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Gênero e Movimento Feminista no Brasil

No documento Tese Erly Maria (páginas 40-46)

Capítulo 2 Estreia do Matriarcado em Terras de Oligarcas Patriarcais: a

2.2 Gênero e Movimento Feminista no Brasil

Na língua portuguesa o termo gênero apresenta dificuldades de significação por ser definido como um “conceito geral que engloba todas as propriedades comuns que caracterizam

um dado grupo ou classe de seres ou de objetos” (Houaiss & Vilar, 2004). Nesse sentido abrange simultaneamente várias categorias, diferentemente da definição da palavra na língua inglesa que remete diretamente à condição física e/ou social do masculino ou feminino22. Desse

modo, o substantivo masculino pátrio, ao ser usado, requer especificações.

Por certo tempo, ao se falar em gênero, referia-se às mulheres, sempre tidas como vitimas da opressão, dominadas pelo poder masculino, sujeitos a-históricos, sem se levar em consideração a visão relacional decorrente da conjunção entre homens e mulheres, em uma visão intrinsecamente feminista.

A obra O Segundo Sexo, publicado originalmente em 1949, por Simone de Beauvoir, é considerada por autores como Safiotti como o marco inicial dos estudos de gênero. Ao declarar “ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”, Beauvoir expressou “o único consenso que existe entre as feministas a respeito de gênero” (Safiotti, 2000, p. 22), isto é, que ele é uma construção social. Mesmo não fazendo uso do termo gênero para se referir ao processo de «tornar-se mulher”, a autora francesa tentou desconstruir a ideia de primazia e inexorabilidade da determinação biológica em detrimento de outras condições como as sociais e políticas.

Como registra Safiotti (2009), a primeira conceituação de gênero encontra-se em estudo de Stoller (1968), mas o termo ganhou repercussão a partir dos estudos de Rubin (1975), ao colocá-lo sob uma perspectiva relacional.

Nos anos 80 do século XX, o movimento feminista americano cuidou de desvincular a ideia de sexo da de gênero, uma vez que “as palavras na maioria das línguas têm gênero, mas não têm sexo”, como observa Pedro (2005, p. 2). Agindo assim, as feministas, pretendiam “reforçar a ideia de que as diferenças que se constatavam nos comportamentos de homens e mulheres não eram dependentes do ‘sexo’ como questão biológica, mas sim eram definidos pelo ‘gênero’ e, portanto, ligadas à cultura” (Pedro, 2005, p. 2), e consequentemente permeáveis a modificações. O sexo seria então constitutivo do gênero, incorporando o biológico como a base sobre os quais os significados socioculturais são constituídos (Nicholson, 2000). Nesse sentido, se concebe o gênero como maleável e o sexo biológico como fixo ou indiscutível, embora não determinante das definições coletivas de masculinidade e feminilidade (Campangnoli, 2010)

Dessa forma, a opção pela categoria gênero marca o desejo de desvincular-se da ideia de sexualidade, implícita nas determinações biológicas, e ir à procura de uma construção

22 The physical and/or social condition of being male or female – Cambridge on line. Acedido a 30 de Janeiro de 2013 em: http://dictionary.cambridge.org/dictionary/british/gender_1?q=gender.

identitária que refletisse as dimensões culturais, psicológicas e sociais constituintes da masculinidade e da feminilidade. No entender de Scott (1995. p. 6) a adoção do termo gênero enfatiza o “sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina a sexualidade”.

Ao conceituar gênero, o Programa Nacional de Direitos Humanos enfatiza a importância dos contextos históricos e sociais em detrimento dos aspectos biológicos, ligados ao sexo, uma vez que se refere ao:

“conjunto de atributos negativos ou positivos que se aplicam diferencialmente a homens e mulheres, inclusive desde o momento do nascimento, e determinam as funções, papéis, ocupações e as relações que homens e mulheres desempenham na sociedade e entre eles mesmos. Esses papéis e relações não são determinados pela biologia, mas, sim, pelo contexto social, cultural, político, religioso e econômico de cada organização humana, e são passados de uma geração a outra”. (Programa Nacional de Direitos Humanos, 1998, p. 12 )23

A continuidade histórica dos papeis sociais, segundo essa conceituação, garante a permanência dos atributos culturais, políticos, religiosos, econômicos, ligados ao masculino e ao feminino, pois são transmitidos pelas diversas formas de socialização. Assim, o conceito de gênero implica uma relação socialmente construída, pois como observa Scott (1995, p. 89), como elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, o gênero "fornece um meio de decodificar o significado e de compreender as complexas conexões entre várias formas de interação humana".

