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1.3 A EXPERTISE NA MÚSICA

1.3.3 Improvisação

sejam mais espontâneos e entusiastas em sua produção musical, que as reações auditivas não sejam mais precisas e mais rápidas. De acordo com Hallam (2010), é esperado que o consenso em torno da caracterização de uma performance musical em nível de expert reflita diretamente na maneira com que as aulas de música são ministradas, principalmente com relação à importância do desenvolvimento da expressividade. Por outro lado, de acordo com Woody (2000), 48% dos estudantes relataram que não se preocuparam seriamente com a expressividade até estarem no ensino médio ou mesmo na faculdade. E, de acordo com Hallam (2010), esses aspectos são ainda bastante negligenciados.

1.3.3 Improvisação

Segundo Lehmann et al. (2007), quando indivíduos escrevem, editam ou reformulam um e-mail, eles estão compondo e, ao conversar com um colega ou dançar em uma festa, estão improvisando. Os autores questionam: se essas atividades são pertencentes à rotina das pessoas, por que indivíduos, muitas vezes treinados no domínio da música, apresentam grandes dificuldades quando precisam lidar com a improvisação?

Kenny e Gellrich (2002) declaram que assim como alguns dos parâmetros acima citados, o termo improvisação também é dependente de contexto e que, de acordo com sua função sociocultural, o conceito pode assumir diversos significados. E essas múltiplas facetas da improvisação devem ser consideradas para além do resultado sonoro, mas também em termos de processo de criação. Ao traçar um paralelo entre uma improvisação jazzística do saxofonista Charlie Parker e uma proposição como Aus den Sieben Tagen do compositor alemão Karlheinz Stockhausen, Falleiros (2012) realiza a interpretação de um texto poético e sua “tradução”

musical.

Por outro lado, de acordo com Sloboda (2008), ao contrário do que sua natureza espontânea possa sugerir, a improvisação musical depende fortemente de regras não explícitas que possibilitam coerência estilística. Isso significa que, tanto ouvintes quanto os músicos que atuam em contextos em que a improvisação é desenvolvida experimentam a confirmação ou não de determinadas expectativas musicais. Ao tipo de conhecimento necessário para que o músico possa desenvolver um diálogo com essas expectativas dá-se o nome de “base de conhecimento”.

Segundo Pressing (1998), ele inclui diversos materiais musicais e trechos, repertórios, estratégias perceptivas, rotinas de resolução de problemas, estruturas e esquemas de memória hierárquica, além de outros fatores. Segundo Kenny e Gellrrich (2002), este conhecimento é adquirido por meio do esforço consciente e da prática deliberada.

Além disso, de acordo com esses autores, improvisadores devem também lidar com os

“referentes”, que são elementos mais diretamente associados às práticas específicas de improvisação, como por exemplo, característica rítmicas, regras relativas a extensões de acordes e escalas comumente utilizadas. Esses elementos influenciam mais diretamente a performance, pois limitam as opções da escolha dos improvisadores e facilitam com que a performance seja percebida de maneira mais pertinente para a práxis em que está inserida. A manipulação dos referentes e expectativas dos ouvintes de um contexto, seja pela contemplação ou pela frustração delas, se apresenta então como uma das habilidades mais importantes para a distinção de improvisadores quanto a seus níveis de expertise. Os referentes, por exemplo, provavelmente se tornarão parte das bases do conhecimento por meio de exposição prolongada e repetição.

Em um estudo exploratório, Lehmann e Kopiez (2010) apresentaram trechos musicais para serem julgados como ensaiados (compostos previamente) ou improvisados aos participantes (ouvintes experts). Os resultados mostraram que os participantes apresentaram grandes dificuldades para julgar os trechos adequadamente como sendo ensaiados ou improvisados quando os exemplos remontavam as idiossincrasias dos períodos clássico e romântico da música europeia. Os autores alegam então que tal identificação parece difícil, se não impossível, quando o trecho improvisado é de alto nível de expertise e tocado em um único instrumento.

Embora o termo improvisação possa indicar diversos processos, gêneros e estéticas musicais, Kenny e Gellrich (2002) afirmam que dois aspectos estão invariavelmente ligados a sua prática: (1) as decisões criativas são tomadas no próprio curso do desempenho e, por isso, ela pode ser considerada como a arte da performance por excelência e (2) é realizada através de uma sofisticada e eclética base de conhecimento, ou seja, é uma expertise.

Segundo Paes (2014), apesar dos avanços tecnológicos e científicos obtidos no século XXI, há ainda uma insuficiência metodológica para a compreensão dos mecanismos que ocorrem na mente humana em situações de improvisação, munindo este campo com diversas possibilidades de pesquisas. O autor explica ainda que as décadas de 1980 e 1990 foram de grande importância para o estudo da improvisação, pois muitas das pesquisas em cognição

passaram a objetivar a compreensão de processos mentais relacionados a essa atividade. A dificuldade encontrada para examinar cientificamente os processos mentais relacionados à improvisação, principalmente por fatores tecnológicos, fez com que cientistas se apropriassem de recursos oriundos das teorias do processamento de informação, cruzando informações com análises das características da tarefa, do ambiente de realização e observações sistemáticas das particularidades do processo (Kenny & Gellrich, 2002).

Assim foram criados os modelos generativos, que são modelos de processamento da informação que podem ser testados por meio de aplicativos computacionais que simulam processos mentais. Segundo Paes (2014), esses modelos baseiam-se em uma estrutura hierárquica de processamento da informação, fundamentada em diferentes sistemas de memória:

memória de longa duração semântica (relacionada ao conhecimento musical consolidado), memória de longa duração de procedimentos (habilidades musicais desenvolvidas) e memória de trabalho ou operacional (que realiza o automonitoramento e o monitoramento do ambiente a fim de efetuar a tomada de decisão).

