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Em 1862, Joaquim Manuel de Macedo ressaltou, no Instituto Histórico, que era mais fácil descobrir a verdade quando diversos autores se ocupavam do mesmo assunto.491 Não me parece que tal esforço coletivo se aplicou à história do Ceará neste momento historiográfico. A busca pelo passado comum se deparou ante passados particulares, envoltos em mistérios e lendas. No incansável trabalho de poder-provar para poder-dizer, por tempos arredios em espaços em movimento, destaco dez pontos na análise historiográfica da narrativa pioneira de Tristão de Alencar Araripe.

O livro a História da província do Ceará desde os tempos primitivos até 1850 foi publicado num momento de intenso debate sobre a história do Ceará, do Norte e do Brasil. Antes de seguir o que muitos preconizavam na Corte – instinto ou espírito de nacionalidade e marcas de brasilidade492 – vimos a primeira história do Ceará imersa em polêmicas alimentadas por argumentos de provincialismo. A intrínseca organicidade ao conjunto nacional, almejada pela instituição autorizadora (IHGB), foi afetada por tensões e disputas nas páginas do seu periódico.

A dificuldade de investigar e relatar os episódios ocorridos em terras cearenses seccionou o passado em dois: o recente e o distante. As fronteiras cronológicas não foram demarcadas precisamente. Envolveram documentos, poesias, escritos antigos e modernos, testemunhos, testemunhas, enfim, um arquivo heterogêneo, volúvel, inconstante. O passado remoto teve no indígena, no selvagem, no íncola, no não-civilizado, no bárbaro, a questão primordial enquanto o passado recente teve na família Alencar, com seus projetos revolucionários, o foco de contestações.

A escrita da história do Ceará não pode ser analisada sem levarmos em consideração as

atividades envolvidas na fase documental do labor dos homens de letras, verdadeiros “ratos de arquivo”.493

As lacunas na narrativa derivaram consideravelmente das fontes. A tradição jogou um papel importante, servindo ou não conforme os argumentos dos autores. A poesia e a prosa ficcional preencheram tais lacunas e possibilitaram ver sombras e ouvir sussurros de outrora. As cartas régias permitiram reconstruir o passado provincial, independente se as ações ali determinadas foram efetivadas. Antecipou o que seria dito muito tempo depois: a

491 MACEDO, J. M. de. Dúvidas sobre alguns pontos da história pátria. RIHGB, t. 25, p. 3-41, 1862. p. 4. 492 ROUANET, M. H. Eternamente em berço esplêndido: a fundação de uma literatura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 238.

493 Utilizo a designação dada por Antonio Candido a Joaquim Norberto da Sousa Silva e sua paixão pelos documentos. CANDIDO, A. O método crítico de Silvio Romero. São Paulo: EDUSP, 1988. p. 21.

criação da realidade pela lei no “abstrato império das ordens régias”.494

Os processos judiciais entornaram o caldo das polêmicas diante dos julgamentos dos homens, da História e da posteridade. Entre fontes dispersas e voláteis, a narrativa arquivou documentos e depoimentos que não chegariam aos demais pesquisadores por outro modo.

O sumiço do índio no presente foi compensado pela narrativa farta de bárbaros e exaltadora das proezas do herói Poti no passado remoto. O selvagem foi exemplarmente convertido no roldão do processo civilizatório pelos sertões cearenses. Ao redor do guerreiro indígena giraram tempos históricos e tempos míticos. A escrita se preocupou em lhe dar um berço sem lhe conhecer a origem e o destino. O Ceará buscava se inscrever no panteão dos

heróis “nacionais” enquanto seu herói estava sendo renhidamente disputado pelas províncias

do Norte. Da busca no passado por vestígios legitimadores da “nacionalidade” de Felipe Camarão, valeu a tradição. Com poucos documentos se teve muitas narrativas.

A atuação da família Alencar, nos movimentos revolucionários contra o poder central, esteve imbricada no passado “quase contemporâneo” do Ceará. O registro e o debate, ainda que motivassem a pesquisa, silenciaram, impediram, cegaram, anuviaram, enervaram os investigadores. Mais que um embate local, provincial, regional, a escrita da história do Brasil, nos intentos unificadores, monárquicos, incruentos, providenciais, não seria levada adiante sem tocar no vespeiro da ação dos Alencar. E foi coincidência que, no seio dessa família, despontou o primeiro historiador cearense? Aquele que, pela imparcialidade, almejou a verdade? A escrita por Tristão de Alencar Araripe não se constituiu num “ritual de

sepultamento” para o desmerecimento vivo de um morto ilustre?495

Não buscou a catarse para um ressentimento duradouro? Da busca no passado por vestígios legitimadores da boa fé dos intentos da tradicional família cearense, não valeu a tradição. Com mais documentos se teve menos narrativas.

