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genocídios da diferença.

Luis Antonio Baptista1

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscên- cia, tal como ela relampeja no momento de um perigo. (...) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é pri- vilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História.

As bétulas do campo polonês permanecem eretas. Lascas retira- das dos seus troncos testemunham a justaposição de tempos. Da pele desta árvore o passado ainda vive inconcluso à espera dos ventos do presente. As bétulas de Auschwitz continuam ao lado do arame farpa- do carcomido pelos anos; estão próximas também dos arames novos cuja missão é impedir o esquecimento do genocídio dos anos quaren- ta. São árvores que duram mais de cem anos. No campo polonês elas renovam a pele através do solo nutrido por gorduras e ossos do ou- trora. Para Didi-Huberman (2013) no ensaio Cascas, Auschwitz corre o risco de fazer da memória mera lembrança de um passado encer- rado, o lugar onde o ontem definitivamente concluído ensina-nos o

1 Professor Titular do Dep. de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPQ.

que deve ser extirpado; assentamento no qual a barbárie repousa ven- cida. Os arames novos, a reconstituição de alguns objetos do campo como se a paisagem fosse real, os produtos vendidos para não esque- cer, indicam uma proposta de memória que sentencia a conclusão do passado. O pesquisador de imagens, no ensaio Cascas, diz não a esta proposta. O campo de concentração polonês, retratado em suas fotos, contrasta com a pedagogia da lembrança de um ontem esgotado; as bétulas fotografadas, os escombros, caminhos em direção aos fornos, são imagens onde as datas são desfocadas; a realidade é implodida na compacidade do “era uma vez”. As imagens no ensaio enunciam que algo aconteceu, aconteceria e poderá acontecer. Objetos e paisagens fotografadas respondem a quem as observa, solicitam-nos continuar a contar histórias sem o protagonismo do olhar do observador. À seme- lhança das árvores que duram cem anos, as fotos denotam o sentido do testemunho; o testemunhar como narração vulnerável às forças do agora na pesquisa sobre o que passou. As imagens de Didi-Huberman ensaiam serem testemunhas de um passado vivo que se transfigura a cada registro, assim como quem as registra no ato de recolher os res- tos do que restou. Segundo o fotógrafo francês, apesar do mérito de lembrar a barbárie nazista, o campo corre o risco de afirmar-se como “museu de Estado”. Perigoso desafio para uma política da memória que aposta no testemunho como um desdobramento de narrativas não emudecidas pelo fim. O desdobrar que transtorna o narrador tor- nando anônima a dor narrada; anonimato onde a generosidade do ato humano não se inspira na fraternidade dos iguais. Desdobramento generoso, onde o anonimato permite que algo aconteça desvencilha- do das amarras da aura dos coletivos e dos previsíveis possíveis de se finalizar uma história.

Museificar o passado delega aos mortos a impossibilidade de nos interrogar, a exigir-nos atitudes às suas inquirições sobre o que vemos ou silenciamos. O “museu de Estado” em algumas situações sofre inu- sitados desafios; o passado vivo irrompe no campo desacomodando o tempo dos calendários.

os curadores deste mais que paradoxal museu de Estado choca- ram-se com uma dificuldade inesperada e dificilmente adminis- trável: na zona que cerca os crematórios IV e V na orla do bosque de bétulas, a própria terra regurgita constantemente vestígios das chacinas. As inundações provocadas pelas chuvas, em particular, trouxeram incontáveis lascas e fragmentos de ossos à superfície, de maneira que os responsáveis pelo sítio se viram obrigados a aterrá-lo para cobrir essa superfície que ainda recebe solicitações do fundo, que ainda vive do grande trabalho da morte.

Lascas, fragmentos, rastros de algo interrompido, trazidos por tem- pestades, inquirem a quietude do presente. Após a tempestade nada permanece incólume.

Inspirado no pesquisador de imagens, o que o passado próximo tem a nos dizer sobre o regurgitar da terra em solo brasileiro? O que pode nos interpelar um corpo em pedaços?

Renildo Jose dos Santos foi assassinado em 1993, na cidade de Co- queiro Seco, Alagoas. “Após ser violentamente espancado, teve suas ore- lhas, nariz e língua decepados, as unhas arrancadas e depois cortados os dedos. Suas pernas foram quebradas. Ele foi castrado e teve o ânus empalado. Levou tiros nos dois olhos e ouvidos, e para dificultar o reco- nhecimento do cadáver, atearam fogo em seu corpo. A cabeça, separa- da, foi encontrada boiando num rio.” Renildo era vereador de Coqueiro Seco. Orientação sexual anormal foi o motivo alegado pelos autores do crime. Após 13 anos, em 2006, os acusados foram a júri e condenados, um fazendeiro e dois policiais, mas respondem em liberdade. No jornal Utopia, de Porto Alegre, publiquei em 1993 o artigo A atriz, o padre e a psicanalista – os amoladores de facas. Neste texto denuncio a violência do ato homofóbico, assim como os efeitos políticos de determinados discursos de intelectuais e religiosos na manutenção da impunidade a estes crimes. A faca que esquartejou Renildo tinha aliados na religião e nas Ciências Humanas. Inspirado nas reflexões de Didi-Huberman, indago: que singulares forças deste Brasil contemporâneo amolam sin- gulares instrumentos genocidas? O que têm a dizer às urgências do pre- sente os pedaços de corpos regurgitados da terra alagoana?

