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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

2.7 Ontologia da diferença sexual

2.7.1 Gozo fálico e gozo suplementar

No começo da década de 70, Lacan propõe novos conceitos para pensar a diferença sexual e a sexualidade feminina, que culminam com as fórmulas da sexuação a partir das quais ele diferencia o gozo fálico, masculino, do gozo suplementar, feminino, no Seminário 20, “Mais, ainda”. Vale explicar que o conceito lacaniano de gozo é diferente do de prazer, porque o gozo consiste em uma tentativa permanente de ultrapassar os limites do princípio do prazer, estando ligado, portanto, à pulsão de morte, à repetição e à possibilidade de um lugar que escape à castração (ROUDINESCO e PLON, 1998; SÁEZ, 2005).

Já no começo do Seminário 20, Lacan faz duas afirmações que ficaram muito conhecidas no campo psicanalítico, a de que não há relação sexual e a de que a mulher não existe. Ele explica que essa primeira afirmação quer dizer que não é possível estabelecer o “Um” da relação sexual entre dois corpos de sexo diferente, ou seja, que há não complementariedade entre os sexos. Não há fórmula universal, necessária, para a relação entre os sexos. “Entre dois, quaisquer que eles sejam, há sempre Um e Outro, o Um e o a minúsculo, e o Outro não poderia, em nenhum caso, ser tomado por um Um” (LACAN,

1972-1973/2008, p. 55). O a minúsculo a que Lacan se refere nesse trecho é o objeto a, sobre o qual já falaremos aqui.

Geneviève Morel (2000) fornece uma boa explicação para a afirmação lacaniana de que não há relação sexual: não há equivalente psicanalítico para a lei de Newton, isto é, não se pode escrever a lei psicanalítica da atração dos seres humanos. Homem e mulher não se encontram nunca completamente. Se é possível afirmar que há dois sexos, não se pode dizer que o segundo sexo, usando a expressão de Beauvoir, existe para entrar em relação com o primeiro.

O segundo enunciado, “a mulher não existe”, diz respeito à inexistência de um universal feminino: “Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher pois (...) por sua essência ela não é toda” (LACAN, 1972-73/2008, p. 79). A mulher, ao contrário do homem, não está totalmente na função fálica, submetida à lei do falo, é “não-toda”, exceção, o Outro da universalização. Enquanto o homem se refere inteiramente ao falo, é todo fálico, a mulher não está toda confinada a ele, é não-toda fálica. O feminino rompe, assim, com toda conceitualização ou regra fálica, não havendo enunciado possível sobre ele (SÁEZ, 2005).

O que Lacan propõe nesse seminário é que cada sujeito tem que se situar na “posição homem” ou na “posição mulher” da lógica da sexuação, posições que se traduzem por relações diferenciadas de gozo, em articulação com a função fálica. Do lado homem, só há a possibilidade do gozo fálico, um gozo limitado, submetido à ameaça da castração. É pela função fálica que o homem enquanto todo se inscreve desse lado. A função fálica comporta uma função positiva de gozo e outra negativa de lei e interdito da castração.

A explicação para o gozo fálico está na fórmula negativa “todos os homens, menos um, estão submetidos à castração”. Esse “pelo menos um”, que não sofre a submissão, é o pai da horda primitiva de “Totem e tabu”, que gozaria de todas as mulheres, não sendo nunca morto, o que é impossível. Ele é a exceção com função de limite que funda a possibilidade da existência de um todo e a impossibilidade de um gozo absoluto. É ainda a condição necessária para que o sujeito se inscreva no universal fálico. Ambos, o pai originário e o gozo absoluto, são inatingíveis. Desse modo, não há gozo para o homem senão um gozo fálico (MOREL 2000; ROUDINESCO e PLON, 1998).

Lacan afirma que o gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não consegue gozar do corpo da mulher. Nesse contexto, o objeto a, aquele da citação mais acima, vem em suplência à relação sexual que não existe, ao parceiro sexual (o Outro) que falta. Essa noção de objeto a já havia sido introduzida por Lacan uma década antes para designar o objeto

desejado pelo sujeito, mas que se esquiva, escapa, a ponto de não ser representável ou de se tornar um “resto” não simbolizável (ROUDINESCO e PLON, 1998).

