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2 TELENOVELA BRASILEIRA NA REDE GLOBO: DA BUSCA POR

2.4 O AUTOR POR SUAS CARACTERÍSTICAS FICCIONAIS

2.4.1 Histórias da vida real

Outro elemento característico de Manoel Carlos presente em Mulheres Apaixonadas são as tramas de ficção baseadas em experiências vividas pelo dramaturgo ou em notícias lidas por ele em jornais diários. Após morar dois anos em Nova York, por exemplo, Manoel Carlos constatou comparativamente, como a terceira idade é maltratada no Brasil. Então, resolveu criar uma personagem jovem que tratava mal os avós. Crente de que a primeira aparição é que dá o tom de um personagem, fez com que, em sua primeira cena, Dóris (Regiane Alves) aparecesse repreendendo o casal de idosos, que acabava de ser atropelado por um ciclista, na calçada. Segundo ele, a reação foi instantânea e, no dia seguinte à exibição da

cena, a atriz já era hostilizada, chegando a ser agredida fisicamente por algumas pessoas, na rua (AUTORES, 2010).

De forma semelhante, a história da problemática Paulinha surgiu durante uma conversa informal que o dramaturgo teve com a professora de seu filho caçula.

Na ocasião, ele tomou conhecimento do caso de uma aluna da escola que escondia dos colegas, por vergonha, que era filha do porteiro do estabelecimento (AUTORES, 2010). Transposta para a ficção, a trama da menina hostil (Ana Roberta Gualda) que humilhava o próprio pai (Tião D´Ávila) conquistou espaço no decurso da telenovela (Teledramaturgia, 2010).

Uma terceira trama remetia á lembrança de uma situação vivenciada por Manoel Carlos quando ele estudava em um internato. Naquela época, o gestor da instituição, padre Pedro Maria, foi surpreendido pela confissão de uma moça que se declarou apaixonada por ele. Inspirado nesse episódio, o autor criou a história de amor entre Stella (Lavínia Vlasak) e padre Pedro (Nicola Siri) (Autores, 2010).

Uma das histórias de maior repercussão da telenovela, a trama sobre violência doméstica protagonizada por Raquel (Helena Ranaldi), no entanto, foi criada devido à recorrência desse tema na imprensa nacional. Por essa razão, Manoel Carlos afirmou que se sentiu obrigado a abordar este assunto na telenovela, por se tratar de uma realidade muito comum no Brasil (Carlos, 2012).

Porém, o uso de conteúdo noticioso como fonte para a criação de histórias de ficção por parte de Manoel Carlos não é uma prerrogativa de Mulheres Apaixonadas. O hábito de ler jornais e revistas levou o dramaturgo a compor um arquivo pessoal de material jornalístico, que ele chama de ―lixão‖, a partir do qual encontra fatos e personagens que servem de matéria-prima para as suas criações.

A história central de sua primeira telenovela de horário nobre, Baila Comigo (1981), por exemplo, foi inspirada em uma notícia sobre um rapaz que se dizia filho bastardo do ex-presidente da República João Goulart e, portanto, pleiteava a sua parte na herança do parlamentar. Na história de ficção criada pelo autor, o protagonista, Quinzinho (Tony Ramos), descobre que é filho do rico empresário Joaquim Gama (Raul Cortez) (Teledramaturgia, 2012).

Entre 1997 e 2009, período no qual se fixou como autor de primeiro-escalão da emissora, Manoel Carlos escreveu cinco telenovelas para o horário nobre da

Globo, uma a cada três anos. De acordo com ele, todas elas tinham alguma ligação com casos reais que lhe chamaram a atenção quando repercutidos pela imprensa.

A ideia central de Por Amor (1997-1998) remete a um recorte de jornal que noticiava a atitude de uma mãe impedida de matar o próprio filho. Ela alegava que preferia assassiná-lo a vê-lo morrer de fome. Acreditando que o amor materno é o único inquestionável, o autor criou a trama na qual uma mãe (novamente chamada Helena e interpretada por Regina Duarte) dava seu bebê recém-nascido à filha (Eduarda, vivida por Gabriela Duarte), cujo filho nasceu morto, por acreditar que a jovem tinha mais direito à felicidade (Memória Globo, 2010).

De forma semelhante, a trama principal de Laços de Família (2000-1) foi baseada em uma notícia sobre uma mãe, dos Estados Unidos, que engravidou para, assim, ter um doador de medula óssea para a filha, com leucemia. Transposto para a telenovela, o caso foi protagonizado por Helena (Vera Fischer) e Camila (Carolina Dieckmann).