O Pastor na TV afirma que o desejo de um homem por outro ho- mem, de uma mulher por outra mulher, é originado por traumas com a figura paterna, ou por abuso sexual na infância. O Pastor contesta as pesquisas da atualidade que indicam o componente genético na de- terminação do homossexualismo. A entrevistadora expressa indigna- ção, o corrige informando-lhe que o correto é homossexualidade ou homo afetividade; homossexualismo seria doença. Os movimentos sociais usam as redes sociais para denunciar a homofobia transmitida no programa. O Cientista, em resposta às declarações do Pastor, apre- senta dados científicos que indicam o componente genético como um fator importante na escolha de parceiros. Alguns movimentos sociais aplaudem os argumentos do Cientista. Orientação sexual, e não opção sexual, esclarecimento necessário para as palavras de ordem de deter- minadas campanhas contra a intolerância. O Pastor clama pela Graça Divina para o combate à desagregação da família. O Cientista apresenta a Ciência para explicar, segundo ele, a origem da homossexualidade. Certos movimentos sociais expressam ceticismo frente às novas desco- bertas da genética. A neutralidade científica é questionada. Lembram a história das práticas médicas dos corpos e das almas fabricadas pela racionalidade científica; recordam a história da mulher, das pesquisas nos campos de concentração na Alemanha, do louco, do negro, dos mi- seráveis, da criança na produção do destino destas vidas, tornando-as infames, dejetos ou saudáveis. A Bíblia e a Razão entram em choque. O grande número de assassinatos de homens que desejam homens no Brasil é omitido no programa. O Pastor e o Cientista concordam que a atração de um homem por outro homem possui uma origem a ser pesquisada. A entrevistadora também indaga sobre a origem. Opção ou orientação? – pergunta a jornalista com insistência. Nas redes sociais campanhas em defesa da diversidade sexual intensificam-se; é utilizada agora a expressão correta, segundo eles, orientação sexual. Respeito à diferença é a palavra de ordem. Não escolhemos os nossos parceiros, dizem alguns militantes. Temos que respeitá-los, nasceram assim, di- zem muitos, militantes ou não. O pastor clama pela Graça do Senhor. Segundo o religioso, devemos amar da mesma forma o gay e o bandi- do. A Graça divina ilumina este amor. O biólogo apresenta a verdade

da racionalidade científica contra os dogmas da religião. A sexualidade para os dois determinaria os destinos do psiquismo. Orientação sexual é a expressão politicamente correta proposta por alguns movimentos sociais. Matam-se muitos homens que desejam homens no Brasil. Res- peitar qual diferença? Qual Graça?

Da arte temos a Graça ofertada por um mundo sem Deus e sem a luz da Razão. Perigosa oferta. Não teríamos dela o bálsamo para a alma atormentada na busca da revelação da Verdade. Nenhuma iluminação ou serenidade efetivar-se-iam. Para a Graça profana a promessa do pa- raíso inexiste. A tormenta persistirá. O horizonte que delimita o céu do inferno, o bem do mal, a luz da treva, o humano do inumano será constantemente posto à prova. A Graça presenteada pela arte perturba, comove, dissolve formas cristalizadas por funções ou significados; co- move quando corrói impiedosamente a habitação de uma alegria ou de uma dor que diga eu; ela desassossega os coletivos dos iguais, maculan- do a diferença; é uma dádiva para os aprisionados em essências; uma benção para corpos determinados por destinos naturais ou celestiais. Ela destrói a estabilidade das fronteiras de pronomes pessoais, objetos, corpos e paisagens e, por meio desta destruição, insufla o desdobra- mento de travessias inesperadas. Faz de quem a usufrui a saída de si, desmancha identidades, provocando uma precariedade atenta ao Outro que aturde e oxigena; Outro que não é um exterior, ou interior, de qual- quer coisa ou psiquismo, mas afeto feito de carne, matéria viva criada pelo reino onde habita o inclassificável; reino onde os acontecimentos laicos não se repetem; eles aturdem, porém deixam marcas irreversí- veis. Milagre profano. A Graça ofertada pela arte impede que vida e morte sejam adjetivadas no mundo das esperanças, ou dos desesperos. Interpela a morte em vida na explosão de compactos significados do que seja viver. Morre-se muito quando se é contagiado por esta ofer- ta; uma morte constante efetuada pelo incansável exercício da liberda- de. Segundo o poeta Vinicius de Moraes, “a arte não ama os covardes”. Coragem perturbadora alheia à bravura épica do ato heróico. Utopias desatentas aos gritos e silêncios sujos de mundo não movem esta cora- gem. Ato profano contagiado pelo intolerável atento a dores e combates nem sempre visíveis; ato desejoso do improvável, do ainda não.