O povo, entidade indefinida e menosprezada, foi convidado a colaborar na composição do conjunto de provas. O público ledor foi acionado pelos jornais a participar no julgamento dos episódios pretéritos. Foi o intermediador no repasse da gama de informações espalhadas pela província, naquilo que os literatos chamaram de tradição ou opinião geral. Tratou-se de agente importante a corroborar na narrativa dos grandes homens, mas que tangenciou a história do Ceará. O povo apenas suscitou atenção quantitativamente. Ficou para a prosa ficcional e a poesia o resgate do passado recente do sertanejo, do lavrador, do pescador, do

494 FAORO, 2008, p. 143.

495

CERTEAU, 2006, p. 107. O pensamento histórico segue a lógica do luto ao transformar o passado ausente, que é parte da identidade de alguém, em vida presente e atual. RÜSEN, J. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 2, p. 163-209, 2009. p. 201.

soldado, do vaqueiro, do artesão cearense.496 O povo, literalmente, era ficção. A não-escrita do povo cearense esteve relacionada ao debate que atravessou o pensamento brasileiro por

todo o século XIX: “com que povo contamos para construir o país.” A escrita da história do

Ceará se aproximava da escrita da história do Brasil, onde o país era um lugar positivo; a negatividade advinha dos seus habitantes.497

Os passados recente e remoto do Ceará não foram privilégio dos historiadores; dos profissionais que passaram à posteridade como autoridades em falar dos tempos pretéritos. O acesso aos passados cearenses foi construído por um grupo heterogêneo de homens de letras sob aquilo que convencionamos chamar de cultura histórica oitocentista. Escritas plurais ou híbridas que propuseram, discutiram, interrogaram, auxiliaram a construir o conhecimento histórico de uma das províncias menos conhecidas do Império. Esse canteiro de obras é

esquecido pelos historiadores da historiografia brasileira. Observo essa “ilusão

historiográfica” ao problematizar o pioneirismo do livro de Tristão de Alencar Araripe. O

historiador de Icó se situou numa prática solitária ao desmerecer as diligências do arredio Franklin Távora e as do grupo ativo e unido de Pedro Théberge, João Brígido dos Santos e Tomás Pompeu de Sousa Brasil. A necessidade de marcar origens, de mostrar progresso e evolução disciplinar ocupou (e ainda ocupa) os historiadores provinciais, regionais, estaduais na preparação do panteão escriturário ou cânon historiográfico: historiadores que selecionam historiadores, historiadores que esquecem historiadores. Trata-se de uma prática reducionista muito em voga, lembrada recentemente.498

A força da instituição e seu poder irradiador são admiráveis ao observarmos o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro na cultura histórica cearense. Considerando as dificuldades de deslocamento pelo espaço e pelo tempo no Brasil do Dezenove, as discussões travadas no Paço Imperial ecoaram por cantões longínquos. Os debates nos mostraram a

496 Sílvio Romero destacou a “acertada intuição” que Távora teve de fazer das classes populares no passado e no presente a base de seus romances, como em O Cabeleira (1876). ROMERO, S.; RIBEIRO, J. Compêndio de história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906. p. 300. Para o Ceará, a “gente miúda” figuraria no romance O sertanejo de José de Alencar publicado em 1875. Sobre o “cearense”, não obstante não ter espaço nas narrativas históricas, a passagem da Comissão Científica pelo Ceará teve influência marcante sobre o folclorista Juvenal Galeano da Costa e Silva (1836-1931) que escreveu o livro Lendas e Canções Populares (1865), no qual abordou de forma nostálgica e utópica um passado perdido, de fartura e trabalho, descrevendo tipos populares como o pequeno lavrador, o pescador, o vaqueiro e o artesão. ALEGRE, 1989, p. 215, nota 4. O personagem típico da região, as suas preocupações características, meios de vida, costumes, psicologia e formas de sociabilidade entraram na literatura pela mão desse poeta. Militante ativo no partido Liberal, além de numerosos poemas patrióticos inspirados na Guerra do Paraguai, Galeano foi autor de significativa poesia de protesto social. MARTINS, 1996, v. 3, p. 237-239.

