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2. A DESIGUALDADE NO BRASIL

2.1 HISTÓRICO

É fundamental para a compreensão do problema levantado, verificar a evolução histórica da sociedade brasileira, propriamente a forma como se deu o desenvolvimento do país, fazendo-se necessário esboçar uma linha demonstrativa de como se efetivou tal formação até atingirmos o status de Estado em desenvolvimento.

Corroborando a linha seguida na presente abordagem, os autores85 da pesquisa sobre a exclusão social no Brasil são claros acerca da importância de conhecer a evolução brasileira, e afirmam que as especificidades históricas e geográficas são importantes como elementos explicativos das distintas situações de manifestação e de acumulação de riqueza, bem como das diversas formas de concentração de riqueza em pequenos agregados sociais e espaciais, destacando como isso repercutiu no acesso à cidadania pelo povo brasileiro. A advertência contida no Atlas

da Exclusão Social cabe plenamente na explicação do processo de

desenvolvimento :

No Brasil, o estoque de riqueza e fluxos de renda decorrentes têm, conforme poderá ser constatado a seguir, a partir de dados estatísticos, interpretações históricas da realidade nacional e contribuições várias do pensamento sociológico e econômico, o Brasil constituiu-se a partir de um padrão extremamente excludente e concentrador de riqueza, não obstante a configuração de distintas formas de manifestação da riqueza e de composição dos ricos ao longo do tempo.

Outro aviso é colocado por Caio Prado Júnior86, nos seguintes termos: “todo povo

tem na sua evolução, vista à distância, um certo ‘sentido’. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais

85 POCHMANN, Marcio et. al. (organizadores). Atlas da Exclusão Social, volume 3: os ricos no

Brasil. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 25.

86 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 23. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 19.

que a constituem num largo período de tempo”. O mesmo autor87 lembra que a colonização se deu de forma exploratória, pois o homem branco não veio para trabalhar, mas para dirigir o trabalho alheio no novo negócio da América. Tratava-se de uma empresa comercial, objetivando explorar os recursos naturais dos trópicos para prover o comércio europeu. É este o sentido da colonização que explicará os elementos fundamentais da formação econômica e social brasileira.

Caio Prado Júnior88 enfatiza que esse modelo de colonização, que por tanto tempo perdurou, acarretou uma organização social voltada para atender o mercado europeu, voltada para fora, sendo tudo realizado no interesse daquele comércio. O branco europeu vem para especular, recrutando mão-de-obra escrava ou indígena. As resultantes secundárias desse processo, que tendem para algo “mais elevado” são pouco notáveis. Afirma, ainda, que ter isso em mente é fundamental para a compreensão da história do Brasil. Em seu estudo levanta vários pontos importantes na conformação nacional: a forma de povoamento, a vida material, as relações de produção, a vida social, a organização social oriunda de uma miscigenação de três raças: o negro e o índio subjugados pelo branco europeu, como fatos que deram a feição do povo brasileiro. Sobre o final do processo de colonização, explica sua transição para nova organização social e econômica: primeiro o quase esgotamento dos recursos naturais do país, passíveis de serem explorados mediante o arcaico processo utilizado à época. Além disso, destaca um resultado fundamental desse tipo de colonização89, a proporção considerável de populações que vão ficando à

margem da atividade produtiva, a organização econômica se restringia aos senhores e escravos. Essas populações, a despeito de continuarem marginalizadas da atividade econômica, cresciam. Esse fenômeno serviu como indicativo de que o modo de produção escravagista estava caminhando para sua consumação.

Mesmo diante de um sistema colonial que almejava somente explorar os recursos naturais desta terra, mediante a exploração do nativo e do negro, consegui u-se formar uma sociedade que escapou da dicotomia senhor/escravo. O surgimento de novas relações sociais fora daquela relação entre senhor e escravo, é o fruto

87 PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo, p. 28-31. 88 Ibid., p. 31-32.

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apreciável a que Caio Prado Júnior faz referência. Por outro lado percebe-se a morosidade da evolução no período colonial. Antes de prosseguir com o processo de desenvolvimento, fica a síntese de como Portugal enxergava sua principal colônia, um negócio do rei, com preocupação estritamente financeira, no Brasil não havia uma sociedade ou uma economia com que se ocupar, apenas questões financeiras a cuidar, “o Real erário é o personagem que representa em nossa história colonial, e sem nenhum disfarce, o maior papel”.90

O país, tendo deixado de ser negócio fácil para um Portugal em declínio, e que se deparava com outros impérios mais fortalecidos, optou pela alternativa de apoiar-se na Inglaterra em expansão. Como aponta Celso Furtado91, sua principal colônia

acabou sofrendo as conseqüências da forma peculiar como obteve sua independência: transferência da corte portuguesa sob proteção inglesa, continuidade do governo português e repasse dos privilégios ingleses em relação à Portugal para o independente Brasil.

