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1.2. Povos tradicionais: categoria, atribuições e politização

1.2.1. Identidade quilombola

Atualmente, as comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federação, sendo que a maior parte está nos estados do Maranhão, Bahia, Pará, Minas Gerais e Pernambuco. São estimadas 214 mil famílias e 1,17 milhão de quilombolas em todo o Brasil segundo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SPPIR, 2013). Ainda, de acordo com o guia de políticas públicas para comunidades quilombolas do programa Brasil Quilombola da SPPIR, a origem dos territórios de povos remanescente de quilombos se deu em diferentes situações, como:

Doações de terras realizadas a partir da desagregação da lavoura de monoculturas, como a cana-de-açúcar e o algodão, compra de terras, terras que foram conquistadas por meio da prestação de serviços, inclusive de guerra, bem como áreas ocupadas por negros que fugiam da escravidão. Há também as chamadas terras de preto, terras de santo ou terras de santíssima, que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas, da doação de terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviços religiosos (SPPIR, 2013, p. 14).

Os conceitos – quilombo, enquanto território, e quilombola, como identidade – são dinâmicos e abarcam um debate pelos órgãos do Estado, destacando as decorrências na definição dos direitos e territórios desses povos. Atualmente, os quilombos e seus povos são reconhecidos oficialmente pelo Estado brasileiro, sendo considerada uma “categoria de status jurídico próprio” (NOGUEIRA, 2009), tendo políticas que garantem a cidadania, identidade e território, com destaque a partir da Constituição Federal de 1988, bem como a importância dos artigos 215 e 216 citados anteriormente. No entanto, o debate acerca dessa categoria não é recente.

25 Para um levantamento e construção histórica da identidade e território quilombola, faz- se necessário um levantamento de estudos que remetem às primeiras definições que envolvem esses povos. Em um desses estudos sobre a definição dos locais que os quilombolas habitavam, Almeida e Pereira (s.d.) relatam de forma minuciosa a origem da expressão e o significado de quilombo. Os autores remetem ao ano de 1740, quando o quilombo era visto como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele” (ALMEIDA e PEREIRA, s.d., p. 231).

No exercício de questionar essa colocação, os autores subdividem cinco elementos que podem ser discutidos e ainda vistos em algumas definições atuais: o primeiro, é a associação de quilombo com fuga – “habitação de negros fugidos”; o segundo, reitera que o quilombo sempre esteve associado à uma quantidade mínima, “que passem de cinco”; o terceiro, é a localidade geográfica dada como “despovoada”, o que caracteriza grandes distâncias e isolamento; a quarta, refere-se às moradas como “ranchos”, estereotipando-as como se não houvesse qualquer benfeitoria; e, por fim, o quinto elemento seria a premissa de que não se encontram pilões nessas áreas devido ao fato de que possuir um pilão remete para a fixação no lugar de quem pode produzir e transformar.

Também em oposição ao discurso de 1740, Little (2002) diz que o conceito de remanescentes das comunidades dos quilombos não deve ser restringido a casos de fuga, compactuando com o posto por Almeida e Pereira (s.d.), mas que o mesmo precisa incorporar o amplo leque de situações no qual, em vez de grandes deslocamentos por parte dos escravos, houve a apropriação efetiva das grandes propriedades que entraram em decadência ou faliram, assim “aquilombando a casa grande” (LITTLE, 2002).

No decorrer do período escravista no Brasil, os povos quilombolas foram formados inicialmente no Estado de Minas Gerais, com maior incidência no Norte de Minas e no Vale do Jequitinhonha; tal fato se deu devido ao advento do ciclo do ouro no estado mineiro, que estabeleceu novas formas de alforria e que possibilitou a ocupação de áreas pouco povoadas e atrativas, do ponto de vista econômico, porém consideradas como zonas favoráveis de comercialização (MOREIRA e ARAÚJO, 2014).

