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Heterogeneidades e hibridismos: o sujeito em Circle K Cycles

5. CIRCLE K CYCLES: O SUJEITO DIASPÓRICO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO

5.6 Heterogeneidades e hibridismos: o sujeito em Circle K Cycles

No capítulo anterior desta tese, mencionamos um comentário de Don Mitchell (2004) sobre como Hall vê a diáspora no contexto contemporâneo: “a ‘diáspora’ proporcionou uma janela para o que Hall chamou de ‘articulação’ do sujeito em circunstâncias globais pós- coloniais e pós-modernas” (MITCHELL, 2004, p. 162-3).362 Após a investigação do sujeito diaspórico por meio das personagens Iara, José, Maria Madalena, Miss Hamamatsu e os casais de “Samba Matsuri”, o comentário de Mitchell (2004) se torna ainda mais pertinente se associado ao contexto de Circle K Cycles, mesmo que nossa análise não tenha se referido diretamente ao Pós-colonialismo e ao Pós-modernismo. Na verdade, é a noção da diáspora como instrumento de compreensão do mundo contemporâneo que nos chama a atenção. Se a diáspora é uma janela que nos permite ver o sujeito na conjuntura atual, Circle K Cycles é a representação do que se vê por essa janela. Por ela, pudemos visualizar, acima de tudo, a heterogeneidade do sujeito diaspórico.

Por meio de uma variedade de perfis, a obra de Yamashita ilustra a existência de posicionamentos que marcam o grupo diaspórico por meio de sua peculiaridade. Por isso, a heterogeneidade do sujeito diaspórico na era da globalização nos leva a repensar a noção de

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“…different, spontaneous, invented.”

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“Diaspora' provided a window on what Hall called the 'articulation' of the subject in postmodern and postcolonial global circumstances.”

que tal fenômeno tem o efeito de homogeneizar o ser humano e destruir a diferença cultural. A julgar pela multiplicidade ficcionalmente retratada em Circle K Cycles, a tese da homogeneização não se concretiza, apesar dos dispositivos homogeneizadores colocados em prática em um processo como a globalização. Isso corrobora o pensamento de Appadurai (1999), que afirma que “a globalização da cultura não é o mesmo que sua homogeneização” (APPADURAI, 1999, p. 222). 363 Em Circle K Cycles, a mobilidade diaspórica, entrelaçada por uma intensa rede de fluxos culturais globais, atinge a cada personagem de forma única, resultando em um conjunto de perfis heterogêneos que extrapolam os estereótipos. Seu estudo também nos faz superar uma visão puramente econômica da globalização, expondo questões culturais, sociais e humanas referentes ao sujeito diaspórico na era da globalização.

Por outro lado, constatar a heterogeneidade do sujeito diaspórico em Circle K

Cycles não equivale a afirmar que a globalização não afeta o sujeito ou então que possui uma

influência positiva sobre a diáspora, como assegura Cohen (1997). As afirmações do autor nesse sentido se mostram inconsistentes e até ingênuas se contrastadas às dificuldades vividas pelo sujeito diaspórico na era da globalização. O sofrimento das personagens mirins na escola devido à incapacidade do sistema de ensino de absorver a diferença, o subemprego das personagens femininas, às vezes levando à prostituição e a frustração e a exploração de muitos decasséguis, não constituem um cenário otimista da diáspora em tempos de globalização, como vislumbra Cohen (1997).

Em face às dificuldades vividas, os sujeitos diaspóricos de Circle K Cycles reagem de maneiras diferentes, o que reforça a tese da heterogeneidade. Paralelamente, Yamashita não deixa de apontar que há vínculos que unem as crianças, as mulheres e os casais de Circle K Cycles na condição de grupo. Tal identificação gira em torno de sua condição diaspórica de mão de obra, em muitos aspectos semelhante ao caso da diáspora indiana discutida por Cohen (1997) em Global Diasporas. Por isso, ao mesmo tempo em que procuramos desvendar a heterogeneidade que caracteriza o sujeito diaspórico de Circle K

Cycles, verificamos que os traços comuns deixam, em todo o livro, uma impressão de que

existe, de fato, um grupo. Essa sensação, aparentemente paradoxal, nos faz retomar Stuart Hall (1990), que nos alerta para o fato de que a diferença e a igualdade não se anulam, podendo ser simultâneas. Por um lado, o “‘verdadeiro self’ coletivo” (HALL, 1990, p. 223)364 reúne experiências históricas e culturais comuns que formam a referência de grupo. Por outro, os traços individuais de cada sujeito contribuem para uma identidade cultural de caráter mais pessoal.