Visto que o período colonial não legou base para uma organização social menos desigual, a independência brasileira foi alcançada fundada no império do interesse português. Não obstante continuar sob a mesma estrutura social da colônia, florescia uma nova organização estatal, que, diferentemente da soberania brasileira economicamente mitigada, buscava firmar novas classes, principalmente de servidores públicos. Sobre esse panorama, a título de ilustração da organização social no período pós-independência, é interessante observar as conclusões de Victor Nunes Leal, em sua pesquisa sobre a organização policial e judiciária do Império:

Verifica-se deste breve resumo que a organização policial, no Império, foi deplorável e esteve dominada pelo espírito partidário. A organização judiciária, por outro lado, conquanto assinalasse sensível progresso em relação à situação anterior, deixava muito a desejar: a corrupção da magistratura, por suas vinculações políticas, era fato notório, acremente condenado por muitos contemporâneos. Como o problema não é de ordem puramente legal, ainda hoje é encontradiça a figura do juiz politiqueiro, solícito com o poder, ambicioso em honrarias ou vantagens, embora muito

90 PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo, p. 362-363.

91 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 34. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 69.

mais extensas as garantias que desfruta. E é justamente no interior que mais se fazem sentir os efeitos da polícia e da justiça partidárias.92

Fenômeno disseminado na primeira República que irá permear boa parte da história do Brasil, cujas raízes encontram-se na colônia e expandem-se no período imperial, o coronelismo, de forma bastante complexa, contribuiu para uma organização social injusta, ao concentrar o poder político, a liderança social e, principalmente, vastas extensões de terra – o principal meio de produção – nas mãos dos coronéis e seus aliados, os doutores e parentes. A montagem de um regime representativo sem antes ter corrigido a base, social e economicamente inadequada gerou uma forma peculiar de representatividade, onde o poder privado exacerbado convive com um regime político de extensa base representativa. “Por isso mesmo, o ‘coronelismo’ é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”93. Leal destaca que a manifestação desse poder privado era sustentada pela estrutura agrária extremamente concentrada. Da proclamação da independência até a República, com o coronelismo permeando os aspectos político e social, é apresentada uma síntese de como se deu essa transição na economia, por Celso Furtado94. Firmada a independência política, trazendo na bagagem os privilégios concedidos aos ingleses, o país apresentou sérias dificuldades econômicas. Em decorrência desta situação o poder central tinha reduzida sua capacidade de ação, ocorrendo focos de desagregação territorial. Pela metade do século XIX , o café tem sua importância aumentada e a ampliação do comércio com os EUA, que passa a ser nosso principal importador. Essa solidariedade entre os dois países contribui para firmar a independência em relação à Inglaterra. O Brasil resiste à pressão e não renova o acordo que permitiria a continuidade dos privilégios ingleses, permitindo uma elevação da tarifa e o conseqüente aumento do poder financeiro do governo, consolidando sua autoridade central. O passivo político da colônia portuguesa estava liquidado. Entretanto, a estrutura econômica baseada no trabalho escravo continuava sem mudanças. A

92 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 224.

93 Ibid., p. 40-41.

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essa estagnação, ou ausência de tensões internas, Celso Furtado atribui o atraso relativo de nossa industrialização, enxergando na expansão cafeeira da segunda metade do século XIX, a modificação das bases do sistema econômico, constituindo uma etapa de transição econômica, da mesma forma que a primeira metade do século XX representou uma fase de transição política.

Também sobre a expansão do café, Gilberto Bercovici95 reafirma a continuidade do

modo de exploração colonial, voltado para fora, baseado na escravidão e que ocupava grandes terras disponíveis. Com o fim do tráfico negreiro, muitos capitais se voltaram para a produção cafeeira, gerando sua ascensão na economia nacional. Relacionados a essa transição econômica, a “solução para as novas aspirações e conflitos surgidos com as transformações econômicas e sociais da segunda metade do século XIX parecia estar no federalismo. A centralização passou a ser vista como um entrave ao desenvolvimento do país”. Enquanto houve identificação do poder econômico com o poder político, ao lado da inexistência de grandes conflitos entre as elites dirigentes, perdurou o poder central. Entretanto, “com o deslocamento do centro dinâmico da economia após 1850, o desequilíbrio criado entre o poder econômico e o poder político deu novo vigor à aspiração federalista, defendida pelos republicanos”.

