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A incorporação dos discursos e práticas “psi” às políticas e programas de saúde

CAPÍTULO II – A PRODUÇÃO DA MATERNIDADE E DAS PRÁTICAS MÉDICAS:

2. A produção histórica da família moderna e a construção do ideal do amor materno

2.3 A incorporação dos discursos e práticas “psi” às políticas e programas de saúde

Brasil

Na década de 80 os efeitos de uma progressiva individualização e “psicologização” das relações na sociedade se fizeram sentir de maneira mais aguda nas camadas urbanas da população, intelectualizadas e familiarizadas com o universo de valores da classe média. Nos últimos anos a participação de profissionais “psi” em trabalhos dirigidos a outras camadas sociais acentuou-se. O aumento desta participação deu-se, em parte, em função do empobrecimento geral da população durante os anos críticos da década de 90, obrigando estes profissionais a se dirigirem a outros campos de trabalho além do consultório particular, mas fomentou-se também pelo crescimento assombroso no número de profissionais das áreas “psi” no mercado, em função do fenômeno conhecido como “boom da psicanálise” nas décadas anteriores, que trouxe, entre outras coisas, um aumento na procura por cursos de formação em psicologia e por instituições de formação de psicanalistas ou terapeutas de orientação analítica.

A penetração desta forma de discurso favorecia e era favorecida pela ordem econômica vigente. A presença de profissionais “psi” nos meios de comunicação de massa tornou-se cada vez mais freqüente, veiculando conselhos e orientações através de jornais, revistas e da televisão. Suas abordagens, muitas vezes conferindo grande valor aos aspectos subjetivos das relações e ao desenvolvimento da individualidade, terminavam por favorecer um aporte individual para questões em que o contexto sócio-econômico e político do país

estava fortemente implicado, contribuindo ainda para a generalização de alternativas específicas a um determinado contexto populacional para toda a sociedade.

No campo da saúde, a partir do final da década de 70 um amplo movimento mundial modificou a maneira como os serviços de atenção à população se organizavam, a partir da revisão do próprio conceito de saúde. Em 1978 a Conferência Internacional sobre Atenção Primária, realizada na cidade de Alma-Ata, reiterou a saúde – definida como um estado completo de bem-estar físico, mental e social – como um direito fundamental do homem, sendo sua obtenção um importante objetivo social a ser perseguido por todos os setores da comunidade. Dessa forma, englobou a participação de todos os setores e campos de atividades ligados ao desenvolvimento de um país, através de esforços coordenados, para a organização de serviços de prevenção, tratamento e reabilitação dos principais problemas de saúde da comunidade.

Nestes termos, a Declaração de Alma-Ata, subscrita pela Assembléia Mundial de Saúde e pela Assembléia Geral das Nações Unidas, fomentou a inclusão de profissionais de áreas não médicas e de membros da comunidade para que, com o devido treinamento social e técnico, atuassem juntamente com os profissionais da área médica, como uma equipe na abordagem de problemas de saúde.

O advento do chamado “paradigma biopsicossocial”, preconizando um novo tipo de intervenção através das equipes multiprofissionais, levou um grande número de psicólogos a atuações relacionadas aos setores básicos (chamados primários e secundários), ampliando intervenções antes dirigidas somente às instituições psiquiátricas para atingir as Unidades Básicas de Saúde, os ambulatórios e hospitais gerais. No Estado de São Paulo, a partir de 1983, psicólogos passaram a integrar as equipes mínimas de saúde. Gradativamente esta mesma participação difundiu-se por todo o país, ainda que com menor ou maior atraso em cada Estado. A psicologia, acompanhando a medicina, passou a ter lugar em inúmeros

programas de saúde pública, colaborando na organização de novas (novas?) formas de cuidado aos indivíduos, como o “Programa de Saúde da Família” e o “Programa Canguru”.

Estas novas inserções profissionais trouxeram a necessidade de rever alguns conceitos essenciais adotados nos trabalhos relacionados à família. Estudos realizados na década de 90 passaram a questionar a própria categoria “família” (DUARTE, 1995), apontando a heterogeneidade de suas formações, e reconhecendo a multiplicidade de formas e sentidos que este termo tem adquirido no contexto brasileiro.

