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Henriqueta, conforme atestam as suas palavras, ao ler a Educação Estética do Homem, identificou-se profundamente com as ideias do filósofo alemão. A influência da obra em sua vida é reiterada pela poetisa em diversas conferências e entrevistas. Na conferência “Poesia: minha profissão de fé”, proferida em 1978 e incluída em 1979 no livro de ensaios Vivência

Poética, declara:

E aqui deixo a lembrança de um pensamento de Schiller, que exerceu grande influência na minha formação, através de seu livro sobre educação estética: “Se nos entregamos ao gozo da verdadeira beleza, então somos, naquele momento, donos em igual proporção de nossas potências ativas e passivas; com a mesma suma ligeireza nos entregamos à seriedade e ao jogo, ao repouso e ao movimento, à condescendência e à reação, ao pensamento instintivo e ao absoluto”. (LISBOA, 1979, p.22).

O trecho citado por Henriqueta corresponde a um recorte das palavras de Schiller presente na carta XXII na qual o filósofo reflete sobre o tratamento dado à arte a partir da obra, do artista (o ato de produção) e do apreciador. Na passagem citada por Henriqueta, Schiller ressalta a importância da educação estética, afirmando que só por meio dela o homem poderá desenvolver-se plenamente, tanto em suas capacidades intelectuais quanto sensíveis. No “impulso lúdico”, razão e sensibilidade atuam juntas e não se pode mais falar da tirania de

uma sobre a outra. Através do belo, o homem é como que recriado em todas as suas potencialidades e recupera sua “liberdade” tanto em face das determinações do sentido quanto em face das determinações da razão. Pode-se afirmar, então, que essa “disposição lúdica” suscitada pelo belo é um estado de completude e de liberdade para o homem.

Segundo Fofano (2011), a concepção de “liberdade” de Schiller está relacionada a uma concepção global do homem, considerado sujeito a necessidades vitais na sua existência corporal e sujeito ao intelecto como ser racional, pode ser dominado por ímpeto dirigido à matéria que percebe através de seus sentidos e/ou por ímpeto contrário, derivado de sua qualidade de ser racional, dirigido ao controle dessa mesma matéria. A libertação refere-se à qualidade estética no homem de superar a contingência das vontades interiores, tornando-se capaz da fruição da “beleza autêntica” geradora do sentimento de integridade, que conduz a mente humana ao ilimitado. Mais que isso, significa um exercício constante que busca equilibrar os sentidos e a razão, fontes de todo o julgamento realizado pelo sujeito e que gera a desarmonia pela sujeição do humano a um ou a outro.

Para Schiller, a preponderância dos sentidos na determinação da conduta e das paixões na determinação da ação gera a possibilidade de erro nos juízos sobre os fenômenos do mundo, porque o saber fundamentado apenas no empirismo obscurece a razão. Mas só a razão apartada das humanidades sensíveis não dá conta do homem em sua completude, porque aniquila a amorosidade transcendente do caráter. Elimina aquilo que no homem é o repertório de sua própria humanidade - o belo sentimento (FOFANO, 2011).

Schiller é considerado uma das grandes expressões do século XVIII de análise da Estética e da crítica filosófica. Dedicou-se ao teatro, à lírica e à crítica-filosófica. Nas suas obras procura mostrar que a valorização da razão não conseguiu realizar o homem na sua completude e dignidade. Na sua perspectiva, a supervalorização do pensamento racional, ao privilegiar apenas o aspecto intelectual do homem, acabou por suprimir a função cognitiva das sensações. Concebeu a “Estética” como intermediação possível para a educação e o aprimoramento ético da humanidade, por isso defendeu a tese da arte como instrumento de educação.

Em A Educação Estética do Homem, ensaio na forma de vinte sete cartas ao seu

mecenas, o príncipe dinamarquês Friedrich Christian, as Cartas de Augustemburg, como ficaram conhecidas, aborda, a partir de uma perspectiva literário-filosófica, a possibilidade da educação ética da humanidade fundamentada no recurso estético. Nesta obra, Schiller explana a respeito das suas concepções acerca do homem, da arte e da liberdade.

