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breve nota sobre a olisipografia dos anos 30 do século XX

4. Pesadelos urbanos: egotismo, alienação e crimes perversos

4.2. Dentro do abismo de escuridão: Páscoa feliz, de José Rodrigues Miguéis

4.2.3. Rumo ao inconsciente urbano

As sensações extremadas, bem como os impulsos mórbidos do narrador encontram a sua correspondência na perceção do ambiente urbano, em que, sobretudo no início, predomina o imaginário crepuscular e agonizante, evocador de Cesário:

Volto à Baixa, enquanto as ruas e avenidas vão mergulhando numa sombra azulada. (p.138)

O crepúsculo agoniza... (p. 140)

Procuro as ruas mais estreitas, onde há menos luz e o movimento é menor. Na penumbra, avultam carroças de muares enormes e tranquilas roendo o jantar com as cabeças mergulhadas nas alcofas. Junta-se gente nas tabernas, donde sai um rumor grosseiro de vozes e de louças que se entrechocam, e um fumo acre de azeite queimado e peixe frito. Um fumo azul... Olho o céu: é noite fechada e, por cima dos telhados, alastra o clarão sanguíneo das luzes e passa confuso o clangor das buzinas dos autos. (p. 143)151

Para além de semelhantes motivos espaciais (referência concreta à Baixa, às ruas e avenidas, ao crepúsculo, às tabernas) há ainda muitas afinidades com a poética cesariana, sobretudo de “O sentimento dum ocidental”, no que diz respeito ao uso de metáforas espacio-sensoriais (o crepúsculo a agonizar) e sinestesias que amalgamam as sensações visuais (fumo azul, clarão sanguíneo de luzes), olfativas (fumo acre de azeite) e auditivas (rumor grosseiro de vozes e louças que se entrechocam, clangor de buzinas). À semelhança do sujeito cesariano, o narrador migueisiano entra sucessivamente nos cafés (“Entro e peço um copo..”, p. 143,

150 O motivo da visão fantasmática correlacionado com o espaço urbano (ruas) é reiterado e, assim, sublinhado noutras passagens da novela: “Em pleno dia, na rua, as visões tomam conta de mim. Tenho um receio horrível de enlouquecer completamente.” (p. 106).

151 A expressão sugestiva de “noite fechada” reenvia, imediatamente, ao poema “Noite fechada” de Cesário Verde.

155 evocando o verso cesariano “Entro na brasserie...”, Verde, 1999, p. 101) e também, explicitamente, sai (“Saio. Esmago o meu desejo”, p. 140, evocando o cesariano “E saio. A noite pesa, esmaga.”, Verde, 1999, p. 101). Algumas cenas acentuam o sentimento nostálgico: “Lembrou-me agora a Baixa vasta e sossegada, que a melancolia verde do gás iluminava, a Baixa da minha infância, com o seu ar tão simples e honesto, limpa e discreta...” (p. 143). O desejo de reviver a calma melancolia das ruas iluminadas a gás encaminha-nos novamente à poesia de Cesário Verde, tal como a referência concreta ao ar “simples e honesto” que evoca uma das passagens mais famosas de “O sentimento dum ocidental” (“E de uma padaria exala-se, inda quente,/ um cheiro salutar e honesto a pão no forno”, Verde, 1999, p. 102). Neste sentido, Renato pertence à galeria dos grandes melancólicos que, na esteira de Baudelaire, se deixam dominar pelo spleen moderno, vigorosamente urbano.

Após o suposto crime, porém, segue-se uma longa cena, na qual o narrador-protagonista corre pela cidade. É uma cena intensa e cheia de movimento que, por isso mesmo, contrasta com as passagens que abordam a rotina e dias cinzentos, monótonos de um viver castrador do empregado. O movimento passa a transmitir o estado do crescente delírio do sujeito, mas fá-lo em estrita conexão com o espaço urbano, num espelhamento recíproco. Deste modo, o movimento pela cidade corresponde intimamente aos movimentos da psique do narrador, na qual se testemunham, simultaneamente, modificações da sensação, deformações da perceção de si e do ambiente (alucinações e distorção da realidade), outra perceção do fluir temporal e amplificação emotiva. Ou seja, a cidade se transfigura, aos olhos do sujeito, numa imagem dir-se-ia psiquedélica. O movimento acelerado, de corrida pela cidade (“Atravesso a pé toda a cidade, subo às Avenidas Novas.” p. 137, “Corro e choro”, p. 138, “Vou pôr-me a correr de novo as ruas”, p. 140, “ponho-me a andar a toda a pressa”, p. 143, “fujo a correr”, p. 147, “ponho-me a andar depressa”, p. 148, “Deito a correr ao acaso nas ruas molhadas de chuva”, p. 149, “corro ao longo das avenidas”, p. 150), reflete-se nas sensações íntimas, psicossomáticas (“Os arrepios correm-me a pele como descargas eléctricas”, p. 152), bem como no movimento acelerado de atividade percetiva e sensorial, ao criar imagens psiquedélicas, movimentadas, intermitentes, brilhantes ou fosforescentes, anunciadas já na cena do assassínio pelo brilho da lâmina:

