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A primeira vez que ouvi a expressão forasteiro foi em um conflito em que um casal de amigos recém-chegado à vila teve seu motorhome pichado com os dizeres: “Fora “forasteiros. Vocês não são bem-vindos.”

Quando soube do ocorrido, me dei conta dessa diferenciação. Provavelmente porque até aquele momento, em novembro de 2017, eu ainda estava “chegando”. Como descreverei no capítulo 4, logo que cheguei a Serra Grande comecei a frequentar o Caminho das Ervas, local que inicia o percurso típico de entrada no universo das terapias para os recém-chegados em Serra Grande.

Assim, quando me deparei com a expressão, fui buscar saber o que ela significava, a quem se referia e por que “eles” não eram bem-vindos. Porém, como até então eu circulava entre os chegantes, ou seja, dos que não se reconhecem como forasteiros, foi difícil obter informações sobre o conflito latente entre forasteiros e nativos.

Vários outros episódios como este foram surgindo, especialmente em discussões de

whats app, e aos poucos eu fui conseguindo dar algum contorno para essas categorias nativas.

Helena Lozano, já mencionada anteriormente, foi a primeira pessoa que mencionou essa classificação, destacando marcos temporais e comportamentais que ajudaram a desenhar tais variações e observando que se reconhecia como forasteira. Mara, agente do Posto de Saúde, nativa, também explicitou essa classificação forasteiros, não diferenciando chegantes e forasteiros, indicando ser uma questão apenas dos que se dizem chegantes.

Nesse contexto, passei um longo período buscando compreender essas categorias, e me perguntando quem eram “os meus nativos, como mencionou Viveiros de Castro (2002b): “De fato [...] somos todos nativos; mas de direito, uns sempre são mais nativos que outros.” (p.115). Ao longo do tempo fui me dando conta de que eu me assemelhava às pessoas cujas práticas eu estava estudando. Eu também vinha de fora, do Sudeste, atraída pela Escola Waldorf que pensava como alternativa interessante de escola para meu filho, e pela possibilidade de viver uma vida com mais qualidade em meio à Natureza, e distante do caos urbano. Claro que foi minha bolsa de doutorado que me permitiu a escolha, afinal eu recebia uma renda que vinha de fora da Vila. Posso dizer que fui atraída também pelas terapêuticas, já que elas estavam no centro de meu interesse de pesquisa.

Assim, me instalei em Serra Grande e comecei a frequentar o Caminho das Ervas como uma “típica” chegante. Passei a me envolver com o Projeto e a vivenciar as terapias que me eram oferecidas como parte do meu próprio processo de desenvolvimento.

Porém, com o tempo, meu percurso pessoal me levou para além do Caminho das Ervas, me interessando pela comunidade como um todo, “vazando” daquele contorno que eu tinha desenhado para a pesquisa até então. Iniciei pela busca dos terapeutas tradicionais e acabei atravessando a ponte, história que será contada ao longo deste trabalho. Porém, o que quero demarcar aqui é como me sinto atualmente frente às categorias nativas que vivencio e frente aos conceitos analíticos que mobilizo.

Meus nativos, se coubesse ainda esse modo de referência na relação etnográfica, eu diria que são todos esses ditos nativos, forasteiros e chegantes. Em meu texto busco utilizar as categorias aproximando-as dos contextos específicos de análise em foco, mas devo dizer que elas também funcionam para certa delimitação das presenças diversas em Serra Grande e caracterização de diferentes habitares aí, como comentado na Introdução. Parece-me possível sistematizar as três categorias da seguinte maneira, ainda que observando seus contornos pouco precisos.

Utilizo o termo nativo para aqueles que se veem enquanto tal e que, por seu turno, consideram forasteiros todos os demais moradores de Serra Grande que não fazem parte da ocupação mais antiga do lugar e do modo ou estilo de vida desta comunidade (“nativa”). Assim, quando um nativo se refere à um forasteiro, este pode ter cinco, dez ou vinte anos que vive em Serra Grande, podendo se reconhecer ou não nesta categoria.

Quando me refiro a um chegante, uso o termo aderindo à denominação destes sujeitos para falar de si mesmos e do modo como veem e gostariam que fosse vista a sua presença em Serra Grande.

O termo forasteiro, por sua vez, ainda que se defina primeiramente como conceito nativo, isto é, marcando uma posição de resistência da parte dos nativos que viviam em Serra Grande quando da chegada dos “de fora”, não deixa de corresponder, como vimos, ainda que deslocando significados, a certa posição-autodesignação por parte de um grupo destes “que vieram de fora”. Posição que se autodeclara respeitosa à diferença afirmada pelos nativos.

O ponto é que, mais que (auto)definidoras de pontos de vista presentes no habitar em Serra Grande, essas categorias são sempre relacionais e podem variar e deslocar significados conforme contextos particulares em jogo e as pessoas, temas, ações envolvidas.

Quanto a mim, acredito exercer um modo de habitar bastante semelhante ao de chegantes, não só considerando a temporalidade de minha presença em Serra Grande, mas também por afinidades que reconheço em modos de consumo que adoto, em minhas aproximações com a Natureza e mesmo por frequentar grupos e atividades junto com (outros) chegantes. Por outro lado, acho muito importante reconhecer a perspectiva dos nativos de

marcação de minha posição (como a de tantos outros) “forasteira”. Assim, posso dizer que essa percepção “nativa” da diferença com as dimensões que se revelam de desigualdade social e opressão cultural é parte fundamental de minha relação com todos os interlocutores que encontrei em campo.

Ao longo de minha estadia em Serra Grande até agora fui me envolvendo cada vez mais com as questões sociais que afetam principalmente a comunidade nativa da Vila, o que me leva cada vez mais próxima de um modo de habitar forasteiro mais engajado.

Enfim, compreendo que os modos de habitar Serra Grande podem ora se aproximar, ora se sobrepor ou se afastar, o importante sendo menos uma demarcação de categorias em si – ainda que seja importante trazê-las ao texto já que se revelaram em minha experiência na relação com interlocutores e interlocutoras em campo – mas, como diria Viveiros de Castro (2002a), o que importa é o que elas fazem fazer. É isso que busco descrever a seguir.