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Para mim, por um lado, a fala do professor Emir não me pareceu muito otimista. Por outro lado, a exposição da professora Sônia não me parece tão pessimista porque

situa essas relações no campo das lutas sociais, embora eu esteja aqui apontando

isso como uma perspectiva mais otimista. Também está colocado mais claramente que chegamos a um momento em que estamos no lugar onde se queria, que é o do Estado, mas isso não nos é o bastante para que possamos resolver nossos problemas. Nesse sentido, perdemos, ganhamos ou não se trata disso?

SÔNIA FLEURY:

Eu acho que perdemos, ganhamos e se trata disso sim. Eu penso que o poder circula e, na medida em que nós possamos chegar a certas instâncias, ele pode circular em outras. É claro que ao criar um Conselho Nacional de Saúde você está criando, ge-rando espaço público de poder de negociação que é fundamental e que não existia antes. No entanto, nós todos podemos nos perguntar: será que as grandes decisões do Ministério da Saúde são tomadas ali? Provavelmente não. Você tem os lobbies, você tem os políticos que indicam os diretores e não sei o que mais... Então, o poder circula e, mesmo que a gente vá abrindo frentes de avanço, ele vai para outros espa-ços, para os gabinetes, vai para os lobbies e outras formas de circulação. Mas a gente,

mais do que otimista, a gente é animado! (risos) A gente vai tentando e vai cercando,

vai demarcando o território da democracia. E ainda não chegamos. Claramente não chegamos. Podemos ter chegado ao governo, mas não chegamos ao poder do Es-tado. Não chegaremos enquanto nós não conseguirmos reduzir a corrupção, não

conseguirmos reduzir aquilo que a Ligia deve falar aqui, que são os fluxos, os vários fluxos institucionalizados de canalização dos recursos públicos para interesses cor -porativos e privados. Não chegamos no momento em que nós não dominamos co-nhecimentos para fazer uma unidade de serviço funcionar ou dominamos o conheci-mento e não conseguimos colocá-los politicamente em prática.

Então, eu acho que houve um enorme avanço, mas que falta muito. Para

você, que é da unidade de gestão, ainda falta muito neste campo. Acho que nós avançamos muito politicamente na gestão do sistema de saúde. Avançamos pouco na gestão das unidades. Acho que hoje nós sabemos gerir um sistema municipal de

saúde, conhecemos como ele se articula com o nível nacional, mas muitas vezes não sabemos gerir e fazer com que o posto de saúde funcione. Não depende só da área de saúde? Não depende. Nós enfrentamos ao mesmo tempo um sabotamento, um

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capaz de fazer uma boa gestão, ou seja, nós estamos em péssimas condições para

gerir e para fazer com que os direitos se tornem exigíveis.

Nós abrimos uma discussão no blog do Cebes na semana passada com

gestores levantando a seguinte pergunta: Quais são os riscos, hoje, de ser um gestor?

Nós temos vários companheiros da reforma sanitária que estão sendo presos, que estão indiciados ou respondendo a processos. Então, está lá no blog e convido todos a participar dele. E é isso, há um Estado desmantelado que não protege o próprio gestor, e é esse mesmo Estado que não protege o gestor que permite que o corrupto saiba como agir ali, sem nunca ser pego, enquanto o gestor que está lá até

bem-intencionado, ou não, enfim (não necessariamente eles são corruptos), é capaz de

cair nessa trama, e os outros passam ao largo. Então, há um desmantelamento desse Estado e nós temos que lutar para reconstruí-lo. Nós não vamos conseguir fazer

um bom SUS “no nada”, no etéreo, e é nesse Estado, desmantelado, desfinanciado

e com esse povinho mesmo, que vamos ter que fazer com que ele funcione e chegar aonde a gente quer.

EMIR SADER:

Spinoza dizia: “Nem chorar, nem sorrir... Compreender.” Temos de compreender onde estamos. Temos de ser realistas em relação ao que estamos vivendo, e estamos vivendo um momento historicamente regressivo. Não basta olhar para os governos

existentes no mundo, como Europa, Estados Unidos... Cheguei recentemente da

Espanha. Para os espanhóis, é usual toda semana aportar um barco com 42

mar-roquinos, dos quais 16 chegam mortos e os outros são mandados de volta. Acabou, não se discute. Eu estive no Congresso da Associação Internacional de Sociologia

e nem existia o tema da imigração, os africanos não estavam lá... Não existe, estão de costas para o mundo. São de uma insensibilidade brutal. Então, acho que esse período histórico é um período regressivo.