Nas buscas pela definição ou referências aos quilombos/quilombolas, Almeida e Pereira (s.d., p. 234) são incisivos quando dizem que “tudo que aparecer nessa definição de 1740, vamos encontrar durante o período imperial. Não há mudanças”: e pode-se inferir que, em algumas referências atuais, também não há ainda grandes mudanças. Talvez por não apresentar mudanças no decorrer da história, entende-se como desnecessário manter o termo e

26 definição de “quilombo” na Constituição, “então quilombo desaparece por cem anos! Só aparecerá em 1988 (...) Como pensaremos, com instrumentos totalmente defasados, essa sociedade escravista?” (ALMEIDA e PEREIRA, s.d., p. 234). E veja que quilombo deixar de existir juridicamente a partir de 1889, um ano após a abolição da escravatura, é como se o problema houvesse acabado após esse marco.

As Constituições de 1891, 1933, 1934 e 1967 não mencionam “quilombo” e o reconhecimento legal das comunidades quilombolas se deu somente mediante a publicação da Constituição de 1988, no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Apesar disto, segundo Little (2002), a regulamentação dessa modalidade territorial demorou sete anos e só em 1995 a Comunidade Boa Vista, em Oriximiná, no Vale de Trombetas (PA), foi o primeiro remanescente de quilombo a ser reconhecido pelo Estado sob a figura jurídica da nova Constituição.

O Decreto 4.887, de 20 de Novembro de 2003, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Para fins deste Decreto, consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos “grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

Além das considerações apresentadas pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) em seu decreto, existem outras definições para as comunidades quilombolas, como as seguintes expressas por entidades relacionadas a esse universo:

Quadro 1. Definições comunidades quilombolas Associação Brasileira de

Antropologia (ABA) Fundação Cultural Palmares (FCP) Colonização e Reforma Agrária Instituto Nacional de

(INCRA)

Em 1994 eram considerados quilombolas toda a comunidade negra rural que

agrupa descendentes de escravos vivendo da cultura de

subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado

(UNGARELLI, 2009).

Quilombolas são descendentes de africanos escravizados que mantêm

tradições culturais, de subsistência e religiosas

ao longo dos séculos.

As comunidades quilombolas são grupos étnicos –

predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana -, que se autodefinem a partir das relações com a terra, o

parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e

práticas culturais próprias.

27 Sobre os regimes de propriedade dos quilombos, as diversas “terras de preto” e as comunidades cafuzas possuem diferenças marcantes em relação aos povos indígenas, mas ainda se mantêm dentro da ampla categoria de formas de propriedade comum (LITTLE, 2002). Sobre as várias “comunidades negras rurais”, Bandeira afirma (1991, p.8): “o controle sobre a terra se faz grupalmente sendo exercido pela coletividade que define sua territorialidade com base em limites étnicos fundados na afiliação por parentesco, coparticipação de valores, de práticas culturais e principalmente da circunstância específica de solidariedade e reciprocidade desenvolvidas no enfrentamento da situação de alteridade proposta pelos brancos”.

Para Costa Filho (2010), os quilombos são caracterizados por espaços de liberdade, ou seja, territórios que não se aliam com relações de subordinação. Ainda, complementando essa ideia, o Caderno da Associação Brasileira de Antropologia sobre Terra de Quilombo (1995) expressa que a ocupação da terra é realizada predominantemente em seu uso comum, não sendo feita em termos de lotes individuais. Usos que obedecem à sazonalização das atividades sejam agrícolas, extrativistas ou outras, e tomam por base laços de parentesco e vizinhança, firmados em relações de solidariedade e reciprocidade. Além disso, deve-se considerar a dimensão simbólica dos territórios, onde estão registrados os acontecimentos e fatos históricos que mantém viva a memória desse grupo étnico. Nesses territórios estão enterrados os seus ancestrais, como afirmam alguns moradores no caso de Buraquinhos.

Eis como se refere Oliveira (2002), em seu estudo com uma comunidade no Quilombo do Laudêncio – ES, município de São Mateus, acerca do território como quilombo:

O quilombo é uma organização social e política dinâmica, pois a comunidade se transformou num quilombo na medida em que os conhecimentos foram sendo transmitidos dos mais velhos para os mais novos pelo processo de mobilização e conscientização (...). O grupo volta ao passado por meio dos conhecimentos transmitidos por seus avós para reelaborar o significado do presente e de sua identidade étnica (OLIVEIRA, 2002, p. 157).

Sobre os seus territórios, fica estabelecido no artigo 3º, do Decreto 4.887, que Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, considerada longa e burocrática, figurando entre uma das principais reivindicações do movimento quilombola11.