A verdade do desejo permanece oculta à consciência e seu objeto, o objeto a, aparece de forma fragmentada, através de quatro objetos parciais: o seio (objeto da sucção), as fezes (objeto da excreção), a voz e o olhar. É enquanto substitutos do Outro que esses objetos são reclamados e se fazem causa do desejo. Desse modo, o homem, ao abordar a mulher, na verdade aborda o objeto a, que é a causa de seu desejo e que sustenta a fantasia. A mulher com a qual o homem se relaciona funciona como “vestimentas imaginárias do objeto a” (JORGE, 2013). A relação sexual só é possível no campo da fantasia, invenção de cada sujeito para contornar a própria inexistência de relação sexual.

Do lado mulher, não existe um equivalente do pai originário, um “pelo menos um” que escape à castração. Assim, não há, como vimos, universal feminino, não há esse limite. A mulher é não-toda, isto é, para ela a referência ao falo, embora central, não é a única. O gozo feminino é, então, diferente do masculino, sem limite, da ordem do infinito. Trata-se de um “gozo dual” (SÁEZ, 2005): por um lado a mulher está no gozo fálico, já que o falo é referência para os dois sexos, mas por outro tem acesso além dele a um gozo suplementar.

Essa parte não-fálica do gozo não está ligada a significante ou traço algum que seja universalizável como o falo. Não tem, portanto, inscrição no inconsciente e é mais difícil de descrever que o gozo fálico, que dispõe de um significante universal, sendo o mesmo para todos (MOREL, 2000). Trata-se do gozo do Outro, um gozo radicalmente Outro, singular, que a mulher apenas experimenta, mas não conhece e não sabe descrever. Esse gozo é possível porque a mulher tem relação com o Outro, o que não acontece com o homem. Enquanto no homem é a fantasia sustentada pelo objeto a que serve de suplência à ausência de relação sexual, na mulher é a sua relação (privilegiada) com o Outro que tem essa função de suplência.

Lacan denomina o gozo feminino de suplementar, no sentido mesmo de suplemento, de algo a mais, para realçar que ele não é complementar ao gozo fálico. É “um gozo para além do falo” (LACAN, 1972-73/2008, p. 80). Esse é mesmo um dos sentidos do título do seminário, “Mais, ainda”. Não é um gozo que se poderia adicionar ao gozo fálico para formar com ele uma unidade, visto que, mais uma vez, não há relação sexual, união de duas metades complementares. Além de suplementar, esse gozo é contingente, pois pode ou não acontecer, nem todas as mulheres o experimentam.

Como veremos no capítulo 5, alguns autores lacanianos contemporâneos consideram subversiva a abordagem de Lacan da diferença sexual a partir das fórmulas da sexuação, na

medida em que ele não faz mais alusão ao sexo anatômico ou à dicotomia entre ter ou não ter o falo e propõe que cada sujeito escolha se situar em relação à sexualidade independentemente de ser “macho” ou “fêmea”. O sexo deixaria de estar relacionado ao biológico para se atrelar a uma posição discursiva, à lógica da linguagem. Esse esquema teórico permitiria, assim, pensar em novas possibilidades para as subjetividades e sexualidades na atualidade.

De fato, Lacan afirma no Seminário 20 que um homem pode se posicionar no lado não-todo e inclusive se sentir bem lá. Seria o caso dos místicos, que experimentam a ideia de que deve haver um gozo que esteja “mais além”. Ainda assim, ao longo do seminário, ele faz muito frequentemente referência aos seres anatomicamente mulheres para falar da posição feminina e aos anatomicamente homens quando teoriza sobre a posição masculina, e parece defender que a norma seria a mulher se inscrever no lado feminino e o homem, no lado masculino:

A gente se alinha aí, em suma, por escolha – as mulheres estão livres de se colocarem ali [do lado masculino] se isto lhes agrada. Todo mundo sabe que há mulheres fálicas, e que a função fálica não impede os homens de serem homossexuais. Mas é ela também que lhes serve para se situarem como homens, e abordar as mulheres. (Lacan, 1972-73/2008, p. 78)

Além disso, do mesmo modo que Freud postula a libido, que não tem sexo, como masculina, Lacan apresenta o não-todo fálico, o gozo Outro, que poderia ser experimentado pelos dois sexos, como feminino. Embora fale de posições de gozo, ele parece preservar o binarismo e a referência ao falo já presentes em sua concepção anterior de diferença sexual, reafirmando inclusive a assimetria entre as posições feminina e masculina. No capítulo 5, discorreremos mais sobre o assunto.