Machado (1998) entende que um dos pilares para a construção de um novo paradigma metodológico pelas análises de gênero é exatamente essa “ruptura radical entre a noção biológica de sexo e a noção social de gênero” (p. 108). Assim, ao se falar em estudos de gênero não está se restringindo ao estudo de mulheres, uma vez que a “construção social de gênero perpassa as mais diferentes áreas do social” (p. 109).

Scott em entrevista concedida a Miriam Grossi (1998, p. 1) coloca textualmente: “Quando falo de gênero, quero referir-me ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se refere apenas às ideias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas quotidianas, como também aos rituais e a tudo que constitui as relações sociais”. A preocupação de Scott era

23 Programa Nacional de Direitos Humanos (1998).Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Acedido a 20 de Dezembro de 2012 em http://www.sedh.gov.br/.

compreender gênero como uma categoria historicamente elaborada, uma vez que “o gênero é a organização social da diferença sexual” (p. 1). A construção do sentido de realidade reflete a diferença sexual e dessa conjugação pode-se derivar a organização social, em seus diversos contextos históricos.

O gênero não define as diferenças físicas entre homens e mulheres, mas dá sentido a elas por meio de um saber social e culturalmente existentes, que provê significados aos símbolos que distinguem uma relação de poder e dominação. A questão do poder, entendido na perspectiva weberiana, de probabilidade de imposição da própria vontade em um contexto social relacional, é por sua vez, um dos campos de articulação do gênero.

Quando se fala em gênero, fala-se, pois, de poder, na medida em que as relações existentes entre homem/mulher são assimétricas e há sempre de forma explícita ou velada uma relação de subjugação patriarcal.

Para Saffioti (2004) o conceito de gênero vai além do conceito de patriarcado. Isto se deve, segundo a autora, porque o gênero está presente desde os primórdios da humanidade, enquanto o patriarcado seria um fenômeno particularmente ligado à industrialização do capitalismo. Além disso, sublinha a referida autora, desigualdade e opressão são características necessárias ao patriarcado.

Antes que se falasse em gênero, e essa fosse uma categoria instituída, muitas brasileiras se sobressaíram pela luta e tenacidade com que procuravam marcar presença e defender sua participação ao lado dos homens em acontecimentos que se estenderam do Brasil Colonial ao Brasil Republicano. Dentre essas pioneiras, citadas por Quinteiro (sn) encontram- se:

“Ana Pimentel, nos negócios de Martim Afonso de Souza; as índias Bartira e Paraguaçu, nas alianças entre portugueses e indígenas; as mulheres paulistas do século XVII ao encorajarem maridos, filhos, pais e irmãos à desforra, após a derrota contra os colonizadores na guerra dos Emboabas. Muitas mulheres escravas destacaram-se na luta contra a escravidão: Teresa, Zeferina, Ludovina, Germana; como heroínas da guerra da Independência: Maria Quitéria, Bárbara Alencar, Ana Lins; e do Paraguai: Anita Garibaldi, na luta pela abolição dos escravos e pela República: Francisca Amália, Maria Tomásia, Chiquinha Gonzaga etc..” (s.p)

É digna de nota ainda a ação de mulheres precursoras do Movimento Feminista, que com a fundação de jornais – Jornal de Senhoras – 1852, Sexo Feminino – 1873 e revistas – Família – 188024, dão voz àquelas que até então não eram ou não mereciam ser ouvidas.

Do ponto de vista da ação política, propriamente dita, registra-se a atuação da professora Deolinda Daltro25, a quem se atribui a fundação do Partido Republicano Feminino,

em 1910, partido esse criado com objetivo de mobilização feminina em torno da conquista do direito ao voto, que embora não tenha se solidificado como agremiação partidária, desempenhou papel importante na disseminação das ideias sufragistas.

Assim, paulatinamente, as mulheres vão adentrando no espaço público, alargando as fronteiras domésticas, pavimentando o terreno aonde o Movimento Feminista Brasileiro viria a se organizar e frutificar.

