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1. Cidade e literatura

1.4. Cidade e modernidade

1.4.2. Hibridismos: diluição de contornos precisos

Conforme lembrado por La Salette Loureiro, Rousseau sonhava com uma cidade “mélange de nature sauvage et dʼindustrie humaine” (Loureiro, 1996, p. 35). Embora as cidades modernas cresçam desmesuradamente, tornando-se cada vez mais afastadas da natureza, é possível registar nelas um fenómeno talvez paradoxal. Recorde-se que os lugares em que as cidades foram fundadas, tiveram em geral alguma caraterística especial, ou mesmo “sagrada” e “ritualística”. Este lugar é a seguir “civilizado” pela construção da cidade (cf. Hodrová, 2006, p. 37). Em consequência, porém, verifica-se também um processo que poderia ser denominado “regressivo”. Apesar de os novos cultos serem implantados no lugar em que a cidade se estabeleceu, os cultos primitivos, junto com a “selva” original podem de certa forma regressar.

66 A “panurbanização”, como diz Hodrová, é confrontada com uma força inesperada que lá vai minando secretamente (Hodrová, 2006, p. 37). Pode tratar-se de alguns géneros animais ou vegetais julgados extintos na cidade, ou então de uma “selva” abstrata que vai engolindo partes de uma cidade.47 Este tópico é, com efeito, muito aproveitado em certa prosa de traços fantásticos ou de horror, em que é apresentado um jardim, tornado selva predatória que pode alastrar-se até usurpar o espaço à casa, como se vê, por exemplo, no conto “Szalona zagroda” (A quinta desvairada) da coletânea homónima do escritor polaco Stefan Grabiński, de 1908. Noutras ocorrências, mais frequentes, o jardim selvático entra num jogo de forças antagónicas do consciente (racionalidade) e inconsciente (escuridão de instintos irracionais), como se verifica, por exemplo, no conto “Le jardin malade” (Sortilèges, 1941) do escritor belga Michel de Ghelderode. É, porém, necessário atribuir a cada texto literário o devido sistema axiológico: enquanto no conto polaco, os habitantes ficam dominados pelas forças do mal, o conto belga demonstra simpatia por aquilo que é marginalizado e ostracizado por ser diferente, e considerado como monstruoso pela sociedade ”normalizada”, pacata e burguesa. Nalguns momentos, como se verifica na literatura pós-colonial, esta oposição pode ter mesmo consequências muito mais graves do ponto de vista ético, político e social. É o que acontece, por exemplo, no romance A árvore das palavras (1997) de Teolinda Gersão, em que o antagonismo das casas (branca e preta) se reflete também no confronto da casa (imagem da civilização) e jardim (imagem da natureza africana), visto que a casa corresponde ao espaço rígido, dominado pelas regras, e o jardim significa a liberdade e a espontaneidade. O medo da natureza, a qual poderia reclamar o seu poder frente à civilização, é também neste romance expresso na figura da mulher portuguesa que não consegue, nem tenta adaptar-se ao espaço africano. Deste ponto de vista, o “regresso” da natureza à cidade como uma tentativa de simbiose ou de aproximação por meio de metáforas e imaginário recuperador de valores originais do meio ambiente, adquire traços claramente benéficos.

A diluição de contornos do espaço urbano que leva à sua “hibridização” pode ser refletida também a nível mais abstrato. Para este objetivo convém recuperar o famoso termo de liquidez, cunhado por Zygmunt Bauman (Tempos líquidos, Amor líquido, Medo líquido, Mal líquido),

47 Trata-se de um tópico frequente na literatura checa contemporânea (p. ex. O romance Prázdné ulice [Ruas vazias], 2004, de Michal Ajvaz) que até penetrou na ficção para jovens (p. ex. Prašina [2018] de Vojtěch Matocha, em que a selva denominada de Prašina, primeiro restrita a uma só parte de Praga, se alastra para atacar toda a cidade). Também nas literaturas africanas de língua portuguesa podemos encontrar este tópico com alguma frequência, por exemplo, na novela O desejo de Kianda (1995) de Pepetela, a deidade lendária reclama o seu espaço original, exprimindo este seu desejo pelo sucessivo derrube de casas construídas no lugar do antigo lago, no romance Teoria geral do esquecimento (2012) de José Eduardo Agualusa, a selva vegetal-animal (junto com os novos habitantes vindos do campo) penetra dentro de uma casa luandense etc.

67 que se relaciona mais propriamente com a era contemporânea. Além disso, a conjunção de “modernidade líquida” adere também, verbal e conceptualmente, à época que me interessa. Aos aspetos da época líquida pertencem, conforme resumido por Petr Dytrt, os conceitos de progresso, individualização, vazio, identidade, a vitória do caos e globalização (Dytrt, 2013, pp. 19-26). Embora estes traços sejam mais convenientes para a pós-modenidade, as suas raízes devem ser procuradas na modernidade, isto é, na época que termina com a Segunda Guerra Mundial. Apesar disso, existe também uma outra forma de “liquidez” que se relaciona, segundo Hodrová, com a essência do urbano, com as suas caraterísticas fundamentais. Se um texto literário é, por natureza, líquido (mutável, permeável), por estar ligado ao seu contexto extraliterário, igualmente mutável, então o Texto da cidade apresenta uma liquidez ainda maior (Hodová, 2006, p. 22). Ao “ler” uma determinada cidade, não só as “leituras” de todas as outras cidades são atualizadas, mas também é necessário levar em consideração a diferenciação temporal (horas, dias, estações de ano etc.), bem como as imagens do passado, ativadas pelas histórias pessoais, recordações e projeções oníricas apreendidas por meio de várias sensações que acentuam a liquidez, ou seja, a ausência de uma forma firme (cf. Hodrová, 2006, p. 22). Acrescente-se que, para além disso, a liquidez é ainda correlacionada com a vida da população urbana, com o fluxo incessante de pedestres e meios de transporte (cf. Hodrová, 2006, p. 22). Curiosamente, não faltam textos literários em que as ruas costumam ser comparadas a uma onda. Um exemplo desta imagem observa-se, por exemplo, no conto “Homem” (Contos exemplares, 1962) de Sophia de Mello Breyner Andresen, em que a cidade representa um espaço disfórico, escuro e fechado, debaixo de um céu deserto e vazio: “Então, como o nadador que é apanhado numa corrente desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de me opor ao movimento da cidade e me deixei levar pela onda de gente para longe do homem.” (Andresen, 1997, p. 144).

Finalmente, de uma forma mais ampla, podemos perceber o caráter líquido da urbe na sua capacidade de se metamorfosear (transfigurar) constantemente, por si própria e através dos que a percecionam. A acentuação do espaço vivido sintoniza com as conceções de Ricoeur, ao mesmo tempo que a corporeidade como um meio que possibilita o nosso contacto com o espaço condiz com o ideário de Merleau-Ponty, para o qual a espacialidade do corpo é marcada pela realidade sensorial e também pela presença transcendental (cf. Čapek, 2012). Ou seja, a representação do espaço urbano depende tanto do poder da imaginação, que é por essência fluida e volátil, como da “materialidade” do corpo. A imaginação e a corporeidade são filtros na perceção do espaço.

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