Desse modo, o modelo especulativo dos processos cognitivos que ocorrem durante a improvisação desenvolvido por Martin Gellrich aponta para a ocorrência dos seguintes processos, em qualquer combinação (Kenny & Gellrich, 2002):

1) Antecipação de curto prazo: ocorre em qualquer ponto da improvisação, quando os eventos musicais são antecipados dentro de um intervalo de tempo estimado entre cerca de 1 a 3 segundos. Entretanto, essas notas antecipadas não podem ser tocadas com menos de 0,3 segundos após a tomada de decisão;

2) Antecipação de médio prazo: ocorre quando eventos que aconteceram em um período entre 3 e 12 segundos (por exemplo, a próxima frase ou período), e que podem ser antecipados e projetados para o futuro (ressaltando que esses tempos são apenas estimativas);

3) Antecipação de longo prazo: ocorre quando há projeção de planos para o restante da improvisação;

4) Recuperação de curto prazo: ocorre quando eventos musicais que aconteceram nos últimos segundos podem ser recordados, num processo em que a concentração está focada em eventos passados;

5) Recuperação de médio prazo: ocorre quando eventos musicais que aconteceram entre os últimos 4 a 16 compassos podem ser recordados com o intuito de providenciar lembranças mais

claras de frases musicais anteriores;

6) Recuperação de longo prazo: ocorre quando improvisadores são capazes de se recordarem de todo o processo improvisado, do início até o presente momento.

7) Estado de fluxo: ocorre quando improvisadores conseguem concentrar-se unicamente na música que está sendo criada no momento;

8) Processos de monitorização: ocorre quando ideias futuras para a improvisação são reunidas a partir do que pode ser recordado (como por exemplo uma nota não desejada que o improvisador opta por reiterar em uma exposição subsequente).

A figura 1 abaixo apresenta um modelo de processos mentais que ocorrem durante a improvisação a partir de processos de feedback entre antecipação e recuperação de curto prazo e entre a concepção e recuperação de médio prazo. Este modelo foi proposto por Kenny e Gellrich (2002):

Figura 1 Um modelo de processos mentais durante a improvisação. Processos de feedback entre antecipação e recuperação de curto prazo (1) e entre a concepção e recuperação de médio prazo (2) )

Fonte: Kenny e Gellrich (2002)

Segundo Kenny e Gellrich, uma pesquisa não publicada aplicada por Gellrich por meio de protocolo de entrevistas com improvisadores experts sugeriu que a antecipação de curto e de médio prazo e o estado de fluxo são os processos mais percebidos pelos participantes durante a improvisação. Os outros cinco processos geralmente são notados quando os indivíduos conseguem dominar conscientemente alguns processos, como durante frases lentas, frases com pausas ou quando são utilizados padrões melódicos previamente aprendidos e são articulados automaticamente.

Com relação à prática deliberada, os autores alegam que o jazz ainda é o principal método de aprendizado da improvisação na educação musical ocidental. Além disso, alegam que o método da relação entre escalas e acordes que busca restringir a escolha de notas da melodia de um improvisador a escalas ou modos sugeridos por um acorde ou sequência deles predefinida

(como a utilização do modo dórico de Ré quando o acorde Dm7 aparece em uma progressão) é o método mais utilizado para a prática da improvisação. Entretanto, os autores apresentam críticas a essa metodologia, principalmente com relação à ênfase dada à preparação para situações (principalmente progressões) inesperadas, em detrimento do desenvolvimento de “vozes”

próprias dos praticantes, o que tem produzido uma abordagem automatizada e padronizada em relação à sonoridade obtida por estudantes de improvisação.

Como contraponto, de acordo com Després, Burnard, Dubé e & Stévance (2017) que entrevistaram improvisadores experts no domínio da música de concerto, as atividades de aprendizado da improvisação devem, alternativamente, estarem focadas no balanço entre aquisição de conhecimento, na construção de habilidades e no “deixar ir”. Os autores exemplificam que restrições não ensaiadas podem ser beneficiadas por atividades de diminuição do controle no ato da improvisação. De acordo esses autores, a solicitação de um improviso sobre uma progressão de acordes desconhecida ao improvisador pode fazer com que um aprendiz transcenda hábitos e utilize a estratégias cognitivas diferentes. Os autores sustentam ainda que esse processo é facilitado quando a experimentação é bem vinda e “erros” são diminuídos em importância. Assim, “embora um conhecimento abrangente em um determinado domínio criativo seja uma condição necessária para os músicos de alto nível, a criação de contextos em que esse corpo de conhecimento precisa ser temporariamente posto de lado pode estimular a capacidade de experimentar um fluxo criativo inspirador” (Després et al., 2017, p.177).

Além disso, assim como Priest (1989), os participantes da pesquisa de Després et al.

(2017) apontam para a importância de introduzir a improvisação logo no início da instrução musical, uma vez que neste estudo músicos que possuíam familiaridade com a improvisação desde o início da instrução musical perceberam sua aprendizagem como um processo menos trabalhoso do que improvisadores que vieram a ter contato com a improvisação posteriormente.

Essa constatação traz também o paralelo com o aprendizado da linguagem falada, que traz a suposição de que aprender sequencialmente a “ouvir / falar” e “ler / escrever”, no caso da música, permitiria ao aluno “incorporar” verdadeiramente seu instrumento e a linguagem musical desejada (Després et al., 2017).