A República Velha apóia-se no sistema econômico quase exclusivamente baseado no café. Bercovici destaca que, mesmo em meio à crença no laissez faire, o café foi um dos primeiros atos de dirigismo econômico. Em continuidade à forma de produção predatória, os grandes fazendeiros continuavam a buscar terras novas, supridas pela grande extensão de terras devolutas a ocupar. Sobre esse período, próximo do fim da primeira República, é evidenciado o vínculo entre os sistemas econômico, social e político, apontando para o coronelismo como uma de suas características marcantes: “Os coronéis, assim, tiveram papel de destaque no processo de apropriação privada das terras públicas, feito com a conivência das autoridades estaduais” 96.

95 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento – Uma leitura a partir da

Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 132 et seq.

Os anos 1930 caracterizam um momento de ruptura, não somente nacional, mas mundial em decorrência da crise de 1929. Para o Brasil é marcado o início de um novo modelo econômico, o início do incremento industrial. A transição, segundo Caio Prado Júnior97:

É através do sistema imperialista que o Brasil se integrará, de uma forma completa, dentro do mundo e ritmo de vida modernos. Este foi sem dúvida o resultado máximo, no Brasil, da penetração do capital financeiro internacional e do imperialismo dela resultante.

É neste momento então que se verificará plenamente a exigüidade da base econômica em que assentava a vida brasileira. Tornara-se patente a incompatibilidade substancial entre o novo ritmo de existência e progresso material atingido pelo país, e sua modesta categoria de mero produtor de um punhado de matérias-primas destinadas ao comércio internacional. Sobre esta base estreita não era possível manter uma estrutura econômica e social imposta pelas novas condições do mundo de que o Brasil passara plenamente a participar.

A fim de complementar a abordagem histórica da formação social brasileira, deve ser mencionada a visão de Raymundo Faoro. Em extenso estudo da colonização aos anos 1930, este autor parte da consideração de que Portugal não era feudal e que, também, a colonização brasileira não ocorreu de forma feudal, ao contrário do que é difundido historicamente. Evidencia o domínio estamental, um estamento que opera pelo patrimonialismo a direção da sociedade, amoldando-se como a régua de lesbos à medida do interesse português, ao poder que se destina a perpetuar-se nas mãos do grupo dominante. Nesse estudo, Faoro mostra os delineamentos do patrimonialismo, apontando-o como característica marcante de toda a história brasileira e ainda hoje presente.

A Independência, o Império e a República sentirão, a cada passo e em todos os episódios, o latente ou o aberto contraste das duas pontas do dilema. A unidade do governo, traduzida e realizada numa camada social, será a rocha sobre a qual se erguerá a unidade nacional, em luta contra a vocação regional e autonomista das forças locais. No fundo do drama não estão apenas os funcionários leais ao rei pela hierarquia, senão os funcionários que não sabem que atuam sob a vontade do rei, que os doma, disciplina e lhes infunde o cunho de colaboradores submissos.98

97 PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1976. p. 287. 98 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder – Formação do patronato político brasileiro. 3. ed.

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Sobre a tentativa da reorganização política do país independente (item 1, cap. VIII), coloca em primeiro plano a finalidade da Constituição:

A constituição desvincula-se de sua cor reivindicatória e, entre a democracia e a liberdade, “fatos conexos e contrários, estas duas formas paralelas e opostas do individualismo moderno”, opta pela última para conjurar a primeira, num estilo teórico e prático que a restauração de Luís XVIII impusera às monarquias velhas. O esquema procurará manter a igualdade sem a democracia, o liberalismo fora da soberania popular. Linha doutrinária que flui de Montesquieu, passa por Sieyès e se define em Benjamin Constant, não por acaso o pai do Poder Moderador da Carta de 1824. A soberania – se de soberania se trata – será a nacional, que pressupõe um complexo de grupos e tradições, de comunidade e de continuidade histórica, e não a popular, que cria e abate os reis. A liberdade perseguida se torna realidade não na partilha do poder entre os cidadãos autônomos, mas na segurança dos direitos individuais e políticos garantidos pelas instituições. Liberdade de participação, sem o absolutismo monárquico e o absolutismo popular, nem o capricho de um só, nem o domínio de todos contra cada um. Contra os extremos, o sistema constitucional – a monarquia constitucional, num dualismo de equilíbrio. Esta a linha que moldará o Império, nos seus setenta anos de vida, linha tentada por meio de uma assembléia constituinte e, frustrado o instrumento, imposta na outorga da carta.99