Na literatura, no cinema, na dança, na fotografia a dádiva da arte oferta-nos a ambiguidade das formas que antes se aprisionavam na cla- reza dos seus limites; lega-nos o susto provocado pelo gesto incerto, incitando-nos a estranhar universos familiares; destrói a diferença de- limitada por horizontes inquestionáveis. A Graça ateia embaça a iden- tificação de um eleito eu ou eles. Esta eleição seria uma Des-graça. No mundo dos impossibilitados do contágio da sua força, as formas di- vergem, diferenciam-se, comparam-se assentadas por seus horizontes imaculados. A des-graça produz dúvidas e as responde; afirma o que se é; intensifica o eco e a sombra das palavras na busca do reconhecimen- to; faz do corpo uma marca da predestinação que se efetua no despejo de outras presenças na sua carne; protege o Sujeito ameaçado da per- da do contorno dos seus confins; faz confessar; faz dizer eu; faz dizer somos; faz o corpo refletir uma única alma ou determinar-se por uma Natureza Morta. Na Des-graça nada morre ou vive no incansável devir das formas. Milagres laicos inexistem. Medo e culpa eterniza-se na pele dos des-graçados como tatuagem irremovível. A coragem da arte é uma afronta a Deus ou à Ciência. A diferença é uma sina.

Veado desgraçado tem que morrer. Esta é uma das palavras de or- dem que aciona o grande número de assassinatos de homens que dese- jam homens no Brasil. Não a morte da Graça laica que faz da diferença uma intensidade transtornadora. Kafka, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Charles Baudelaire, Pina Bausch, Cartola, Visconti, entre outros, legaram-nos o díspar fruto da coragem da arte, implacável destruidor, o que promove a dissolução de uma realidade encarcerada em si mesma, assim como a dissolução daquele que assiste a esta dissipação. A com- pacidade do que vemos no universo das naturalidades é implodida. Os homossexuais precisam de atenção e respeito porque sofrem. Os ope- radores destas palavras de ordem clamam pela tolerância, mas temem o desejo que não sabe dizer o seu nome; incomodam-se frente ao que não sabem nomear, localizar em seu devido posto. Tudo está preen- chido pela plenitude dos significados. Execram o vazio provocado pelo exercício da liberdade. Estes operadores não são intolerantes ao diverso, mas artífices de um modo particular de produção da diferença, uma modalidade enfraquecida, aprisionada pelos limites das suas bordas, até

mesmo quando aniquilada pelas armas. A impunidade destes crimes, segundo eles, é justificada pela responsabilidade da vítima; os homens que desejam homens procuram o seu algoz. O remorso os arrasta na di- reção do assassino. Outra palavra de ordem justifica o extermínio. Não acredito em veado feliz. No uso desta afirmativa as mortes são esque- cidas, banalizadas; a impunidade efetiva-se. Nos corpos destes homens assassinados só restam marcas de um sólido coletivo. O não identifi- cável destas vidas aniquila-se junto a outras presenças nestes corpos. Para a Des-graça do Pastor e a do Cientista, medos, culpas, a tristeza da cruz, o desejo como efeito de afetos, a verdade da Bíblia, insurgências, a cidade, a razão científica, os mortos do passado são extirpados da pele destes exterminados. Nenhuma mistura habita a pele. No extermínio a diferença é afirmada. São cadáveres imaculados. Os operadores da morte sem devir almejam manter o discurso da tristeza fundada na sina de ser o que se é.

Almejam também incluir à sina de ser o que se é uma alegria cons- tante; alegria fruto da essência de um hermético nós; alegres, mas infe- lizes, seriam efeitos do sofrimento psíquico, da heresia ou da genética. Os artífices da des-graça objetivam também manter vivo o perigo do desejo sem nome. Eles temem o transtorno da ambiguidade das for- mas, o indefinido tramado pela crueldade libertária da criação humana. Amedrontam-se quando a arte escapa da aura do artista, do suporte do belo, da mensagem edificante. Temem ainda mais quando ela invade o mundo como forma de existir. Invasão dissipadora das predestinações de qualquer espécie. Assusta-os, ou é objeto de desprezo, a aposta de uma arte sem artista e sem virtude. Para eles arte é apenas um adorno ou representação das luzes e sombras da humanidade. As cinzas de Re- nildo Jose dos Santos assim como as bétulas polonesas espreitam uma tempestade por vir.

“A arte não ama os covardes”, provoca-nos a coragem de Vinicius de Moraes. “O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno”, afirma a coragem de Clarice Lispector. O que acontecerá ao nosso presente quando restos de corpos da Polônia ou de Alagoas responderem ao nosso olhar?

Nota – Os nomes do programa, da apresentadora, do Pastor e do Cientista não foram mencionados pelo autor por uma aposta política. Informações sobre o assassinato de Renildo Jose dos Santos encontram- -se no site http://reporteralagoas.com.br.

Referências

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Revista Serrote, Rio de Janeiro, n. 13, 2013.

LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: MONTERO, Teresa (org). Clarice na ca-