E aquele brilho... Mil raios coloridos, espiralados, como um turbilhão de luz, dançam no meu crânio... (p. 133)

O número, porém, já me não deixa. Fosforesce-me na retina, até ao âmago do cérebro; sobrepõe-se, como um reclamo luminoso no fundo escuro da noite, à imagem do

156 cabeçalho vermelho do jornal. (...) Os algarismos voltam sempre, dançando, deformando-se, irónicos e vivos... (p. 142)

E essas luzes, para que são todas essas luzes em pleno dia, senhor? E amarelas! Apaguem isso! Apaguem isso! Eu apago...! (p. 144)

As luzes formam linhas sinuosas nos passeios desertos. (p. 146)

A luz, de facto, é também a perceção mais forte que o narrador embriagado experimenta num bar (“E a luz... É luz, ou são miosótis que chovem?” , p. 70, “Luz viva! Luz branca!”, p. 71) ou que deteta ao olhar a água do rio (“A água oleosa reluz, picada aqui e além de pirilampos ou fogos fátuos”, p. 146). A luz, em princípio, relaciona-se com o conhecimento, lucidez, mas quando há em demasia, provoca deslumbramento, cegueira momentânea.152 Isso, por conseguinte, pode eclipsar num torpor cerebral, perturbação psíquica e alienação. As perceções extremadas da luz são ainda acompanhadas por um invulgar, ou mesmo excessivo, cromatismo. Para além de imagens multicores que imprimem, à cidade, uma intensidade veemente, evocando a literatura urbana baseada na escrita em imagens (p. ex. Fialho de Almeida, Fernando Pessoa) ou as pinturas de artistas como van Gogh ou Carlos Botelho (p. ex. “O céu de nuvens baixas, contrastando com as paredes avermelhadas, parece dum azul intenso, artificioso.”, p. 140). Contudo, a cor que predomina em toda a novela é o amarelo. Teresa Martins Marques já sublinhou a preferência desta cor na novela, anotando justamente que a cor amarela costuma ser, por tradição, associada à loucura (cf. Marques, 1997, p. 45). É a cor que se encontra na Casa da Areia, onde há o escritório (“A casa era ali ao Cais da Areia [...] paredes amarelas”, p. 46) e que evoca, desde logo, a emblemática Casa Amarela lisboeta: o Convento de Rilhafoles, o futuro Hospital Miguel Bombarda)153. Neste sentido, trata-se também de uma cor da paleta preferida de certos autores russos (Gogol, Dostoievski, Béli), com cuja obra a novela migueisiana atesta vários paralelos.154 O amarelo é também, como vimos, uma das cores prediletas de Bernardo Soares, codificada culturalmente como a cor mais expressiva do fim de século XIX. Na imaginação do protagonista migueisiano, a cor amarela relaciona-se com a morte: aparece tanto na visão da morte do pai (“E esta cor amarela?”, p. 98), como do filho (“E essas luzes, para que são todas essas luzes em pleno dia, senhor? E amarelas!”, p. 144).

152 Da mesma isotopia, são na novela reiterados os motivos de clarão e incêndio.

153 É impossível não lembrar também o filme Recordações da Casa Amarela (1989) de João César Monteiro, filmado precisamente no mesmo hospício.

154 Por exemplo a respeito do romance Petersburgo (1913) de Andrei Beli, Renate Lachmann refere que a cor amarela entra na linha semântica com os atributos “asiático” e “diabólico”. A frequência desta cor é elevada, sendo presente no vestuário, objetos, caraterísticas das personagens e na própria arquitetura imperial da cidade (os protagonistas – pai e filho – habitam uma casa amarela na margem do rio Neva). (Lachmann, 2002, p. 75).