A América Latina é um exemplo; está na contramão. É o elo mais fraco da

cadeia neoliberal. Tem de valorizar os espaços de integração regional porque não há

qualquer outro no mundo. Se analisarmos os últimos cinquenta anos na América

Latina, é uma história extraordinária de recuperação da capacidade de luta. Pensem,

há dez anos, a reeleição do Fernando Henrique... Um domínio da paridade econômi

-ca na Argentina inquestionável. As mudanças foram pequenas em relação ao que a

gente precisa, mas vamos levar em conta. O que foi o mandato do Paulo Renato na Educação? Foi uma “feira”, uma liquidação, uma privatização brutal e acelerada da educação no Brasil. O que foi o mandato anterior de um professor de origem

univer-sitária na Cultura comparado ao de Gilberto Gil? O que é a América Latina hoje em

relação ao que ela foi? Hugo Chaves contou, quando esteve no Rio de Janeiro, que

no ano 2000 ele foi ao Canadá e lá soube que os Estados Unidos iriam lançar a Área

de Livre Comércio das Américas. Estavam presentes todos os presidentes, discursos

belíssimos, inclusive o de Fernando Henrique Cardoso. E então o Bush falou: “Para

facilitar as coisas, quem estiver a favor fica do jeito que está. Quem for contra levanta o dedo.” Hugo Chaves levantou o dedo sozinho... Estavam lá Menem, Fujimori...

Todos a favor! Isso foi em 2000. Olhe as transformações que houve no continente...

A capacidade de recuperação e de luta foi formidável, mas estamos num nível muito

baixo em relação às necessidades e possibilidades. Lembrem bem que o segundo turno da eleição presidencial demonstrou que um discurso antiprivatista catalisa. O

Alckmin teve de assinar embaixo confirmando que não ia mais privatizar e o Fer

-nando Henrique ficou desesperado, pois nem o Alckmin defendia mais o governo

dele. Existe um consenso social para se avançar muito mais do que se fez agora. Há alianças estruturais do governo com o grande empresariado que freiam isso. Mas a

derrota é deles? A derrota é nossa! Mais ainda porque é mais radical, pois, cada vez

que uma alternativa moderada ou ruim se impõe, é a derrota de quem acha que tem boas ideias e não conseguiu transformá-las em força política real. Não é aquilo: “Eu

disse que ia dar errado!” Cruzo os braços e vou para minha casa? A derrota é minha

porque tinha as ideias melhores e perdi.

Então, as condições de se avançar são muito maiores que as existentes num marco geral brutalmente regressivo. O livre comércio em escala mundial está aí, não tem horizonte alternativo em relação à hegemonia americana no mundo, não tem

política econômica projetada. Hoje, como alternativa ao modelo neoliberal, está se

construindo empiricamente daqui, dali, mas ainda são muito embrionárias as

pers-pectivas de superação. Creio que o marco é negativo, mas para a América Latina. As

pessoas olham para nós com uma esperança enorme, com uma surpresa enorme.

Acabei de vir da posse do Fernando Lugo. Quem saía com algum otimismo do Para -guai? Vi aquele movimento social extraordinário, todo o estádio apoiando o Lugo... Existem aquelas aves de mau agouro que falam: “Vai trair daqui a 15 minutos, pois

todos traem...” E ficam ali esperando... O que aconteceu? Os movimentos sociais

não acreditavam que se podia terminar com a ditadura pela via eleitoral e não se prepararam para a luta política. Chegaram ao último momento e participaram. Mas como participaram? Brigados entre si e cada um com uma lista separada... Elegeram

dois parlamentares. Depois reclamam que o Lula fica dependendo dos outros parti -dos... É claro! Não acreditaram que era necessário rearticular a luta social com a

política e criar uma força unificada. Quem vai derrotar um partido que esteve ses -senta anos no poder tem de se aliar a todos os opositores? O partido liberal está prontinho para participar, mas os movimentos sociais não. Com os votos que teve, podiam ter eleito 1/3 do parlamento. Elegeram dois! É mais difícil a luta. Por quê? Por causa de um extremismo. Estavam preparando outra via.Há via institucional? Não prepararam nada. Na autonomia dos movimentos sociais, a luta política se dá

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em que esfera? No mico-leão-dourado, na coisinha pequenininha? Não. Tem de se dar na luta pela hegemonia. O outro mundo possível é um outro mundo. Não é só uma outra sociedade civil, não existe. Tem de se lutar por uma outra hegemonia.

No Haiti, mesmo antes de tudo o que aconteceu, agora é um desalento abso-luto. Então, temos o Haiti, mas temos o Paraguai. Temos a Colômbia, mas temos o

Equador. Temos o México, mas temos a Bolívia. Acho que é um momento híbrido, temperado. A tendência na América Latina é favorável... Isolamento norte-america -no... Mas no mundo é muito ruim. No resto do mundo.