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3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS

3.9. INSERÇÃO DE NOVOS ELEMENTOS

Uma coisa que eu não esqueço é o rio. Fui nascido e criado na beira do rio.

Para esse não tem substituto. (Depoimento Verbal)24.

No discurso de todos os entrevistados, o rio aparece como elemento central para identificação da perda sofrida pela comunidade.

24 Dados da entrevista concedida pelo Sr. José Maria Pereira dos Santos. Pesquisa de campo realizada em janeiro de 2006.

Do rio e da terra nascem as relações dos moradores de Peixe Cru com seu entorno: vizinhos e povoado. É pelo filtro da terra que se constrói o olhar de cada uma daquelas pessoas. Do saber associado ao cultivo e uso das plantas ornamentais, frutíferas, medicinais.

“A mudança de lugar muda tudo” (Depoimento Informal)25, afirmou a Sra. Gerônima. De fato, as práticas cotidianas em Peixe Cru se alteraram em função do reassentamento compulsório. Nota-se, entretanto, que há uma dinâmica do velho no novo.

De fato, a manutenção de aspectos imateriais está diretamente ligada à utilidade destas práticas no cotidiano de seus detentores. A preservação patrimônio imaterial, tal como compreendido pelo IPHAN: ofícios e modos de fazer, celebrações, formas de expressão e lugares (edificações), implica necessariamente em que este patrimônio possua uma função na vida das pessoas. Nesse contexto, práticas mais ligadas à religiosidade e ao trabalho conjunto foram as que pareceram mais ameaçadas, uma vez que a televisão tem sido responsável por uma gradual e decisiva mudança nos valores das pessoas mais jovens e pela brusca mudança nas relações de produção agrícola, com a perda do sistema de parceria.

Uma das questões que se coloca, então, é a de que um dos elementos mais marcantes no processo de construção de identidades que é o apelo aos antecedentes históricos assume, no caso das comunidades impactadas por empreendimentos hidrelétricos, um papel ambíguo. Isto porque ao lidar com o passado perdido o que vem à tona é a perda compulsória daqueles elementos que significavam a existência mesma do grupo: seu lugar de origem, sua história comum, seus antepassados. Assim, evocar o passado implica em evocar a perda e o sofrimento.

Por outro lado, há uma dimensão no processo de construção de identidades que é projetiva. Nesse sentido, admite-se que há uma dimensão da constituição das identidades que trabalha com o “tornar-se”, ou seja, há um continuum do processo de construção das identidades, que faz com se possa pensar em formas de organização possíveis para as comunidades impactadas por empreendimentos hidrelétricos.

Nesse ponto faz sentido pensar na noção de projeto, tal como apresentada em por Velho (1988), citando Schultz: “conduta organizada para atingir finalidades específicas”. Assim, o desenvolvimento de ações que possam aliar memória e projeto são fundamentais em contextos de reassentamento compulsório, como ferramenta para construção das próprias identidades. Tal como salienta Velho (1988): “O projeto e a memória associam-se e

articulam-se ao dar significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria identidade”.

Algumas ações têm sido executadas e são fundamentais para que a comunidade possa refletir acerca desse processo de resgate ou não de determinadas práticas. Psicólogos contratados pela CEMIG, fizeram um trabalho com as crianças da escola para que fossem feitos livros contendo versos e cantigas tradicionais do povoado. Muitas canções foram elencadas, entretanto, o trabalho para a permanência desse tipo de manifestação deve ser dirigido no sentido de trazer estas práticas para o cotidiano da comunidade. Enquanto essas práticas permanecerem desvinculadas do cotidiano, estarão fadadas ao desaparecimento. Nessa medida, é preciso haver um movimento de reflexão acerca “dos usos, dos desusos e dos novos usos”, tal como indica a expressão cunhada por uma das técnicas contratadas pela CEMIG para desenvolver oficinas de educação patrimonial.

Uma questão que se coloca é que tipo de intervenção e qual o olhar que se estabelece quando da realização de ações com este caráter. Conforme Gonçalves (1996, p. 26) “Do ponto de vista dos devotos, a coroa, a bandeira, as comidas, os objetos (todo esse conjunto de materiais que integram a festa são propriedade das irmandades) são, de certo modo, manifestações do próprio Espírito Santo. Do ponto de vista dos padres, são apenas ‘símbolos’ (no sentido de que são matéria e não se confundem com o espírito). Na visão dos intelectuais, são apenas representações materiais de um ‘identidade’ e de uma ‘memória étnica’”.

