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Hipossuficiência na Ordem Constitucional: sentido e alcance

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu como função precípua da Defensoria Pública a instrumentalização do direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita, garantindo a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados.

Cumpre precisar o sentido e o alcance do termo “necessitados” no contexto da Constituição, a fim de estabelecer os contornos da atuação institucional da Defensoria Pública, antes de adentrar ao tema de sua legitimidade para a proposição de ação civil pública.

Com efeito, percebe-se de plano a intenção do constituinte de garantir o acesso à justiça àqueles que não possuem recursos econômicos, o que se justifica pela grande parcela da população brasileira que não dispõe de condições financeiras para arcar com o pagamento de custas processuais e honorários advocatícios. Tal situação revela que a assistência jurídica é indispensável, mesmo em se adotando um conceito restrito de acesso à justiça, que traduz a mera possibilidade de acionar o Judiciário.

Sucede que as expressões “insuficiência de recursos” (art. 5º, LXIV, CF) e “necessitados” (art. 134, CF) não autoriza a interpretação de que a carência econômica é a única abrangida pelo dispositivo constitucional. Segundo SOUSA (apud BRITTO, 2008, p. 17), a Carta Magna, ao mencionar “necessitados”, institui uma “cláusula constitucional dotada de razoável largueza e indeterminação, tanto que já está consagrada a tese de que a carência jurídica não se confunde com a carência econômica”.

Para GRINOVER (1990, p. 245),

Pois é nesse amplo quadro, delineado pela necessidade de o Estado propiciar condições, a todos, de amplo acesso à justiça que eu vejo situada a garantia da assistência judiciária. E ela também toma uma dimensão mais ampla, que transcende o seu sentido primeiro, clássico e tradicional.

Quando se pensa em assistência judiciária, logo se pensa na assistência aos necessitados, aos economicamente fracos, aos “minus habentes”. É este, sem dúvida, o primeiro aspecto da assistência judiciária: o mais premente, talvez, mas não o único.

Em verdade, a grande preocupação do constituinte com a promoção da dignidade da pessoa humana e efetividade dos direitos fundamentais impõe uma interpretação teleológica e sistemática do termo “necessitado”, voltada à plena concretização do direito fundamental de acesso à ordem jurídica justa, em consonância com os postulados de interpretação da Constituição40.

O próprio legislador infraconstitucional reconheceu a amplitude da noção de hipossuficiência ao atribuir como função institucional da Defensoria Pública o exercício da curadoria especial41, o que pode ocorrer mesmo em relação a pessoas não economicamente necessitadas. O mesmo se dá com a defesa dativa no processo penal, como garantia de defesa técnica adequada aos acusados, que consiste em direito indisponível42.

Tais funções exercidas pela Defensoria Pública atendem ao imperativo de garantia do contraditório e da ampla defesa no processo civil e penal, sendo irrelevante a aferição da necessidade econômica. Reconhece-se, então, a necessidade de prestar assistência aos “necessitados jurídicos - carentes de recursos jurídicos” (BRITTO, 2008, p. 17).

40 NOVELINO (2008, p. 78-81) elenca os postulados de interpretação da Constituição. São eles: princípio da unidade da Constituição, princípio do efeito integrador, princípio da concordância prática (ou harmonização), princípio da força normativa da Constituição, princípio da máxima efetividade, princípio da relatividade (u convivência das liberdades públicas), princípio da conformidade funcional (ou exatidão funcional ou justeza) e princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade).

41 “Art. 4º, Lei Complementar nº 80/94 - São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: [...] VI - atuar como Curador Especial, nos casos previstos em lei”.

42 A curadoria especial destina-se à defesa do incapaz que não tem representante legal ou no caso de colisão dos seus interesses com os deste; do réu preso e do réu revel citado por edital ou por hora certa, nos termos do art. 9º do Código de Processo Civil.

Há, ainda, a hipossuficiência organizacional, surgida a partir da estruturação da “sociedade de massa” e do reconhecimento e positivação de diversos direitos fundamentais coletivos. A carência organizacional relaciona-se “à questão da vulnerabilidade das pessoas em face das relações sócio-jurídicas existentes na sociedade contemporânea” (GRINOVER, 1996, p. 117).

A proteção dos direitos transindividuais encontra, pois, séria barreira à sua adequada tutela na desarticulação das coletividades que os titularizam. O problema sobreleva-se no Brasil, em que não é conferida ao indivíduo, como já exposto, legitimidade ativa para propor ações coletivas, com exceção da ação popular. CAPPELLETTTI, GARTH (1988, p. 27), ao tratarem do assunto, lecionam que:

Outra barreira se relaciona precisamente com a questão da reunião. As várias partes interessadas, mesmo quando lhes seja possível organizar-se e demandar, podem estar dispersas, carecer da necessária informação ou simplesmente ser incapazes de combinar uma estratégia comum. [...] Em suma, podemos dizer que, embora as pessoas na coletividade tenham razões bastantes para reivindicar um interesse difuso, as barreiras à sua organização podem, ainda assim, evitar que esse interesse seja unificado e expresso.

Dessa “natural desorganização” da sociedade resulta a imprescindibilidade de reconhecer que a exegese dos termos “insuficiência de recursos” (art. art. 5º, LXXIV, CF) e “necessitados” (art. 134, caput, da CF) deve abranger necessariamente a carência organizacional.

Assim, a hipossuficiência organizacional deve receber o adequado tratamento pelo ordenamento jurídico, com vistas a garantir a proteção integral dos direitos coletivos lato sensu, sob pena de afronta à garantia de acesso efetivo à justiça e ao princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, constitucionalmente garantidos.

O direito fundamental de acesso à justiça é dotado de fenomenal amplitude na ordem constitucional brasileira e, ao lado do princípio da inafastabilidade da jurisdição, garante os meios aptos à concretização dos direitos fundamentais. Desse modo, não se pode pretender restringir o alcance do texto constitucional, devendo a atuação da Defensoria Pública abranger a orientação

jurídica e a defesa, em todos os graus, de todo tipo de necessitado – econômico, jurídico ou organizacional.

3.3 Atuação Coletiva e a Legitimidade da Defensoria Pública para a Propositura de Ação