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Importância da enunciação da situação fática

2. O PROBLEMA SOCIAL E JURÍDICO DA MORADIA DO TRABALHADOR

2.1. Importância da enunciação da situação fática

A metodologia da aplicação das normas de direito à solução do caso concreto, passando pela indissociável tarefa da interpretação jurídica, chama a atenção para as particularidades e para a importância da enunciação dos eventos fáticos sobre os quais se supõe incidente o comando normativo.

Este dado é tão mais importante quando se investiga modelo hermenêutico (aspirante a modelo jurídico) a propósito da regulação de um conflito social específico, ao menos no que diz respeito a uma de suas dimensões — no caso, a dimensão das obrigações do empregador em face do direito à moradia do trabalhador migrante.

A despeito do seu caráter dogmático, o estudo mira a figura do julgador e deseja que as conclusões teóricas porventura alcançadas, por sua consistência e capacidade de convencimento, possam ser endossadas pelas autoridades que detêm o poder de decisão sobre o caso concreto.

Adverte Karl Larenz que toda situação de fato que aspira a uma solução jurídica deve ser enunciada pelo julgador — e, complete-se, pelo estudioso —, considerando a relevância jurídica de cada uma das informações que a compõem. A situação de fato

enquanto enunciado não é dada, de antemão, ao julgador e ao cientista. A enunciação da

situação de fato é produto de uma atividade de conformação, que por sua vez resulta da consideração, de um lado, das informações que chegam ao conhecimento do julgador e do cientista e, de outro, da sua possível significação jurídica, de modo que o enunciado fático venha a revelar, ou não, a correspondência entre as informações colhidas e as “notas distintivas da previsão legal”.116

Desse modo, o caso jurídico apresenta-se, primeiramente, como uma “situação de fato bruta”, que se transmuda em “situação de fato definitiva”, após enunciada pelo operador do direito. Essa transmutação é o resultado de uma elaboração mental do operador do direito, na qual se distinguem as circunstâncias e ocorrências que são ou que

se mostram ser relevantes para a apreciação jurídica, sendo forçoso admitir que, ao longo desse processo, avaliações são antecipadas, na forma de hipóteses a confirmarem-se porventura posteriormente, até que se alcance a conclusão definitiva.117

O ato de interpretar se faz presente, portanto, não apenas na relação que se instaura entre o operador do direito e o enunciado normativo (o texto da lei posta), mas, igualmente, na atividade que intenta atingir o enunciado da situação fática. Dado que a enunciação do fato se orienta pela relevância jurídica das informações obtidas, Larenz, ao tratar do processo de pensamento que busca esta enunciação e apoiado em noções apresentadas por Karl Engisch e Wilhelm Scheuerle, refere-se ao movimento mental de ida e volta entre fato e norma, típico da concepção de “círculo hermenêutico” ou “espiral hermenêutica”:

O “ir e vir” da perspectiva entre a situação de facto e a proposição jurídica não deve conceber-se como se o observador mudasse apenas a direcção do seu olhar, mas trata-se antes de um processo de pensamento em cujo decurso “a situação de facto em bruto” será conformada enquanto situação de facto acabada (como enunciado) e o texto da norma (como que a norma em estado bruto), na norma suficientemente concretizada para a apreciação desta situação de facto.118

Em sendo assim, a enunciação fática assume papel destacado na solução jurídica do caso concreto, na medida em que resulta de confrontação entre fatos e normas.119 O processo de pensamento que realiza esta confrontação não é, contudo, uma atividade objetiva ou simplesmente dedutiva. Ele abrange, no que se refere à figura do operador do direito, juízos baseados na percepção e interpretação da conduta humana, além dos proporcionados pela experiência social e dos de valor.

Os juízos baseados na percepção ligam-se à constatação acerca de onde e como os fatos aconteceram, lastreando-se nas percepções próprias do operador do direito ou, no mais das vezes, nas percepções de outras pessoas, responsáveis por trazer as informações ao conhecimento do julgador ou do cientista.120

117LARENZ, Karl. op. cit., p. 392-393.

118Id. Ibid., p. 395. Para mais do que a obtenção do enunciado da situação fática, a noção de “círculo hermenêutico” ou “espiral hermenêutica” diz respeito ao caminho percorrido até a conformação da solução jurídica definitiva para o caso concreto apreciado (Id. Ibid., p. 286-288).

119“Na verdade, o peso decisivo da aplicação da lei não reside na subsunção final, mas na apreciação, que a antecede, dos elementos particulares da situação de facto enquanto tal, que correspondem às notas distintivas mencionadas na previsão” (Id. Ibid., p. 399).