157 Paralelamente, não deve ser ainda menosprezada a referência a um moço de casaco amarelo, com o qual o narrador se cruza ao sair do café na noite de assassínio (p. 143). Resumindo: luzes, cintilações, fosforescência, a cor amarela, tudo pertence ao mesmo estado da perceção delirante que instaura, na novela, um dinamismo proporcionador de imagens “em movimento” semântico. Este dinamismo é visível tanto no delírio do narrador, como também no próprio texto, cada vez mais acelerado e fragmentado, e na representação da cidade “psiquedélica” como um reflexo do estado psíquico do “eu”.

A cidade do quotidiano cesariano preenche-se, portanto, de imagens cada vez mais dinâmicas. Sobretudo nas horas noturnas, a cidade começa a metamorfosear-se, adquirindo um aspeto de um espaço espetral, semelhante à prosa de Raul Brandão e aos contos de Branquinho da Fonseca, em que predomina a tonalidade lívida e transfiguração fantasmagórica. A transformação revela-se primeiro nas imagens de uma cidade triste e melancólica, vista através das vidraças, a que o contraste da chuva (metáfora da monotonia e tristeza) e do vento (elemento dinâmico que subverte a monotonia) imprime um caráter de um conflito interno, refletido no sujeito da narrativa:

Ergo-me e vou sentar-me a ver amanhecer por detrás das vidraças, na melancolia cinzenta e silenciosa desta manhã de Inverno. Uma tinta lívida e amarga espalha-se nas fachadas, que vão surgindo aos poucos da penumbra caótica da noite. Formas e cores... As árvores, sem folhas, esbracejam. E as últimas gotas de chuva escorrem nas vidraças, como lágrimas silenciosas. (p. 101)

A bonança foi de pouca dura e, um dia, recomeça a chuva e o vento sopra, com a sua tristeza, nas janelas altas da casa. (p. 118)

Olhamos, através das vidraças, a chuva que alaga em rajadas os telhados vizinhos, crepitando, fumegando, impelida pelo vento (p. 118)

Ao mesmo tempo que a chuva pegou, entristecendo a cidade, que parece assolapada, pegajosa, sob a intempérie. (p. 119)

O espaço assolapado e pegajoso evoca o imaginário brandoniano de Os pobres, em que os contornos da cidade se diluem sob o peso da lama, símbolo do caos e disformidade. Em conformidade com a poética brandoniana, a chuva na novela migueisiana pode ser também lida como um símbolo do mal e catástrofe. Tendo em conta, todavia, outros motivos aquáticos (lágrimas, sangue, suor), pode exprimir também a catarse, a violência através da qual uma certa regeneração pode ser estabelecida. Tanto no romance brandoniano, como na novela migueisiana, estas imagens funcionam como a metáfora do inconsciente (da cidade e do

158 narrador), um mergulho nos filões ocultos do ser. Além das imagens de água e lama, o inconsciente costuma ser representado metaforicamente como uma catábase, ou descida aos infernos do eu. A grande frequência das imagens de descida na novela migueisiana, de facto, comprova a hipótese de que o sujeito, narcísico por essência, se sente empurrado insistentemente ao mergulho na esfera freudiana do id:

É preciso saltar, ainda que, liberto, role no declive, até ao fundo dos abismos, como o trem que descarrila. (p. 68)

Parece que me abismo, que caio indefinidamente... (p. 72)

Percebo debaixo de mim um abismo escuro – e vou sempre. (p. 96)

Nesta esfera do id, tal como nas trevas infernais, reina a escuridão total. Trata-se, evidentemente, da esfera de impulsos não só homicidas, como também suicidas, sempre na mesma lógica do sujeito masoquista. Nalgumas situações, o narrador imagina-se mesmo morto (“Desço ao fundo do mar... (...) As minhas mãos, mãos de defunto, perderam a força...”, p. 70). O mais importante, no entanto, é o facto de estas sensações terem o correlativo na imagem urbana: o id do sujeito reflete-se no id urbano e vice-versa. A descida aos estratos do inconsciente urbano verifica-se primeiro no sentido concreto, como início da vida libertina cheia de prazer e vício (“Agora saio todas as noites, contra o costume que durava desde o nosso casamento. Desço até à Baixa, entro nos cafés – salas de visitas – vagueio nas ruas mais iluminadas e nas praças, fumando. (...) Como é que eu não tinha descoberto a cidade?”, p. 68). Após o delírio de assassínio, contudo, o espaço urbano adquire caráter de um labirinto, em que o sujeito se perde, desorientado, correndo de um lugar a outro. Só assim é também possível explicar que, a acerta altura, regressa à Casa da Areia, lugar do delito. Deste modo, Renato move-se num circo vicioso como o homem da multidão poeano. Com este movimento circular que desemboca numa sensação de vazio, Renato assimila também o simbolismo do Louco das cartas de tarot. Com efeito, é como se Renato, semelhantemente a Ramón de Branquinho da Fonseca, encarnasse uma carta ou peça de jogo, movida no tablado imaginário da cidade, ofuscando, cada vez mais, os contornos reais do espaço. O próprio inconsciente urbano revela-se frequentemente por meio de algumas figuras enigmáticas que surgem das trevas da cidade (cf. Hodrová, 2006). Na novela migueisiana, isto acontece no encontro com a velha, cuja mão, “esquelética, engelhada” (p. 141) sai dum xaile preto, causando terror a Renato. Esta velha, que