497 MORAES, 2008, p. 94. 498

ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. de. O historiador naïf ou a análise historiográfica como prática de excomunhão. In: GUIMARÃES, M. L. S. (Org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. p. 192-215.

pluralidade de critérios a ser observada pelos escritores de histórias. Foram propostas não unânimes, plurais, contraditórias. Contudo, não obstante esse vigor institucional, a produção do conhecimento histórico ultrapassou sua esfera de atuação. Houve muita pesquisa e escrita para além do lugar autorizador. Jornais, livros, revistas, institutos regionais e grupos de pesquisas no Norte (não institucionalizados) atestaram a dinâmica fora da Casa da História. O lugar privilegiado entrou em choque com as províncias. O Instituto foi criado quando o país buscava “proteção contra a revolução”. Os princípios republicanos, que explodiram pelos cantões do Império, deveriam ser rejeitados e combatidos.499 Não estaria justamente nesse forte espírito opositor a expressividade do provincial?

O autor Tristão de Alencar Araripe teve motivos para escrever a história do Ceará além dos expressos no prefácio de 1862. O escritor da narrativa pioneira não se despiu das formações e trajetórias jurídica e política. Escamoteou-as quando conveniente. Polêmico na tribuna, não foi polêmico na história. Praticou a história durante o ostracismo parlamentar. O historiador da história inconclusa mostrou receio de levar em frente o registro do passado recente da província e se restringiu a artigos de jornal por meio de criptônimo não reconhecido pela maioria dos coevos e pósteros. Deixou ao primo, José de Alencar, o embate em prol da memória do pai e do tio revolucionários. O livro em suspenso integrou uma gama de ações do literato visando à própria consagração na Corte. Fez-se e fizeram-no o primeiro historiador, pois elidiram os demais: Théberge ou Brígido poderia sê-lo.

Os dez pontos acima extrapolaram o livro em si de Alencar Araripe. Mergulhamos no caudaloso movimento de constituição disciplinar. A História para instruir e julgar. A História como processo pedagógico e jurídico a ser usado politicamente.500 Da intratextualidade passei para a transtextualidade. Dissequei narrativas e investiguei escritas para compreender como, em meio aos dilemas cognitivos, seu autor chegou a Conselheiro do Imperador. Em minha abordagem, reforcei a necessidade de ler diretamente os textos e não permanecer na leitura dos comentaristas. No entanto, tais leituras interpretativas foram importantes para entender como se constrói a historiografia brasileira desde o século da História. A partir de 1880, com essa experiência arquivística e escriturária no Norte, Tristão de Alencar Araripe teve publicada uma das primeiras narrativas sobre o mais longo conflito no Brasil Império: a

499

GUIMARÃES, M., 2011, p. 69.

500 De acordo com Araujo, um dos problemas mais difíceis de dimensionar na história da historiografia do Dezenove é o significado da permanência do topos historia magistra vitae. No entanto, parece-me precipitado

afirmar que “ela estava efetivamente superada, ao menos no Brasil, por volta de 1840. ARAUJO, V. L. de.

História dos conceitos: problemas e desafios para uma releitura da modernidade ibérica. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 7, p. 47-55, maio 2008b. p. 55. Redireciono a afirmação na pergunta: superada em que autor e/ou em qual texto?

Guerra dos Farrapos (1835-1845). Um passado recente e incômodo no extremo Sul do país. Houve novas pesquisas, novas narrativas, novas discussões, novas práticas, novos contatos, novos lugares, novos arquivos, novos argumentos de provincialismo. O quanto tais novos(as) estavam encharcados de antigos(as)? É o que tratarei no próximo momento historiográfico.

PARTE II

(Rio Grande do Sul – 1880)

Mais tarde, quando se for rastrear os depoimentos severos para o plenário da posteridade, pode ser que se encontre um ciclo de episódios romanescos e maravilhosos para um cancioneiro e não fundamentos seguros para sentenças convictas. Desembargador Oliveira Bello em Os Farrapos (1877)

O historiador é juiz; e o juiz deve ser competente e julgar pelo processo. A competência dá o tempo; o processo organiza-se pelos depoimentos, acumulando-se os documentos, em que estes se contêm. Escrever antes do tempo é ser juiz ilegítimo; é proferir sentença sem processo regular. Os contemporâneos não são historiadores; são apenas testemunhas e organizadores do processo. Conselheiro Araripe em Guerra Civil do Rio Grande do Sul (1880)

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PRIMEIRA MEMÓRIA DA REVOLUÇÃO RIO-GRANDENSE