Organizando-se de forma distinta das famílias de classe média ou de elite, as famílias de camadas populares representam um desafio para as políticas sociais que as têm como objeto. Para Carvalho (1995) as políticas sociais no Brasil têm-se inspirado em políticas de bem-estar e de direitos sociais cunhadas em outros países capitalistas do ocidente, o que lhes têm imprimido características institucionalizadas e que elegem o indivíduo (em detrimento dos grupos e das comunidades) como foco privilegiado de atenção. Assim, ao privilegiar o indivíduo como portador de direitos, a família e a comunidade passam a ser substituídos por serviços institucionalizados, os quais em geral ignoram ou desconsideram em sua estruturação as características da organização familiar nestas camadas da população e que tomam os processos de subjetivação como homogêneos e identificados com um modelo idealizado, próximo daquele adotado nas camadas médias.

Ainda de acordo com Carvalho (1995), desse modelo de política social resultariam três processos importantes: (1) o favorecimento dos direitos dos indivíduos “per si” (direito da criança, da mulher, do idoso, do negro, do deficiente, etc); (2) a fragmentação dos indivíduos na forma de atenção pública, em conseqüência da transformação de necessidades em direitos “per si” (direito à educação, à saúde, ao transporte, ao lazer, etc); (3) a psicologização das relações sociais.

Além disso, as políticas sociais no Brasil têm se desenvolvido de forma extremamente centralista, resistente a uma efetiva reestruturação de competências entre as esferas públicas municipais, estaduais e federais. Segundo Luz (2000), no campo das políticas públicas, o Estado brasileiro viu-se marcado por duas dicotomias históricas permanentes, que produzem um antagonismo constante entre a prestação de serviços à população e sua gestão (concepção de programas e controle de seu financiamento). Dessa maneira, um centralismo político no campo decisório associa-se freqüentemente a um regionalismo no desempenho de determinadas funções de forma contraditória, pois aparentando favorecer a descentralização através de programas de privatização e desmonte do aparato estatal, o Estado neoliberal tem promovido a centralização dos recursos públicos na União, concentrando o poder decisório quanto à aplicação de recursos nos ministérios da área econômica. A prestação de serviços, entretanto, é progressivamente delegada aos municípios, gerando uma tensão constante entre as diversas esferas de governo.

Esta descentralização incompleta, sem a desconcentração de recursos compatível, tem tido como conseqüência a priorização de determinados programas verticais, que nem sempre mostram-se adequados às necessidades locais da população, enquanto programas e serviços locais tendem a inviabilizar-se por falta ou insuficiência de recursos, deixando sobre os profissionais de saúde das unidades a responsabilidade por seu fracasso perante a população. Por outro lado, estes mesmos profissionais vêem-se diante da necessidade de adaptar programas estruturados a partir de análises macroscópicas (como as análises de mortalidade infantil discutidas no Capítulo I deste trabalho) à demanda de suas unidades.

Organizados a partir de modelos idealizados por gestores freqüentemente desconectados das características e necessidades da população aos quais devem atender, tais programas requerem condições específicas (ideais) para sua implementação, nem sempre consonantes às práticas realmente desenvolvidas em sua execução. “Dessa forma, algumas

necessidades de saúde não são objeto de demanda; outras não são satisfeitas pelos serviços; outras não correspondem às necessidades reais da população e sim a interesses institucionais” (PINHEIRO e LUZ, 1999, p.19).

A complexidade destas necessidades raramente é apreendida por modelos idealizados e verticais, entre os quais podemos citar o Programa Canguru, cuja base está na racionalidade médica e econômica e cuja concepção centra-se em conceitos de família e de maternidade que podem ser muito distintos daqueles presentes na população efetivamente envolvida em suas práticas. Esta dissonância dificulta a operacionalização deste tipo de proposta, uma vez que suas ações são planejadas a partir de concepções, valores e experiências materiais que, se tomados de forma pouco crítica, podem ser assumidos como estáveis e homogêneos.

Além disso, a persistência de um modelo de atenção à saúde que tem suas práticas determinadas por políticas centralistas, além de comprometer o desenvolvimento de muitas ações, tende a tomar o usuário apenas como um objeto de intervenção, oferecendo-lhe pouca (ou nenhuma) oportunidade de opinar sobre o cuidado que recebe e dificultando seu envolvimento, de modo responsável e participativo, com o destino de sua própria saúde.