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“The globalization of culture is not the same as its homogenization.”

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Por isso, crianças como Iara e José sofrem, de forma semelhante, o assédio dos colegas japoneses na escola, mas reagem de maneira totalmente diferente. Foi no exame das diferenças entre o perfil dessas personagens mirins que chegamos a uma constatação: não há, entre os principais estudiosos da diáspora, nenhum que tenha teorizado a situação da criança na diáspora, desenvolvendo um argumento que pudesse ser aplicado às crianças representadas na obra de Yamashita. De fato, há publicações que discutem o sujeito diaspórico no grupo, com perspectivas de classe, gênero e etnia, mas sem um foco na questão da criança que vive a diáspora no seu dia a dia.

Sobre as mulheres na diáspora, é possível concluir que há uma relação entre a informalidade dos ofícios diaspóricos por elas desempenhados em Circle K Cycles com a avaliação de Gayatri C. Spivak (1996) sobre a mulher diaspórica em “Diasporas Old and New: Women in Transnational World”: “Elas nunca foram sujeitos e agentes por completo na sociedade civil; em outras palavras, cidadãos de primeira classe de um Estado” (SPIVAK, 1996, p. 249).365 Mesmo em uma diáspora contemporânea como a de Circle K Cycles, observa-se que as mulheres são colocadas à margem da sociedade, enfrentando no Japão uma realidade que se assemelha à que tinham no Brasil, pelo menos em termos de sexismo e subordinação. Clifford (1997) também nota que as mulheres na diáspora “estão aprisionadas entre dois patriarcados, passados e futuros ambíguos” (CLIFFORD, 1997, p. 259).366 Os dois patriarcados, na terra de origem e no país hospedeiro, equivalem ao Brasil e ao Japão no caso de Circle K Cycles. Assim sendo, não resta às mulheres outra opção, a não ser negociar sua sobrevivência no dia a dia de forma específica, conforme a conjuntura.

Em Circle K Cycles, tal negociação parece estar registrada por meio da forma

como as mulheres falam, o que falam, como agem e pelas constantes referências à imaginação e ao sonho, à mentira e ao fingimento, que funcionam como uma espécie de resposta às normas sociais e hábitos a que estão submetidas. Essas estratégias de sobrevivência são formas de posicionamento do sujeito em face ao contexto que enfrenta na diáspora. Maria da Conceição repete seu script de ativista enquanto Alice, ao conversar com seus clientes decasséguis, assume o discurso de mãe e de psicóloga. A sonhadora Miss Hamamatsu vive a contradição entre a personagem que gostaria de encenar – a de rainha da beleza e da simpatia – e a realidade nada glamorosa de seu trabalho como copiadora de fitas de vídeo. Maria Madalena, quando fala ao telefone, pode assumir os discursos da empresária, da prostituta ou

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“They have never been full subjects of and agents in civil society: in other words first-class citizens of a state.”

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simplesmente a amiga de Alice. Intercalando-os em três telefonemas simultâneos, Maria Madalena se perde e deixa-nos perdidos diante da impossibilidade de definição de seu próprio eu. O ofício diaspórico de cada personagem depende da articulação de um discurso apropriado a cada um desses papéis na diáspora, desempenhados por uma questão de sobrevivência, e que constituem um importante componente identitário. O caráter performativo dessas personagens, que se reinventam a todo momento, rompe com a noção de identidades fixas e centradas e ilustram o permanente processo de construção do sujeito.

Os casais de “Samba Matsuri” também são sujeitos diaspóricos que, de uma forma ou de outra, atuam como “personagens de personagens”. Nesse sentido, a máscara de Paulo, a persona do decasségui, é a metáfora principal que marca a teatralidade do cotidiano de cada um, parte do processo de identificação do sujeito diaspórico de Circle K Cycles. Um último exemplo que vale a pena acrescentar vem da mulher de Paulo, Marcolina. Vestida de baiana no carnaval de rua, ela é questionada por Paulo quanto à legitimidade de sua “baianidade”: ““Mas eu sou baiana”, disse Marcolina, fazendo beiço, ajustando o turbante e o babado da saia de sua fantasia afro-brasileira” (YAMASHITA, 2001, p. 140).367 O que faz de Marcolina uma baiana – sua dança, sua interpretação e sua fantasia cuidadosamente confeccionada ou a possibilidade de ter nascido no estado da Bahia – não importa.