Já o mote central de Páginas da Vida (2006-2007), surgiu depois que Manoel Carlos começou a fazer leituras sobre a Síndrome de Down12, na internet.

Ao perceber que a preocupação com a inclusão dos portadores dessa patologia na sociedade era muito grande, resolveu escrever a sinopse em torno dessa situação.

Assim nasceu a história de mais uma Helena (Regina Duarte), médica que adota Clara (Joana Mocarzel), uma criança com Síndrome de Down e, a partir daí, começa a lutar pela inclusão social da menina.

No entanto, a inspiração em histórias reais não se restringe às tramas centrais destas telenovelas. Muitas reportagens de jornais motivaram a criação de histórias secundárias, mas de grande repercussão. Dentre elas, destacam-se os dramas vividos pela adolescente Gisele (Pérola Faria), que sofria de bulimia13; e pela freira Lavínia (Letícia Sabatella), que se apaixonava por um paciente com Aids;

ambos apresentados em Páginas da Vida (2006-2007).

12 Doença genética provocada por uma falha na transmissão do cromossomo 21. Em vez de esse gene ser transmitido em forma de par (masculino e feminino), o faz de em forma tripla, a qual se dá o nome de trissomia.

13 Transtorno alimentar caracterizado por episódios recorrentes de "orgias alimentares", no qual o paciente come, num curto espaço de tempo, grande quantidade de alimento como se estivesse com muita fome. A pessoa perde o controle sobre si e, depois, tenta vomitar e/ou evacuar o que comeu, através de artifícios como medicações, com a finalidade de não ganhar peso.

Contudo, segundo a imprensa da época, os temas que mais bem repercutiram ao serem abordados pela ficção foram apresentados na telenovela Laços de Família (2000-1). Após ler uma reportagem, no jornal Folha de São Paulo, sobre universitárias que se prostituíam para custear os estudos, o autor interessou-se pelo tema e o abordou a partir de Capitu (Giovanna Antonelli), protagonista de uma das histórias paralelas de maior sucesso da telenovela. Para garantir mais veracidade à personagem, o dramaturgo entrevistou várias garotas de programa universitárias e chegou à conclusão de que, ―tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, existe praticamente uma garota de programa em cada sala de aula‖

(AUTORES, 2010, p.67).

Na mesma obra e também oriunda de reportagens de revista, veio à tona a questão da impotência sexual masculina, personificada na figura do bonachão Viriato (Zé Victor Castiel). Justificando a abordagem desse assunto, Manoel Carlos comentou:

Em todas as revistas e jornais, lia-se: ―a impotência não é uma doença incurável‖. Foi uma violência, uma carga enorme, pretensiosamente, querendo apoiar os impotentes. Eu imaginei que esse assunto deveria estar interessando muita gente, senão não haveria tanta coisa a respeito [...]

Então, pensei: ―vou colocar um personagem impotente. Acho que vai causar não apenas polêmica, mas servir de aconselhamento‖ (AUTORES, 2010, p.

70)

A partir de Mulheres Apaixonadas (2003), Manoel Carlos iniciou uma prática que se consolidou em suas obras seguintes: uso de recursos de linguagem e comunicação que visam a aproximar as histórias de ficção da realidade social de seus telespectadores. No caso desta telenovela, o diálogo entre ficção e realidade faz-se presente já na vinheta de abertura do programa, que exibia fotos de

―mulheres em situação de paixão‖, enviadas pelos telespectadores à produção da trama.

Inseridos no texto ficcional, encontravam-se, ainda, elementos de realidade mais explícitos. O drama vivido por Heloísa, por exemplo, ajudou a mostrar que a dependência afetiva extrapola os limites da insegurança, podendo ganhar um fundo patológico. Além disso, divulgou o trabalho do MADA (Mulheres que Amam Demais Anônimas), uma associação real especializada no tratamento desse tipo de comportamento, da qual a personagem de Giulia Gam passa a fazer parte. Caso

parecido ocorre a partir da história de Dóris. Suas maldades contra os avós fazem com que estes passem a morar no Retiro dos Artistas – instituição real, sediada na cidade do Rio de Janeiro, que, conforme o nome, abriga artistas idosos e inativos – que, ganha maior visibilidade graças à sua aparição na trama fictícia. O casal de idosos em questão, que interpretam ex-atores, aliás, protagoniza uma cena na qual fala sobre a importância da vacina contra a gripe para os idosos.

