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CAPÍTULO I O DIREITO PENAL SIMBÓLICO E SUAS IMPLICAÇÕES NO

1. O(s) Sentido(s) do Simbólico sob Luzes Interdisciplinares

1.2 O Simbolismo da Proteção Penal à Mulher Vítima de Violência Familiar

1.2.1 História da Criminalização da Violência contra a Mulher no Brasil

O esforço para compreender a violência contra a mulher e também para combatê-la é certamente mérito dos movimentos feministas, os quais historicamente identificam-na como um problema resultante das desigualdades próprias das relações de gênero. Esclareça-se que esse termo é tomado como categoria de análise, em algumas ciências humanas, para demonstrar e sistematizar as relações de dominação e subordinação, que envolvem homens e mulheres, em que aqueles

se impõem sobre estas.63

Sobre a construção do conceito de gênero Joan Scott destaca:

Na sua utilização mais recente, “gênero” parece primeiro ter feito sua aparição entre as feministas americanas que queriam insistir sobre o caráter fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológica implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. O gênero enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas que estavam preocupadas pelo fato de que a produção de estudos femininos se centrava sobre as mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário de análise.64

Para as feministas militantes, a violência tem sido usada milenarmente para dominar a mulher, fazendo-a acreditar que seu lugar na sociedade é de submissão

ao poder masculino, restando-lhe apenas resignar-se e acomodar-se.65 Nessa ótica,

violência contra a mulher nas relações familiares tem sido entendida como decorrente dessa subordinação do feminino, que é própria de uma sociedade patriarcal. É, portanto, um conflito que decorre das relações socioculturais existentes

entre homens e mulheres e dos papéis historicamente construídos para ambos.

Sobre o patriarcado, Hartmann apresenta a seguinte compreensão:

63 TELES, Maria Amélia de Almeida. MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 16.

64 SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre: UFRGS, 1990. p. 5.

65 TELES, Maria Amélia de Almeida. MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 13.

[...] patriarcado como um conjunto de relações sociais que tem uma base material e no qual há relações hierárquicas entre homens, e solidariedade entre eles, que os habilitam a controlar as mulheres. Patriarcado é, pois, o sistema masculino de opressão das mulheres.66

Decerto não há como negar o modelo patriarcal que imperou, e ainda impera, na construção dos papéis sociais de homens e mulheres, nos quais há, em regra, pretensão de dominação. Todavia deve-se alertar para o fato de que a cultura patriarcal não se verifica apenas na relação homem-mulher, mas estende-se às demais relações de poder, como entre patrão e empregado, homem e a mulher em relação às crianças e, ainda, entre mulheres, conforme se ratifica nas palavras de Heleieth Saffioti:

Aliás, imbuídas da ideologia que dá cobertura ao patriarcado, mulheres desempenham, com maior ou menor freqüência e com mais ou menos rudeza, as funções do patriarca, disciplinando filhos e outras crianças ou adolescentes, segundo a lei do pai. Ainda que não sejam cúmplices deste regime, colaboram para alimentá-lo.67

Essa constatação, no entanto, não é suficiente para se afirmar que homens e mulheres sejam submetidos igualmente à cultura patriarcal, pois é incontestável que estas, historicamente, estiveram subordinadas às necessidades e ambições pessoais e políticas dos homens.

A historiografia sobre a condição da mulher no direito penal brasileiro evidencia, claramente, os sinais do patriarcado. As referências ao feminino sempre se fundaram na percepção da mulher como vítima, condição, certamente, decorrente do papel social que foi, historicamente, atribuído à mulher, nas sociedades patriarcais, o qual se fundava no entendimento da mulher como um ser mais frágil, portanto, carente de proteção. Porém, esse mesmo papel de ser mais frágil, na égide do patriarcado, ao mesmo tempo em que garante à mulher certa proteção, também se torna justificativa para mantê-la sob dominação, sendo a violência em todos os seus matizes um instrumento hábil para exercício desse controle.

A mencionada proteção penal, também, sempre esteve atrelada aos crimes sexuais e restrita, em muitos casos, a um grupo de mulheres às quais se podia

66 Apud, SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero e patriarcado. pp. 35-76. In: CASTILLO-MARTÍN, Márcia e OLIVEIRA, Suely de. (org.). Marcadas a ferro: violencia contra a mulher uma visão multidisciplinar. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. p. 41.

67 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero e patriarcado: a necessidade da violência. In: CASTILLO-MARTÍN, Márcia. OLIVEIRA, Suely de. (org.). Marcadas a ferro: violencia contra a mulher uma visão multidisciplinar. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005, p. 39.

qualificar como “virgem” ou “honesta”, isto é, àquelas mulheres que se submetiam

ao padrão moral da sociedade patriarcal.68

Marília Mello destaca que essa “proteção” não era estendida a mulher que se configurasse no polo ativo, a essa não era garantido, por exemplo, nenhum tipo de redução de pena, mesmo quando civilmente era considerada de capacidade reduzida.69

Certamente, ao estar na condição de autora, a mulher rompia com o padrão de conduta esperado para ela, logo já não era digna do tratamento protetor. A depender do crime cometido, por exemplo, adultério, a condição de mulher não só deixaria de ser razão de proteção, mas passaria a ser fator de maior reprovação da conduta.