A direção da economia no segundo reinado, de acordo com a linha de atuação patrimonialista:

O Segundo Reinado será o paraíso dos comerciantes, entre os quais se incluem os intermediários honrados e os especuladores prontos para o bote à presa, em aliança com o Tesouro. A velha dupla, estamento e comércio, dá-se as mãos, modernizadora nos seus propósitos, montada sobre a miragem do progresso. Os agricultores vergados ao solo, os industriais inovadores servem, sem querer, aos homens de imaginação forrado de golpes, hábeis no convívio com os políticos, astutos nas empreitadas. As raposas se infiltram nos gabinetes, contaminando, com sua esperteza, o tipo social do político. O progressismo, como muito mais tarde o desenvolvimentismo, farão da modernização um negócio de empréstimos, subvenções e concessões, entremeado com o jogo da Bolsa, sob os auspícios do Estado. Modernização esta em choque com as forças conservadoras e agrárias, mas distante das correntes revolucionárias. Ninguém quer matar a galinha dos ovos de ouro, senão viver à custa dela, submissa, calada e recolhida, mas prolífica.100

E ressalta a distinção do caráter patrimonialista:

Enquanto o sistema feudal separa-se do capitalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentrando no

99 FAORO, R. Os Donos do Poder, p. 320. 100 Ibid., p. 500.

corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da ec onomia.

Este curso histórico leva à admissão de um sistema de forças políticas, que sociólogos e historiadores relutam em reconhecer, atemorizados pelo paradoxo, em nome de premissas teóricas de vária índole. Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político, – uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo- lhes os seus valores.

[...]

O estamento, implantado na realidade estatal do patrimonialismo, não se confunde com a elite, ou a chamada classe política (cap. III, 3), mesmo quando esta se esclerosa, incapaz de renovar-se. A minoria governa sempre, em todos os tempos, em todos os sistemas políticos.101

Sobre a característica marcante evidenciada em sua obra, Faoro mostra o patrimonialismo permeando toda a formação nacional sob a égide do estamento, e constata o caráter instrumental das eleições, concluindo sobre o período analisado:

A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário, mesmo na transação aristocrático-plebéia do elitismo moderno. O patriciado, despido de brasões, de vestimentas ornamentais, de casacas ostensivas, governa e impera, tutela e curatela. O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário. O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-maior. E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política, e a nacionalização do poder, mais preocupado com os novos senhores, filhos do dinheiro e da subversão, do que com os comandantes do alto, paternais e, como o bom príncipe, dispensários de justiça e proteção. A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou.102

Com o intuito de verificar o ponto de vista sociológico, além do econômico, utiliza-se a análise de Florestan Fernandes, na qual está desenhado o quadro de como se formou a estrutura de poder, como ela evoluiu de uma oligarquia rural para uma dominação burguesa.

101 FAORO, R. Os Donos do Poder, p. 823-828. 102 Ibid., p. 837.

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Florestan explica103 que o fim do Império e o início da República continham somente

os germes dessa dominação burguesa. Esclarece que não houve uma crise do poder oligárquico, mas uma transição, sob a hegemonia deste poder, para o poder burguês. O comércio era o ponto de encontro entre as várias ilhas burguesas que se formaram em torno das plantações e das cidades. Desde o início, ainda débil, essa burguesia converge para o Estado, para efetivar o pacto de dominação de classe através da política, antes mesmo da dominação sócio-econômica.

Inserida nas estruturas econômicas, sociais e políticas, a burguesia reveste -se de

instrumento da modernidade e passa a tirar proveito de tudo que lhe era vantajoso,

sem, contudo, intervir, em qualquer das mudanças sociais e econômicas. Essa burguesia vinha de um histórico de socialização com a oligarquia rural. Os conflitos com esta eram vinculados à necessidade de expandir negócios, mas a burguesia já havia incorporado o mandonismo oligárquico e, também, não tinha propósito de mudanças mais profundas.104

Assim, na Primeira República, simulando uma burguesia revolucionária, democrática e nacionalista, ela acabou por dar continuidade às condições do Império, que permitiram a coexistência de duas nações, uma que se incorporava à ordem civil, e a outra de mais de quatro quintos da população que continuavam parcial ou totalmente excluídos. Os ideais burgueses só valiam para ela própria, não passavam de adorno, até que outros grupos começaram a cobrar a disseminação e validade desses ideais, ocasião em que mostraram a verdadeira face, reacionária e ultraconservadora, cujo exemplo refere-se ao tratamento dado às greves operárias