11 Segundo o INCRA (2014), existem 171 títulos expedidos às comunidades quilombolas em 129 territórios,

28 Segundo a FCP (2014), desde o ano de 2004 até o ano de 2014 foram certificadas 2.431 comunidades, sendo que o Estado de Minas Gerais apresenta um número de 223 comunidades remanescentes de quilombos e segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome12 (2014), no município de Chapada Gaúcha existem 10 comunidades quilombolas. Uma das comunidades certificadas pela FCP é a comunidade de Buraquinhos.

Algumas iniciativas legais e de representação social quilombola surgiram após a politização da categoria. Vélez Echeverry (2014) destaca o documento elaborado após a realização do I Encontro Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas e com a criação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a partir de 1995, reivindicando a regularização de seus territórios e a implantação de políticas para a categoria.

O Programa Brasil Quilombola se destaca como outro avanço político e de iniciativa nacional. O Programa foi lançado em março de 2004, com o objetivo de consolidar os marcos da política de Estado para as áreas quilombolas. Com o seu desdobramento foi instituído o Decreto 6.261, de 20 de Novembro de 2007, que dispõe sobre a gestão integrada para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no âmbito do Programa e oferece outras providências, com ações voltadas ao acesso à terra, à infraestrutura e qualidade de vida, à inclusão produtiva e desenvolvimento local e à cidadania dos povos quilombolas.

Segundo a SPPIR (2013), outros destaques na base legal no histórico dos povos quilombolas são a Portaria nº. 98 da Fundação Cultural Palmares, de novembro de 2007, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos, também autodenominadas Terras de Preto, Comunidades Negras, Mocambos, Quilombos, dentre outras denominações congêneres. Também, a Instrução Normativa INCRA nº 49, de 29 de Setembro de 2008, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

A politização da categoria trouxe visibilidade aos povos e seus territórios e essa consequência teve relação direta com a mobilização pela organização sociopolítica do movimento quilombola, que assumiu sua própria representação (VÉLEZ ECHEVERRY,

de Pará, Bahia, Rio de Janeiro, Maranhão, Amapá, Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Sergipe, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Piauí, Rio Grande do Sul, Rondônia, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Santa Catarina.

12 Esse levantamento é resultado da consolidação de informações de vários órgãos que atuam junto às comunidades

quilombolas. Disponível em: http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastrounico/gestao-municipal/processo-de- cadastramento/arquivos/levantamento-de-comunidades-quilombolas.pdf

29 2014). A ameaça aos seus territórios, e demais territórios tradicionais, também se caracterizaram frente à expansão da agricultura, acompanhada da modernização dos anos 70.

Em Buraquinhos, a comunidade se autodefine remanescente de uma história não de escravidão, mas de ocupação de terras para o desenvolvimento das práticas tradicionais, como a agricultura de subsistência; a reprodução da identidade, em suas manifestações culturais; e, mais recentemente, como um processo de resistência às mudanças em seus territórios tradicionais, buscando reparação de direitos, nos dias atuais, através de políticas públicas

Atualmente, Buraquinhos segue apenas com a certificação emitida pela Fundação Cultural Palmares, sem que seu território tradicional tenha sido demarcado pelo órgão responsável, fato que fragiliza a comunidade devido as pressões territoriais diante da modernização conservadora local. Segundo o Ministério Público Federal (MPF) em Minas Gerais, em 30 de junho de 2015 uma ação civil pública foi dada entrada contra o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para obrigá-lo a elaborar os Relatórios Antropológicos e os Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTDI) da comunidade quilombola Buraquinhos, além da comunidade São Félix. Para o MPF, “a mora da autarquia é injustificada e traz graves consequências às comunidades quilombolas. Sem a titulação da terra, a insegurança jurídica permeia naqueles povos tradicionais, sujeitando-os a pretensões externas de posse, alienação a non domino, usucapião e penhora”. Sem a propriedade definitiva das terras, os quilombolas ainda ficam privados do acesso às políticas públicas direcionadas a eles. A ação está em trâmite, segundo dados do processo 1207-36.2015.4.01.3818, em 01 de dezembro de 2015 consta que foi movimentada para setor jurídico da Procuradoria da República no Município de Paracatu/Unaí.