Os movimentos feministas, que a partir da década de setenta se organizaram no país, empreenderam muitas lutas em favor da emancipação da mulher e da

igualdade entre os sexos.70 Em verdade, esses movimentos, em todos os países,

sempre estiveram comprometidos com o combate a todas as formas de discriminação e opressão, sobretudo, as que eram julgadas resultantes das relações de gênero. Dessa forma, foram construindo uma identidade atrelada não só à luta em favor das mulheres, mas também em favor das minorias em geral e da concretização dos direitos humanos.

No direito brasileiro, o resultado dessas lutas foi especialmente consagrado com a Constituição Federal de 1988, na qual se declarou a igualdade formal entre os sexos e rejeitou-se qualquer forma de discriminação resultante da opção sexual.

Dentre as muitas frentes de combates das feministas, a questão da violência doméstica e familiar contra a mulher ganhou especial destaque, pois foi sempre percebida como um problema próprio das relações de dominação entre os gêneros.

Ressalte-se que, no Brasil, episódios de violência contra a mulher que envolviam pessoas de classes mais abastadas e que tiveram grandes repercussões

68 Cf MELLO, Marília M. P. de. Do juizado especial criminal à Lei Maria da Penha: teoria e prática da vitimação feminina no sistema penal brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: SED. 2008, p. 1.

69 MELLO, Marília M. P. de. Do juizado especial criminal à Lei Maria da Penha: teoria e prática da vitimação feminina no sistema penal brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: SED. 2008, p.1.

70 CAMPOS, Carmen Hein de. A contribuição da criminologia feminista ao movimento de mulheres no Brasil. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (org.). Verso e Reverso do controle penal: (dês)aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 133- 134.

na mídia foram decisivos para que houvesse muitas manifestações feministas contra essa forma de violência. O caso mais conhecido foi o do homicídio de Ângela Diniz cometido por Doca Street, episódio que deflagrou campanhas por todo país com o slogan “Quem ama não mata”, visando destruir a tese de legítima defesa da honra e

a impunidade em todas as formas de violência contra a mulher.71

Assim, estrategicamente, as feministas buscaram publicizar essa forma de

conflito, com o objetivo de trazer a questão, antes mantida no espaço privado, para a pauta das políticas públicas, por entender que o espaço privado é, por excelência um espaço de dominação.

A principal estratégia defendida pelos movimentos feministas oficiais72,

principalmente na Europa e nos Estados Unidos da América, para responder a violência doméstica e familiar contra a mulher foi a da criminalização das condutas violentas. No Brasil, essa tendência mundial foi repetida e já está recepcionada por várias normas penais.

Antes de tratar dessas normas, deve-se destacar que ao fazer opção pelo sistema penal como instância supostamente eficaz para a resolução dos conflitos oriundos das relações domésticas, as feministas europeias e norte-americanas tinham ciência de que estavam utilizando o direito penal de forma simbólica. Vera Andrade destaca que na década de oitenta, essas feministas sustentaram não estar somente interessadas no castigo, mas no caráter declaratório do direito penal de

difundir os valores da moral feminista.73

No Brasil, já na década de noventa, a proposta de criminalização das condutas consideradas lesivas às mulheres pelas feministas não se justificou apenas no caráter simbólico. Segundo Vera Andrade, parece que a função retribucionista foi o principal objetivo. Os movimentos feministas queriam e querem mesmo a punição dos homens, embora acreditem, também, ser possível com o

71 CAMPOS, Carmen Hein de. A contribuição da criminologia feminista ao movimento de mulheres no Brasil. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (org.). Verso e Reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p.134. 72 CAMPOS, Carmen Hein de. A contribuição da criminologia feminista ao movimento de mulheres no

Brasil. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (org.). Verso e Reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 135. 73 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania mínima: códigos da

direito penal alcançar uma mudança de consciência e atitude masculinas no que

tange à violência contra a mulher.74

Na esteira dessa tendência criminalizadora feminista, houve a tipificação do assédio sexual pela lei 10.224/01, que introduziu o art. 216-A no Código Penal, da violência doméstica pela lei 10.886/04, que acrescentou o § 9º ao art.129 do Código Penal e, finalmente, a criação da lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, que culminou nesse processo de recrudescimento do direito penal como justificativa para enfrentar a violência que tem a mulher como vítima.

Do ora exposto, pode-se concluir que a criminalização da violência doméstica e familiar contra a mulher nasce do ideal de emancipação feminina na luta contra as marcas do modelo patriarcal, ideal que se torna bandeira dos movimentos feministas, os quais compreendem essa violência como um problema de gênero e creditam ao sistema penal, entre outros, o papel de promotor desse ideal.

Essa compreensão da violência familiar contra a mulher, decerto não pode ser considerada ilegítima, o viés do gênero deve sempre integrar qualquer pretensão de aprender e dirimir essa forma de conflito. No entanto, quer se destacar aqui, com base numa criminologia crítica feminista, que esse entendimento, o qual fundamentou o discurso criminalizador, apresenta limitações e que a opção pelo sistema penal como um promotor da emancipação feminina foi, além de uma contradição com os ideais democráticos dos movimentos feministas, um erro estratégico na busca de empoderamento para as mulheres.

Logo, tal compreensão desse fenômeno e da estratégia penal como forma eficaz de enfrentamento dele, embora majoritária e representadora do discurso oficial de emancipação da mulher, não é unânime entre aqueles que defendem mais democratização nas relações sociais, conforme se demonstra mais adiante.