Em sua abordagem do homem como fundamento da estética em geral, Schiller parte de dois conceitos: "Pessoa" e "Estado". “Pessoa” é o que numa sequência de mudanças permanece inalterado e idêntico consigo mesmo. O “Estado” é, por sua vez, a modificação ou as modificações pelas quais o ser humano passa ao longo da vida. A transformação do homem para uma síntese superior da sensibilidade e da racionalidade é concomitante à realização da liberdade. Para Schiller, a beleza não é objeto da experiência sensualizante e agradável aos sentidos apenas, com também não é construída somente pela razão porque o sensível e o racional devem estar postos em relação de equilíbrio harmônico no sujeito livre: “Quando surge a luz no homem, deixa de haver noite fora dele; quando se faz silêncio nele, a tempestade amaina no mundo, e as forças conflituosas da natureza encontram repouso em limites duradouros.” (SCHILLER, 1989, p. 130).

As concepções de Schiller influenciaram as concepções de Henriqueta Lisboa sobre a arte em geral e sobre a poesia especificamente. No seu segundo livro de ensaios Convívio

Poético (1955), Henriqueta, fundamentada em Schiller, afirma que a “poesia artística” não é

apenas expressão do homem, mas o meio, o caminho da realização do homem enquanto homem. Significa uma forma de superação e de libertação encontrada pelo homem: “Não será ela a coação do eterno dentro do efêmero?” (LISBOA, 1956, p.14).

Na visão de Henriqueta, a arte poderia se constituir como o meio para “as jovens professoras” conseguir alcançar um encontro com o ser em sua inteireza, fazendo justiça a sua dupla natureza, real e ideal, sensível e supra-sensível (SCHILLER, 1989). Assim como defendeu Schiller, Henriqueta pensa o ser humano a partir de uma cultura voltada para a sensibilidade estética, entendida como uma proposta política, pois implica na libertação do homem das garras do sensualismo exagerado e da abstração sem sentido, pelo livre jogo da imaginação. É pela via de uma cultura estética que o homem encontraria a reconciliação harmoniosa entre os impulsos sensuais e intelectivos, tornando-se realmente livre, conforme palavras do próprio Schiller:

Pela cultura estética, portanto, permanecem inteiramente determinados o valor e a dignidade pessoais de um homem, à medida que estes só podem depender dele mesmo, e nada mais se alcançou senão o fato de que, a partir de agora, tornou-se-lhe pela natureza fazer de si mesmo o que quiser – de que lhe é completamente devolvida a liberdade de ser o que deve ser. (1989, p.110).

É preciso, segundo Schiller, que o homem se eduque esteticamente, isto é, que ele desperte para o “impulso lúdico”, sendo capaz de distinguir aparência e realidade, a forma e o corpo e sentindo-se em seu interior cada vez mais livre, pois sua mente está cada vez mais se educando esteticamente. Sobre essa experiência estética, assim descreve Schiller:

Com a forma de seus juízos ocorreu, portanto, uma notável modificação; ele não procura os objetos para que o afetem, mas para que lhe dêem sobre o que agir; não aprazem por satisfazer uma carência, mas, porque respondem uma lei que, embora ainda em sussurro, fala já em seu coração. Em breve, ele já não se satisfaz com o fato de os objetos lhe aprazerem; ele mesmo quer aprazer, a princípio, somente pelo que é seu, e finalmente pelo que ele é. O que possui e produz já não pode trazer em si apenas os traços da subserviência, a forma tímida do sem fim; deve, além da função para que existe, espelhar também o entendimento criativo que o pensou, a mão amorosa que o realizou, o espírito sereno que o escolheu e propôs [...]. Não satisfeito em acrescentar abundância estética à necessidade, o impulso lúdico mais livre desprende-se em fim por completo das amarras da privação, e o belo torna-se, por si mesmo, objeto de seu empenho. Enfeita-se, o prazer livre entra no rol de suas necessidades, e o desnecessário logo se torna o melhor de sua alegria. (SCHILLER, 1989, p.142).