Enquanto a percepção acessa apenas dados externos (onde e como se deu o ocorrido), são os juízos baseados na interpretação da conduta humana que permitem ao operador do direito supor ou concluir, a partir das suas experiências consigo mesmo e com os outros, a respeito dos objetivos da conduta analisada, uma vez que “a conduta humana é, em ampla medida, um agir dirigido a fins”.121

Além das suas experiências próprias, o julgador e o cientista também têm à disposição, para auxílio no exame das qualificações jurídicas do fato, outras experiências sociais prévias de situações iguais ou similares, encontradas, por exemplo, nos estudos doutrinários e nas decisões jurisprudenciais, os quais lhe oferecem as chamadas “máximas gerais de experiência”, que podem propiciar subsídios de experiências prévias, sem ostentar a nota da vinculação.122

Por fim, ao operador do direito, na tarefa da descoberta do enunciado fático,

é evidente que se lhe exige um juízo de valor quando, para poder coordenar a situação de facto com a previsão da norma legal, tenha que julgar segundo uma pauta que primeiro ele tenha de concretizar, uma pauta “carecida de preenchimento”.123

Os juízos de valor fundamentam uma tomada de posição do aplicador e podem ser inspirados por pautas morais ou por pautas jurídicas contemplativas de valores, como veiculado, atualmente, pelas Constituições que positivam opções valorativas, sobretudo ao tratar dos direitos fundamentais, ou, então, por legislações que contam com as denominadas “cláusulas gerais”, essencialmente demandantes de um preenchimento de conteúdo extrajurídico.124

É certo que todas essas considerações foram lançadas por Larenz a propósito das lições acerca da composição do enunciado sobre o fato que antecede a análise da aplicação da regra, tendo em vista um determinado caso concreto. Não obstante, estas mesmas orientações, devidamente adaptadas, mostram-se aptas a conduzir a enunciação do problema fático desta pesquisa, o qual, para além de um específico ou isolado caso a reclamar solução jurídica, põe em foco um verdadeiro conflito social que se explicita de maneiras diversas — distintos tipos de migração para a consecução de diferentes atividades laborais, com ocupação de moradias em condições desiguais —, mas que, ao mesmo

121LARENZ, Karl. op. cit., p. 401. 122Id. Ibid., p. 402-406.

123Id. Ibid., p. 406. 124Id. Ibid., p. 407-413.

tempo, ostenta, em todas elas, características nucleares que permitem seja tratado como um

caso típico, passível de análise à vista do direito.

É possível afirmar, deste modo, que o problema pesquisado encerra um conflito social cuja enunciação fática pode ser feita na forma de um caso típico (mais amplo, porém, do que um caso concreto intersubjetivo), tendo por nota característica a moradia inadequada a que se submetem trabalhadores migrantes.

É exatamente em atenção às lições de Larenz sobre a acuidade que se deve ter com a colocação dos fatos, que serão conjugadas, a seguir, informações acerca da situação investigada, conformando-as de modo tal a estabelecer a enunciação fática do problema jurídico proposto. Bem por isso, serão apresentadas narrativas e dados reputados juridicamente relevantes para subsídio do trilhar da “espiral hermenêutica”, em seu sentido mais abrangente de busca de uma conclusão acerca da aplicação do Direito ao caso típico descrito.

Pretende-se, enfim, deixar clara a dimensão social mais ampla, do ponto de vista fático, sobre a qual deverá dedicar-se a análise jurídica subsequente, afastando-se, com isso, a estratégia usual da perspectiva positivista/conservadora de isolar o caso concreto, tratando-o como um conflito meramente intersubjetivo e buscando ignorar as situações nas quais o caso apenas reproduz, concretamente, o conflito social subjacente.

Em assim sendo, afiguram-se potencialmente relevantes, do ponto de vista jurídico e com o olhar próprio da enunciação fática, o conhecimento, ainda que em grandes linhas, da dinâmica social que resulta no quadro fático configurador do caso típico sob exame. Para tanto, objetivando-se fidedignidade na descrição dos fatos, as pesquisas empreendidas no campo das ciências sociais, bem como as notícias veiculadas por qualquer meio de comunicação, são material de grande valor e sobre ele será construída a pretendida enunciação do fato, evidentemente influenciada pelos juízos baseados na percepção, na interpretação da conduta humana, na experiência social e nos valores do autor da investigação, o que é parte integrante do processo de pensamento do problema e não motivo para a desqualificação dos resultados porventura obtidos.