A influência do museu ou da biblioteca na compreensão do desenvolvimento da
arte, tema também abordado por Sartre e Malraux, aparece como escopo para que
Merleau-Ponty desenvolva um tipo de historicidade que compreenda a pintura como
uma totalidade, “uma única tarefa”, um corpo cujas partes influenciam-se mutuamente.
Conforme Merleau-Ponty, o que a pintura moderna nos ensinou é que temos que
admitir que existe uma verdade que não se assemelha às coisas
27, que não corresponde
ao que já temos construído culturalmente, e ainda assim é verdade, e ainda assim institui
uma coerência.
Moderno ou clássico o que o pintor expressa com sua obra não é uma invenção
subjetiva, um monólogo interior, é sim um significado coeso nascido de uma
deformação coerente do mundo. Destarte, mesmo os modernos apoiavam-se,
orientavam-se através do mundo, de sua cultura ao pintar. E até mesmo as outras
pinturas, as obras do passado, são retomadas e estão presentes no estilo que expressa
essa deformação coerente do mundo.
Essa historicidade da arte, um tipo de história cumulativa e não excludente, não
só compreende que a obra por fazer é influenciada pelas obras já feitas, mas também
nos mostra que uma nova obra é capaz de modificar a compreensão que temos das obras
passadas, pois o universo da pintura não é constituído por rivalidades que se excluem.
Antes, “o clássico e o moderno pertencem ao universo da pintura, concebido como uma
única tarefa desde os primeiros desenhos na parede das cavernas até a nossa pintura
‘consciente`.” (S, p. 91-75)
Enquanto umaaventura única,a pintura nos mostra que não é o museu com suas
exposições retrospectivas, sejam elas técnicas ou temáticas, onde obras de diferentes
momentos são passíveis de comparação, que garante uma unidade à pintura. Essa
unidade é, sobretudo, garantida por uma situação que convoca homens que
27
Conforme Marilena Chaui, “Merleau-Ponty assinala que a novidade da arte moderna não é o surgimento do indivíduo, mas a comunicação com o Ser sem o apoio numa Natureza preestabelecida e fonte de paradigmas, um modo de sair da inerência e da fruição de si para aceder ao universal através do particular, encontrando na particularidade (o estilo) o meio para dar a ver e a conhecer a universalidade (o
compartilham de uma estrutura corporal semelhante, sustentada por um horizonte
comum e ante-predicativo, um mundo natural.
Conforme prossegue Merleau-Ponty, há duas historicidades:
“Um irônica e até irrisória, feita de contra-sensos, porque cada tempo luta
contra os outros como contra estrangeiros impondo-lhes as suas preocupações,
as suas perspectivas. É antes esquecimento do que memória, é fragmentação,
ignorância, exterioridade. [E a outra] é constituída e reconstituída pouco a
pouco pelo interesse que nos dirige para o que não é nós, por essa via que o
passado, numa troca contínua, nos traz e encontra em nós, e que prossegue em
cada pintor que reanima, retoma e relança a cada nova obra o empreendimento
inteiro da pintura.” (S, p. 92-75)
As influências de um mundo cultural na pintura, essa possibilidade de retomada
de obras passadas, juntamente com a noção de deformação coerente enquanto uma
linguagem exclusiva do pintor, pode nos ajudar a compreender, por exemplo, o
mecanismo de juízo que envolve a depreciação de uma falsificação, por mais virtuosa
que seja, em detrimento de um trabalho original.
Ainda que durante muito tempo quadros do célebre falsário Han van Meegeren
tenham se passado por autênticos quadros de Vermeer, quando confesso seu
estratagema, logo são descobertos inúmeros Vermeer que, dados até então por
certamente legítimos, eram na verdade falsificações.
É claro que um dado novo, como saber que um pintor que não era Vermeer
pintara, no entanto, quadros que eram atribuídos a Vermeer, é sobremaneira relevante
ao se reconhecer uma falsificação. Mas, diante de um situação como fora a de Han van
Meegeren
28, por exemplo, o que faz de seus quadros, que só foram descobertos falsos
graças a sua própria confissão, diferentes de um autêntico Vermeer? O que determina o
valor de uma obra de arte?
Conforme Merleau-Ponty, que aqui concorda com Malraux, o que faz uma obra
verdadeira não é simplesmente o fato de tal obra ter sido pintada por tal pintor. Antes, é
uma maneira, uma linguagem própria, que determina essa autenticidade de obra. Como
vimos, cada pintor tem um exclusivo sistema de equivalências que responde de uma
forma coerente a si ao apelo das coisas que o cercam.
28Famoso por pintar quadros que foram por muito tempo considerados por grandes especialistas como autênticos quadros de Vermeer, o holandês Han van Meegeren (1889-1947), detido sob a acusação de colaboração com o nazismo por vender quadros de Vermeer para Hermann Göering, conhecido oficial nazista, confessa-se um falsário, pois tal acusação lhe pesaria menos. Assim, confinado, para comprovar sua alegação, pinta com perfeição, diante de seus acusadores, Jovem Cristo Ensinando no Templo.
E, se ainda assim um falsário consegue recobrar o estilo e os processos de um
pintor, ele deixa, então, de ser um falsário e passa a ser, como ocorria nos ateliês
clássicos, aqueles pintores que pintavam para seus mestres, prática agora pouco comum.
Entretanto, no caso de Meegeren, por exemplo, depois de tanto tempo de outras
formas de pintura, ele não poderia pintar espontaneamente como Vermeer. Aqui, não é
só a história da pintura, com seus movimentos, que muda a perspectiva do pintor, mas
também as formas como a pintura e seus problemas passam a ser compreendidos
conforme o contexto que os envolvem. Os Vermeer de Meegeren passam a não ter o
mesmo valor, justamente porque, com a descoberta da falsificação, essas questões vêm
à tona, e passam a constituir nossa perspectiva de sua obra.
E não temos aqui uma relação simples de causa de efeito. Conforme constatado,
segundo uma análise deA dúvida de Cézanne, no primeiro capítulo dessa dissertação, a
compreensão de uma pintura não está alheia ao momento, à cultura, às condições que a
cercam. Não existe uma essência sobrenatural, supra-sensível, que qualifique uma obra.
Ela é aquilo que vemos nela. E todos os dados relacionados a ela, de alguma forma,
também fazem parte de nossa apreciação.
Ora, ninguém se achega a um quadro de espírito limpo como que recém-nascido.
Estamos sempre colocados em situação, comprometidos com dados culturais que
variam conforme o tempo, compostos por um corpo e uma consciência que também
constituem nossa compreensão.
Saber que as telas de Meegeren não eram de Vermeer é mais um dado que
constrói e transforma a perspectiva que temos da obra de ambos. Um dado que pode
mudar drasticamente a nossa perspectiva, é verdade, mas um dado que só pode mudar
nossa perspectiva porque se relaciona, consolida-se sobre uma obra. Ambiguamente
uma obra é vislumbrada segundo inúmeras relações estabelecidas através dela, porém,
relações que emanam e necessitam dela, constituindo, portanto, uma relação, uma troca
constante entre a obra e seus dados, um discurso em permanente transformação,
envolvendo constantemente passado e futuro.
Johannes Vermeer, Mulher com Jarro d´agua, 1660-62, óleo sobre tela, Han van Meegeren,Mulher tocando Música, 1935-36, óleo 45,7 x 40,6 cm Metropolitan Museum of Art, Nova York sobre tela, 58 x 47cm, Rijksmuseum, Amsterdam