Para Schiller, assim como para Henriqueta, por meio da cultura estética torna-se ao homem possível fazer de si mesmo o que quiser, já que lhe é completamente devolvida a liberdade de ser o que deve e quer ser. A beleza, tal qual a natureza, nobilita a capacidade para a humanidade, mas segundo a vontade do sujeito.

A concepção de estética de Schiller se faz presente nos textos de Henriqueta sobre a importância da arte e principalmente da poesia na formação das crianças e dos jovens:

A arte é capaz de proporcionar ao jovem uma fruição de equilíbrio e estabilidade, assim como um sentimento de confiança, fortalecendo nele o sentido dos valores fundamentais. [...]

No mundo de violências que é o nosso, a poesia representa não apenas uma compensação de amor e enlevo diante da natureza; encarna, igualmente, um exemplo de concentração de forças de resistência ao dispersivo e ao contraditório humano. (LISBOA, s/d p. 8)

As palavras de Henriqueta revelam a influência de Schiller ao conceber a arte em geral e a poesia especificamente como intermediação possível para a educação e para o aprimoramento humano do jovem.

Nesse sentido, a “formação estética” defendida por Henriqueta nos seus textos apresenta nuances que a diferencia em certos aspectos da perspectiva dada a esta expressão por poetisas que escreveram para crianças e jovens entre o final do século XIX e as primeiras décadas do

século XX, conforme mostraremos mais adiante. Em decorrência da sua forma de conceber a educação estética é que a sua poesia sobre a infância, mesmo produzida em uma época onde a maioria dos textos poéticos sobre e para a criança caracteriza-se pelo conservadorismo formal e pelo compromisso com a pedagogia, “acena com uma possibilidade de ruptura.” (TURCHI, 1995, p.155).

2.3 A formação estética das crianças e dos jovens

Antes mesmo de Henriqueta e de suas contemporâneas como Cecília, várias escritoras atuaram como educadoras e se preocuparam com a formação cultural das crianças, atividade que a princípio era obrigação exclusiva das amas e das mães, passou posteriormente a ser também das professoras e que, com a produção de uma literatura para a criança, tornou-se uma atribuição da mulher escritora.

No prólogo da antologia Literatura oral para a infância e a juventude: lendas, contos e

fábulas populares no Brasil, cuja primeira edição é de 1969, Henriqueta Lisboa escreve sobre

esta realidade:

É de notar que, em nosso meio, as amas já não recordam os contos de antigamente, e as mães já não repetem as lendas que ouviram na infância. Cabe, portanto, à escola, apta a reconhecer a importância dos valores tradicionais como forma educativa, o ofício de resguardar e transmitir tal patrimônio.[...]

São estas as razões essenciais da organização de uma antologia da literatura oral corrente no país e que se destina a alcançar as crianças, de preferência por meio de seus educadores. (LISBOA, 2002, p. 14).

Henriqueta se expressa à luz do ideário burguês que concebe a instituição escolar como responsável pela transmissão “dos valores tradicionais como forma educativa”. Assim, na visão da poetisa, a transmissão do patrimônio cultural, tornou-se uma atribuição da escola, representada na figura do professor, na época mais comumente da professora24. Para ajudar

24Louro (2010, p.449) ressalta que “ao serem criadas as escolas normais a pretensão era formar professores e professoras que pudessem atender a um esperado aumento na demanda escolar. Mas, tal objetivo não foi alcançado exatamente como se imaginava: pouco a pouco, os relatórios iam indicando que, curiosamente, as escolas normais estavam recebendo e formando mais mulheres que homens. Em 1874, por exemplo, relata o diretor geral da instrução que a Escola Normal da província do Rio Grande do Sul vinha registrando “um número crescente de alunas, a par da diminuição de alunos.”.

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