Em escala maior, a telenovela promoveu situações dramáticas que lembravam as linguagens jornalística e documental. Em uma cena marcada pelo realismo, as personagens Téo e Fernanda encontram-se em meio a um tiroteio no bairro do Leblon. O que era para ser apenas o motivo da morte da personagem de Vanessa Gerbelli, vítima de uma bala perdida, deu início a um trabalho conjunto entre o autor Manoel Carlos e a organização não governamental Viva Rio, comprometida em ―difundir a cultura da paz e o desenvolvimento social‖ (VIVA RIO, 2011).

A ONG promoveu uma manifestação denominada Brasil sem Armas, que pedia a aprovação do Estatuto do Desarmamento pelo Congresso Nacional. A passeata na Avenida Atlântica, na capital fluminense, contou com a participação de cerca de 40 mil pessoas. Dentre elas, encontrava-se grande parte do elenco da telenovela. Em uma cadeira de rodas, o ator Tony Ramos, cujo personagem havia sido baleado, encabeçava a marcha, assistida pelo público telespectador no capítulo do dia seguinte, ao som do Hino Nacional Brasileiro.

A obra de ficção produziu ainda uma discussão sobre a violência urbana, que também misturava ficção e realidade. Em uma sequência que reproduzia um debate na aula da professora Santana, os pais da jovem Gabriela Prado Maia – vítima real de bala perdida, na cidade, naquele ano – expuseram o problema da violência nas grandes cidades e da impunidade que, normalmente, a ela sucede (Memória Globo, 2010).

Diante do êxito de público e crítica, a inserção de recursos documentais no conteúdo ficcional se repetiu, de forma sistematizada, nas duas telenovelas seguintes assinadas por Manoel Carlos. Páginas da Vida (2006-7) apresentou diferentes formas de congregar ficção e realidade. A trama, que era dividida em duas fases, trouxe cenas nas quais os personagens assistiam, pela televisão, às

imagens do atentado terrorista ocorrido em Nova York no dia 11 de setembro de 2001, ano em que tinha início a história fictícia.

Na mesma linha de diálogo com a realidade social da época, destaca-se a cena em que as intérpretes das freiras que cuidam do hospital onde se passa parte da trama liam e comentavam a notícia real sobre morte do menino João Hélio, de seis anos, que foi arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro, após ficar preso ao cinto de segurança do carro que acabava de ter sido roubado de sua mãe. A sequência terminava com uma oração das religiosas fictícias pela alma da criança. Ainda no que concerne ao jogo entre o real e o fictício, mas em tom de descontração e trivialidade, registra-se a inusitada participação de pessoas comuns, como alguns moradores, o chaveiro, um garçom e o dono da banca de revistas do bairro do Leblon. Eles interpretaram a si mesmos, conservando seus nomes para, propositalmente, diminuir a distância entre ficção e realidade.

Com recursos que lembram a linguagem documental, Páginas da Vida inovou ao exibir nos capítulos finais, 17 clipes gravados em campos de refugiados na África, para onde viajou o protagonista masculino da história, o médico Diogo (Marcos Paulo). No entanto, foi uma iniciativa inédita na história das telenovelas brasileiras o resultado mais fecundo do esforço de Manoel Carlos em imprimir o máximo de realismo em sua telenovela: o capítulo exibido em 28 de dezembro de 2006 mostrou imagens de um parto real inserido no curso da narrativa fictícia. A cena foi protagonizada pela atriz Júlia Carrera, que, na telenovela, interpretava a fonoaudióloga Tatiana, e, na vida real, deu à luz um filho do também ator e colega de elenco Bruce Gomleski (Memória Globo, 2010).

Diferentemente de sua antecessora, a telenovela Viver a Vida (2009-10) apostou no uso da internet para promover a interação entre personagens de ficção e telespectadores reais. O grande número de pedidos de informação a respeito das adaptações usadas pela personagem tetraplégica Luciana como auxílio nas tarefas cotidianas – como escrever ou pentear os cabelos – registrados pela Central de Atendimento ao Telespectador, da Rede Globo, levou a equipe de produção da telenovela a facilitar a comunicação com o público interessado. Como resultado, foi criado o blog Sonhos de Luciana (www.blogsonhosdeluciana.com.br), redigido e atualizado por produtores, roteiristas e consultores portadores de deficiência. Porém, assim como a obra anterior, essa também apresentou a inserção de depoimentos de

pessoas reais, anônimas ou não, que relatavam passagens marcantes de suas vidas ou histórias de superação, ao fim de cada capítulo.