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1.2 A noção de gênero textual

1.2.1 Gênero na perspectiva de Bakhtin

A base teórica que assumimos em relação a gênero é tributária da concepção enunciativo-discursiva do filósofo russo da linguagem Mikhail Bakhtin. Este autor ([1952-53] 2003:262) define gênero como “tipos relativamente estáveis de

enunciados” e, neste sentido, a natureza verbal dos gêneros refere-se à forma

padrão de estruturar a comunicação no processo de interação verbal em uma determinada comunidade. Nas palavras de Bakhtin:

o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. (Ibidem: 261)

Assim, os gêneros do discurso8 são caracterizados pelo conteúdo temático (tema), estilo (marca lingüística) e construção composicional (organização textual) que “estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado” (Ibidem: 262) e possibilitam a comunicação verbal.

Os diferentes gêneros admitem uma série de oscilações, de maneira que não são totalmente fixos. A partir dessa perspectiva, Bakhtin (2003) afirma que os gêneros não se constituem em uma instabilidade absoluta, já que, se assim fosse, isso impediria o acesso a eles pelo interlocutor, obstaculizando a sua compreensão, além de impossibilitar a comunicação e a interação dentro de determinada esfera social. Dessa forma, teríamos que criar um novo gênero para cada ato de fala. Sob o mesmo ponto de vista, Rodrigues (2005:164) sustenta que o gênero é “uma

tipificação social dos enunciados que apresentam certos traços (regularidades) comuns, que se constituíram historicamente nas atividades humanas, em uma situação de interação relativamente estável, e que é reconhecida pelos falantes”.

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Rojo (2005) constata que o termo gênero discursivo/do discurso é utilizado por pesquisadores que adotam as idéias do pensador russo Bakhtin ou mencionam estudos de autores bakhtinianos.

É de se salientar ainda que os gêneros estão relacionados a uma situação social de interação discursiva correlacionados a uma determinada esfera da atividade e comunicação humanas, pois ao estabilizar essa interação, dentro de uma esfera social, locutor e interlocutor compreendem o processo de formação e funcionamento de um gênero com uma finalidade discursiva estabilizada. A importância que Bakhtin (Ibidem.: 282-283) dá à situação social de interação para a constituição e apreensão do gênero no processo interativo dentro do contexto comunicativo fica clara quando o autor afirma que:

a língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam.

Dentro dessa perspectiva, o enunciado passa a adquirir sentido em um contexto de interação social em que o locutor busca compreendê-lo a partir da relação com outros enunciados já constituídos por outros locutores, tornando o enunciado “real unidade da comunicação discursiva” (Ibidem.: 274).

De acordo com Brait (2005:95), “o dialogismo diz respeito às relações que se

estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que por sua vez, se instauram e são instaurados por esses discursos.” Assim, o enunciado é dialógico no sentido de que nenhuma

palavra que o locutor utiliza é neutra9, já que o interlocutor não procura as palavras em um dicionário, mas essas são marcadas pelo discurso do outro em uma interação verbal. Todo dizer está fundado em algum lugar além de apresentar uma reação de caráter responsivo em relação a enunciados anteriores. “Cada enunciado

é pleno de ecos e ressonância de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva.” (Bakhtin, Ibidem.: 297)

Bakhtin estabelece uma distinção entre dois grupos de gêneros que existem em uma sociedade: gêneros primários (simples) e secundários (complexos). Os

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“Há um conjunto de vozes do outro que provam o discurso do ‘um’. Porém essas vozes ao serem incorporadas a determinado discurso apagam a ordem do real e criam a ilusão de sentido único e o sujeito toma esse dizer como sendo seu.” (Guimarães, 2005:151)

primários se constituem nas situações de comunicação discursiva da vida cotidiana imediata (espontânea, não formalizada), como, por exemplo, as conversas informais, bilhetes, cartas, entre outros, apresentando uma situação de comunicação discursiva mais livre e criativa, normalmente caracterizados por um estilo mais familiar. Os gêneros secundários surgem de situações de comunicação mais complexas (da vida da ciência e da vida da arte) de maneira mais formalizada e especializada, como o gênero romance, livro didático, palestra, artigo acadêmico, entre outros. Estes gêneros são mais estáveis e normativos e requerem um estilo mais formal.

Na concepção de Bakhtin, a distinção entre os gêneros primários e secundários não está assentada na diferença funcional do gênero, mas na dinamicidade que marca seus modos de constituição, a saber, “nos secundários

haveria formas de dizer mais padronizadas, mais ou menos cristalizadas, enquanto nos primários a estabilização estaria mais sujeita ao movimento de mudança.”

(Gomes-Santos, 2003:33). Além disso,

a relação que os gêneros do discurso mantêm entre si é constitutivamente dialética – há um movimento de estabilização – instabilização constante. Assim, quando um gênero primário começa a alçar-se a uma maior estabilização, esse movimento mesmo produz já instabilização em gêneros secundários supostamente mais estáveis que mantêm relação com aquele.” (Ibidem.: 33)

Vale ressaltar ainda que os gêneros são muito heterogêneos e variam segundo as circunstâncias, a posição social e o relacionamento dos parceiros em uma dada esfera de comunicação discursiva.

Bakhtin (apud Souza, 1999:102) aponta algumas características relevantes para o funcionamento do gênero nos diferentes tipos de atividades sociais que são constituídas por um número variável de gêneros:

a) ao nascer, um novo gênero nunca suprime nem substitui quaisquer gêneros já existentes; b) qualquer gênero novo nada mais faz que completar os velhos, ampliando o círculo de gêneros já existentes;

c) cada gênero tem seu campo predominante de existência em relação ao qual é insubstituível;

d) a influência dos novos gêneros sobre os velhos contribui, na maioria dos casos, para a renovação e o enriquecimento destes.

Em síntese, o conceito de gênero em Bakhtin encontra-se no entremeio entre repetição e mudança, já que, por meio do gênero, o interlocutor expressa sua subjetividade (o gênero a escolher, escolhas léxico-gramaticais), porém sempre dentro dos limites que lhe são determinados, e dos quais não pode fugir sem provocar deslocamentos de sentido/reacentuações na comunicação de natureza social.