Por fim, o conjunto heterogêneo formado pelas personagens, aqui analisadas como representações de sujeitos diaspóricos, nos remete à ideia de hibridismo, descrita por B. Ashcroft et al (2003) como “a criação de novas formas transculturais dentro da zona de contato produzida pela colonização” (ASHCROFT, 2003, p. 118).368 Na obra de Bhabha (1998b), encontramos as noções de hibridismo e hibridização. A primeira se refere à “impureza” que caracteriza todas as culturas e a segunda enfatiza o permanente processo de transformação em que se encontram. Dentro de seu projeto de teorização pós-colonial, o hibridismo cultural para Bhabha (1998b) é mais um conceito que deseja romper com binarismos e polarizações, como o opressor e o oprimido, o colonizador e o colonizado, considerados simplistas pelo autor. A colonização, vista como o encontro de duas culturas supostamente puras, seria um exemplo de como essa visão simplista ocorre.

A noção de hibridismo, no entanto, ultrapassa os limites da Teoria Pós-colonial, sendo útil para discussões que envolvem o surgimento de novos pontos de identificação e formas culturais, conforme se verifica nos contextos de diásporas. Dessa forma, teóricos como

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“‘I am a baiana,’ Marcolina pouted, adjusting her turban and the flounce on the skirt of her Afro-Brazilian costume.”

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Clifford, Gilroy, Hall e Mercer tratam de relacionar diáspora e hibridismo.369 Avaliando o posicionamento de Hall sobre a afinidade entre os dois fenômenos, Braziel e Mannur (2003) afirmam que, para esse autor, a experiência diaspórica “é definida não pela essência ou pureza, mas pelo reconhecimento de uma heterogeneidade e uma diversidade necessárias, por uma concepção de identidade que habita dentro e por intermédio de, e não apesar da diferença; pelo hibridismo” (BRAZIEL; MANNUR, 2003, p. 5).370 A heterogeneidade e o conceito de identidade em transformação, conforme descritos por Hall, encontram respaldo no sujeito diaspórico de Circle K Cycles, estudado neste capítulo. Assim, pode-se concluir que o sujeito diaspórico aqui estudado é um sujeito híbrido.

Para Braziel e Mannur (2003), “os sujeitos diaspóricos são marcados pelo hibridismo e pela heterogeneidade – cultural, linguística, étnica, nacional – e esses sujeitos são definidos por uma travessia das fronteiras que demarcam a nação e a diáspora” (BRAZIEL; MANNUR, 2003, p. 5).371 Partindo desse princípio, que destaca a nação como peça fundamental na construção do sujeito, as crianças, as mulheres e os casais analisados são o produto de hibridismos culturais que se reinventam pelo contato entre as várias culturas que trazem do Brasil e as que encontram na experiência diaspórica no Japão. Além disso, o contexto de Circle K Cycles destaca processos como a globalização, que relativizam ainda mais as fronteiras culturais, realçando a condição híbrida e heterogênea desses sujeitos. No processo de negociação de tradições distintas, o sujeito diaspórico híbrido as entrelaça, sem nunca ter a possibilidade de escolher inteiramente uma ou outra. Por isso, Bhabha (1998a) afirma que “tal negociação não é assimilação ou colaboracionismo. Ela torna possível o surgimento de uma agência intersticial, recusando a representação binária do antagonismo social” (BHABHA, 1998a, p. 34).372 Assim, podemos concluir que o sujeito representado em

Circle K Cycles é desenhado de modo a rejeitar qualquer forma de pureza ou homogeneidade,

o que impossibilita qualquer noção essencialista de sujeito e identidade.

369

Cf. BRAZIEL, Jana Evans; MANNUR, Anita. Nation, Migration, Globalization: Points of Contention in Diaspora Studies. In: ______. (Eds.). Theorizing Diaspora: A Reader. Malden, MA: Blackwell, 2003. p. 5.

370

“…is defined, not by essence or purity, but by the recognition of a necessary heterogeneity and diversity, but by a conception of identity which lives in and through, not despite difference; by hybridity.”

371

“Diasporic subjects are marked by hybridity and heterogeneity – cultural, linguistic, ethnic, national – and these subjects are defined by a traversal of the boundaries demarcating nation and diaspora.”

372

“Such negotiation is not assimilation or collaboration. It makes the emergence of an interstitial agency possible, refusing the binary representation of social antagonism.”