora inconscientemente orientados e definidos pelos processos inter-relacionados de: ‘corporativização’ (a gestão e o marketing das

entidades esportivas de acordo com motivo de lucro);

espetacularização (a primazia da produção de experiências orientadas - pela mídia - ao entretenimento); e, comoditização (a geração de muitas correntes de receita relacionadas ao esporte) (ANDREWS e RITZER, 2007, p.140).

Ou seja, a infraestrutura do esporte apresenta alto grau de uniformidade global. Dentro dessa lógica está a FIFA (Fédération Internationale de Football

Association), o ápice da pirâmide de governança mundial do futebol, seguida

por corpos governantes continentais, associações e confederações nacionais, regionais e locais, os vários clubes de futebol e os torcedores que sustentam a base da pirâmide (GUILIANOTTI e ROBERTSON, 2004).

Exemplos concretos dessa realidade estão na modernização do estádio Beira-Rio, do Sport Clube Internacional (http://www.internacional.com.br/), e na construção das arenas do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense (http://arena.gremio.net/), da Sociedade Esportiva Palmeiras (http://www.palmeiras.com.br/) e do Sport Club Corinthians Paulista (http://www.corinthians.com.br/portal/), que serão erguidas também em virtude da realização da Copa do Mundo FIFA de 2014 no Brasil. A construção desses estádios de acordo com o modelo FIFA (www.fifa.com) implicará em uma grande mudança nas relações dos clubes com seus torcedores/consumidores. A diferença dos estádios atuais para os novos são imensas e apresentam claras evidências de conformidade com os processos de “corporativização”, “espetacularização” e “comoditização” descritos por Andrews e Ritzer (2007). Além disso, Andrews e Ritzer (2007) (ver também Giulianotti e Robertson, 2004) tratam dos diversos aspectos de adaptação dessas forças a culturas locais, caracterizando movimentos de “glocalização”. Para eles, é a partir daquela infraestrutura global que ocorrem as adaptações, muitas vezes superficiais, às microparticularidades (cidade, região ou nação). Esse processo geralmente ocorre com o uso de práticas, times e celebridades esportivas locais. É o que eles chamam de “receitas generalizadas de localidade” (ANDREWS e RITZER, 2007, p. 140), por serem formas estandardizadas de tentar “parecer mais local”.

Todo o referencial teórico revisado aqui serviu como uma base contra a qual contrastar a realidade empírica observada na busca da compreensão da realidade cultural da relação entre produtores de marketing e consumidores. Os pontos de harmonia e tensão identificados a partir dos significados que atribuem ao clube de futebol, ao pertencimento clubístico, aos torcedores/consumidores e ao marketing puderam ser identificados em grande parte em função dos conceitos aqui aprendidos.

3. Método

O objetivo nesta sessão é discutir o que é considerado conhecimento nesta pesquisa, e a forma pela qual o conhecimento foi acessado para chegar ao produto final desta dissertação. Sendo assim, o capítulo de método está estruturado da seguinte forma: começa com uma breve discussão da epistemologia na qual este trabalho está baseado; depois, passará pelo relato da escolha do contexto específico de pesquisa, no caso as razões da escolha pelo clube de futebol Sport Club Internacional e respectivos produtores de

marketing e consumidores; em seguida, será abordada a fase de coleta de

dados; na sequência, ocorrerá o relato sobre como foram analisados os dados; e, por fim, trar-se-á uma discussão sobre as experiências de campo à luz dos desafios da pesquisa de inspiração etnográfica.