O Movimento Feminista Brasileiro pode ser entendido a partir de três grandes ondas (Pinto, 2003). A primeira se formou com o movimento sufragista, a luta pelo voto, deflagrado por mulheres de classe média e alta, em geral familiarizadas com a política vivenciada nos lares juntamente com pais, irmãos e maridos e que lutavam pelo direito de igualdade política. Essa primeira onda começou com a Proclamação da República, em 1880 e não se pode dizer que terminou em 1934, quando esse direito ao voto foi conquistado, uma vez que a luta de mulheres como Bertha Lutz – líder da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e Carlota Pereira de Queirós, primeira deputada federal e membro da Assembleia Nacional Constituinte de 1934 foi muito além do movimento sufragista. Conforme observam Nader e Rangel (2012, p. 231) essas pioneiras “estudaram cuidadosamente a elasticidade da mentalidade patriarcal que dominava a sociedade para a qual se dirigiam de maneira a moldar suas reivindicações e metas às possibilidades daquela época”. Lutaram pelo direito à educação de qualidade, à justa remuneração pelo trabalho, pela questão de proteção à maternidade e à infância.

No entanto, por mais que fossem bem-vindas as conquistas legais obtidas, na prática não lograram muito êxito. Assim, mesmo tendo conseguido o direito ao voto, por exemplo, isto não representou um fator significativo na esfera política.

A segunda onda é coincidente com o período da ditadura militar nos anos de 1970, no qual as mulheres lutaram contra a opressão militarista ao mesmo tempo em que se opunham à hegemonia masculina nos costumes, no sexo e no direito ao exercício do prazer.

24 Conforme informação obtida em Quinteiro, Maria da Conceição (sn). Mulheres em busca do poder político. Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Acedido a 6 de Maio de 2013 em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7040.pdf.

Diferentemente do que se pensava «lugar de mulher é na cozinha», as mulheres saíram às ruas e intensificaram a luta contra o regime autoritário, mobilizando novas redes de organização, clamando pela anistia – Movimento Feminino pela Anistia –, pelo fim da repressão e pela volta à democracia. Filiaram-se a movimentos de esquerda, a sindicatos, associações de mulheres trabalhadoras e se multiplicaram como seres políticos.

No cenário internacional, a segunda onda engendrou-se no contexto de intensos debates desencadeados em movimentos e manifestações americanos e europeus, como a de maio de 1968 na França. Tais movimentos tornaram clara a importância de se compreender, em um nível teórico, a subordinação social e o papel político, quase invisível, reservado às mulheres.

Dessa forma, começam a proliferar estudos acadêmicos sobre a temática, que por múltiplos caminhos teóricos tentavam sistematizar abordagens feministas vinculadas ao cotidiano, às relações familiares, à sexualidade, ao trabalho. Devido a sua abrangência plural o estudo dessa temática passou a recorrer a campos diversos do saber e a questionar pressupostos básicos de campos disciplinares hegemônicos. Como consequência esses movimentos fomentaram várias iniciativas políticas, tanto no panorama internacional como nacional, gerando documentos e assinaturas de tratados patrocinados pela Organização das Nações Unidas, dentre os quais se podem citar: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)

A terceira onda é marcada pela participação da mulher no processo de redemocratização do país e como assevera Pinto (2003), na construção de um «feminismo difuso», que passa a discutir as diferenças entre as próprias mulheres, a participação em esferas institucionais que possam modificar padrões de cultura política, tentativas de reforma do Estado, fazendo parte, por exemplo, da Assembleia Constituinte para elaboração da nova Carta Magna de 1988, buscando ainda preencher espaços de liderança em movimentos de mulheres de cunho mais democraticamente abrangentes.

O movimento feminista expande sua atuação e diversifica seus espaços de militância. Encontra nos partidos político lugar privilegiado para intensificar sua ação e dar visibilidade à participação feminina. Temas como a igualdade entre os sexos, violência contra a mulher, direitos reprodutivos, discriminação no trabalho, tão caros ao Movimento, encontraram guarida nos partidos políticos que passam a incorporá-los em suas agendas.

O exercício democrático só se completa quando existe participação equitativa das mulheres nas instâncias do poder. Na teoria, as barreiras foram derrubadas, mas na prática, ao buscarem os canais de participação, as mulheres se deparam com obstáculos de outra ordem. Ao procurarem os partidos políticos, território legítimo de abrigo político-ideológico, se deparam com interesses personalistas, entraves econômicos e fisiologismos de todas as espécies. Então, mesmo com garantias legais, as mulheres não têm conseguido superar a sub- representação numérica na ocupação de cargos políticos nas diversas alçadas do Poder.

No documento Tese Erly Maria (páginas 40-46)