159 também evoca a pedinte velha cesariana,155 oferece-lhe a sorte, lançando-lhe o número 2713. Para além de a última cifra indicar o número 13, também a contagem de todas as cifras perfaz 13, como o narrador bem percebe. Na mitopoética urbana, este encontro com a velha simboliza, claramente, a morte. Simultaneamente, o número 13 corresponde, na simbologia de tarot, ao arcano mais terrífico de todos, à morte.

Em seguida, o vetor de horizontalidade (passagem alucinada pela cidade) dá lugar ao vetor vertical. O caso mais flagrante é o rio que, pelos seus atributos de verticalidade e escuridão, representa o símbolo mais evidente do id urbano.156 A imagem fantasmática de um sorvedoiro de água que gira vertiginosamente corresponde novamente à geometria psiquedélica, registada também nos desenhos faiscantes de luz (“A água oleosa reluz, picada aqui e além de pirilampos ou fogos-fátuos”, p. 146). Ao mesmo tempo, o vampirismo devorador da água conota, obviamente, a morte (“Ah, é bom deixar-me assim levar, para o fundo, para o fundo... Oh, que vertigem... Talvez a morte!” p. 146). Mas esta morte que simula a morte por sufocação, tantas vezes relembrada ou fantasiada (do pai, do filho, de si nos pesadelos), não parece já causar terror, é antes algo que assegura a paz procurada, um abraço voluptuoso (“O rio. A ideia de me ir deitar ao Tejo cor de tinta, que corre ali a pouca distância, calado, ameaçador, dá-me vertigens voluptuosas.” p. 149). É impossível não reparar que a água, em termos de imaginário, representa um espelho. O narrdor, ao sentir volúpia de se entregar às águas, portanto, continua a sentir sempre o mesmo desejo narcísico que é, com efeito, acentuado pelo comprazimento em solidão (“Sinto bem até que ponto estou só na vida, na solidão que voluntária, gostosamente edifiquei”, p. 149). Os tópicos da morte, espelho e solidão, por conseguinte, revelam quanto o “eu” do narrador é, afinal, subjugado à melancolia, aos estados alternativos de exaltação e soturnidade (cf. Starobinski, 2013, p. 43). Declara a este respeito Jean Starobinski que a experiência afetiva da melancolia, em que frequentemente predomina a sensação de peso, é associada ao espaço hostil que estanca ou bloqueia todas as tentativas de movimento, tornando-se um símile do peso interior (Starobinski, 2013, p. 39). Podemos constatar que é precisamente a situação de Renato, sentindo-se aprisionado na casa, no escritório e na cidade. O único desejo do narrador torna-se,

155 Refiro-me ao poema “Humilhações”, aos seguintes versos: “De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,/ Pôs-se na minha frente uma velhinha suja, E disse-me, piscando os olhos de coruja: – Meu senhor” Dá-me um cigarro? Dá?...” (Verde, 1999, p. 48).

156 Curiosamente, não encontramos muitas referências ao rio na poesia de Cesário Verde. Há só algumas referências esporádicas, como por exemplo no já mencionado poema “Noite fechada”, em que a imagem do rio exibe conotações disfóricas, em concordância com a novela Páscoa feliz e com os contos de Branquinho da Fonseca: “E ali começaria o meu desterro!.../ Lodoso o rio, e glacial, corria; (...) Toda a maré luzia como escamas,/ Como alguidar de prateados peixes.” (Verde, 1999, p. 85).

160 de facto, a possibilidade de romper com esta prisão que ele edificou dentro de si, evadindo-se da cidade.