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IV. ÓRGÃOS E PRÁTICAS DE GESTÃO – ESPANHA E PORTUGAL

4.4. Gestão do Património Cultural e Gestão do Turismo

4.4.1. Gerir para peregrinar/ caminhar

Ao longo dos vários pontos que percorremos ficou demonstrado, através dos inquéritos aos peregrinos, das entrevistas e da própria observação no terreno, que o Caminho de

97 “O conceito de Itinerário Cultural revela-nos o conteúdo patrimonial do fenómeno específico

de mobilidade e de trocas humanas que se desenvolveu através das vias de comunicação que facilitaram a sua expansão”. (ICOMOS, 2008, Carta dos Itinerários Culturais).

98 Declaração de Santiago de Compostela de 23 de Outubro de 1987. 99 Declaração de Santiago de Compostela de 23 de Outubro de 1987.

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Santiago é um ponto de encontro de nacionalidades, géneros, idades e credos provenientes de todas as latitudes e longitudes do planeta.

Trata-se de uma jornada pessoal e por isso as motivações que levam a essa jornada são tão vastas como o número de pessoas que decidam empreende-la. É certo que não podemos dissociar o significado religioso, sobretudo católico, da peregrinação e actuar como se este não existisse, uma vez que correríamos o risco de ignorar a história e a forma como o Caminho de Santiago chegou até nós. Mas mais que esse significado, reina no Caminho um espírito que é tão antigo e contemporâneo, que remonta ao pré-cristianismo, aos cultos pagãos da Finisterra onde ainda hoje se vê o por do sol, se queima a roupa e se mergulha nas águas do atlântico numa série de rituais de chegada ao fim da jornada.

Desta forma, gerir um itinerário cultural, mais, gerir o Caminho de Santiago, pioneiro de todos os itinerários culturais não é uma mera gestão de recursos e bens. É sobretudo geri-los na perspectiva de uma utilização por e para milhares de pessoas todos os anos e durante todo o ano, provenientes de sítios e culturas diversas, que decidem realizar uma jornada profundamente intima e fazê-la com essa mesma consciência. Gere- se, portanto, um conjunto de bens e recursos que reúnem em si a intimidade de todos os que por ali fazem a sua jornada. Esta consciência, aliada ao intrínseco sentido de dever que todos os gestores de património cultural devem possuir, e à garantia que o acesso aos bens patrimoniais se tem que prolongar através das gerações que nos sucederem, é fundamental para manter o espirito do Caminho. É também imperativo que se adaptem as infraestruturas às necessidades do nosso tempo mantendo, quando tal não representa um factor de perigo, com rigor e fundamentos históricos e científicos, os traçados originais dos itinerários do Caminho de Santiago. Tal permite a perpetuação da memória histórica, carregada da intimidade dos que por ali caminharam, o leito deste gigante que nos carrega aos ombros, este valor incalculável, que hoje gera milhões de euros em diversos sectores da economia espanhola e portuguesa.

Quem caminha com uma mochila às costas conta apenas com o que trás consigo. É quase uma lei universal do Caminho, é uma questão de prioridades, assim aprendemos a dar real valor ao que temos e tudo que vier a mais já é lucro. Lucro para quem caminha é chegar ao albergue e haver água quente para tomar banho, é ter uma cama para descansar e poder ler o livro que pensámos duas vezes antes de o colocar na mochila, mas que não podemos excluir das nossas prioridades. Lucro para quem caminha é poder disfrutar da

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natureza sem ter medo de se perder por falta de sinalização, sem ter medo de atravessar florestas imensas sem ser apanhado num incêndio florestal, sem ter medo de atravessar ou caminhar ao longo de estradas muito movimentadas sem ser atropelado. Há um ditado no Caminho que diz que o Peregrino aceita, o turista exige. Como podemos ver, a gestão do Caminho para quem o Caminha não é uma questão de exigência, é uma questão de dádiva, de humanismo básico de sensibilidade e coisas tão simples como legislação podem fazer toda a diferença. Trata-se de mobilizar os recursos básicos, que muitas vezes existem, que estão subaproveitados e que têm custos muito baixos e transformá-los em lucro para ambos os lados. Neste sentido, podemos observar que no troço estudado existem formar distintas de pensar o Caminho. Através dos vários testemunhos que reunimos, conseguimos identificar práticas diferentes e essas práticas influem e são influenciadas directamente pelos objectivos que cada autoridade local define como prioritários segundo a sua visão particular do Caminho de Santiago seja ele enquanto bem patrimonial dotado de valor simbólico, seja enquanto recurso de valor patrimonial com potencial de valor de uso, seja ambos.

Assim, e porque estamos a falar de práticas de gestão a pensar nos peregrinos/caminhantes, o exemplo mais paradigmático é a existência de um albergue público em cada etapa (cerca de 30 km) do Caminho, propriedade do município ou junta de freguesia, gerido por estas autoridades locais ou por associações sem fins lucrativos ligadas ao caminho. Apesar da grande maioria dos municípios atravessados pelo troço em estudo ter um albergue de sua iniciativa, destaca-se neste caso Barcelos que além de um albergue público em Tamel, tem também um protocolo com a Associação Amigos da Montanha, na cidade de Barcelos por forma a garantir maior disponibilidade de alojamento, ao passo que o Porto, terceiro local de partida no ranking de todos os itinerários do Caminho de Santiago, não conta com nenhum albergue de iniciativa municipal. Se, comparativamente, assumirmos como eficaz o modelo de gestão da S.A. Plano de Gestão Jacobeu, e tendo em conta que este modelo se encontra num estado de progressão e implementação muito avançado em relação às práticas na generalidade dos troços portugueses, percebemos que este continua a não deixar de apostar na forte representatividade dos albergues públicos ao longo dos itinerários, prevendo- se inclusive a criação de “legislação de protecção dos albergues de peregrinos enquanto bens

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patrimoniais”100, não deixando de os adaptar e dotar de acessibilidades, nem de os criar onde eles ainda não existem, mesmo que a oferta privada já exista. Por outro lado, em Portugal, e ainda neste âmbito da gestão para o peregrino/caminhante, são as Associações de Amigos do Caminho que em alguns casos absorvem a escassez de oferta pública através da sua iniciativa de criação de albergues.

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