Em janeiro de 2006, me foi relatado que a prefeitura estava incentivando a comunidade a implementar uma casa de farinha, para que o beneficiamento da mandioca e a comercialização de seu produto pudessem ser feitos de maneira conjunta. Foi dito, ainda, que Peixe Cru tem mantido uma estreita relação com atual prefeito de Turmalina, isto porque o presidente da associação comunitária de Peixe Cru auxiliou o atual prefeito durante o período eleitoral e, ainda, porque o prefeito tem dito que irá fazer de Peixe Cru a “porta de entrada” para o reservatório de Irapé. Isso significava a implantação de uma pousada no povoado e a manutenção de uma boa estrada ligando o povoado ao reservatório.

Em dezembro de 2006, o recurso para a construção da casa de farinha já havia sido aprovado junto ao Programa de Erradicação da Pobreza Rural, entretanto, esta não sido iniciada. Já havia sido realizado, também, um curso de costura, para as mulheres do povoado, por meio do SENAR, mas que não as mobilizou para uma produção conjunta. Já havia sido doado um lote para a construção da pousada, por parte do atual prefeito, entretanto, sua construção estaria “mais ou menos” condicionada à melhoria do acesso até o reservatório, distante do povoado em linha cerca de 18 km. A comunidade estava mobilizada para solicitar

à CEMIG esta melhoria de acesso, já que ela tinha se comprometido a fazê-lo , para o que fez um convênio com a prefeitura de Turmalina, na gestão anterior à atual para a realização do serviço. Segundo os moradores, o trabalho realizado o trabalho realizado não atendeu às necessidades, por má qualidade, e a CEMIG considerou o trabalho executado.

Jamilson fez uma interessante avaliação deste processo, em dezembro de 2006: “No início, a empolgação de que Peixe Cru era um lugar de desenvolvimento era grande. Depois de um ano, isso foi quebrado. A venda dos lotes não foi bem administrada. Teve empresa querendo vir para cá e associação não passou lote para eles. O pessoal achava que ia desenvolver muito, mas para isso precisava de organização interna. Isso não aconteceu” (Depoimento Informal)26.

A criação de oportunidades para que as comunidades possam discutir e ter meios para a criação de um projeto individual e comum é fundamental em um processo de reassentamento compulsório, deixando claro o caráter dinâmico deste projeto e da própria existência, marcada sempre pela possibilidade de rearranjos e re-significações. Aberto para o novo, sempre aliado ao antigo.

Um outro aspecto a salientar, no que diz respeito aos resultados do trabalho de campo, foram os recorrentes depoimentos acerca do término da convivência entre as pessoas do povoado:

“O modo do povo viver mudou, a convivência acabou, antes tinha forró, hoje não tem mais”. (Depoimento Informal)27.

O forró acabou. A igreja também acabou. Antes do Natal tinha festa, vigília, ceia comunitária, aqui acabou. Antes, no trabalho era mais junto, no garimpo tinha um grupinho, na roça trabalhava na meia. Aqui não. (Depoimento Informal) 28.

“Lá oferecia lugar para passear, cachoeira; aqui não tem lazer. O pessoal não tem opção e não sai à noite. O pessoal mais novo não conseguiu uma fonte de renda para propiciar o lazer. Não é por causa da televisão que o pessoal ta em casa, não. Nos últimos dois anos antes de mudar, quase todo mundo tinha televisão. Mas, aqui, ampliou o acesso por causa da indenização. Por falta de opção o pessoal fica em casa e não por causa da televisão. Antes

26

Dados da entrevista concedida pelo Jamilson. Pesquisa de campo realizada em 11/12/2006.

27 Dados da entrevista concedida pela Tina. Pesquisa de campo realizada em 15/01/2006.

faziam forró, festinha, agora não estão fazendo”. (Depoimento Informal)29.

Um aspecto interessante relatado pelos entrevistados é que no período inicial em Peixe Cru, as pessoas não saíam de casa porque tinham medo de assalto, por estarem perto da rodovia. Entretanto, o que ninguém soube dizer foi o porquê, mesmo depois das pessoas terem percebido que não havia um risco tão alto (nunca houve nenhum tipo de ocorrência de violência durante esse período), as pessoas mesmo assim não voltaram a conviver nas ruas e nas festas. Acredito que um conjunto de variáveis influencia nesse processo. O primeiro deles é a própria televisão, que ganha, nesse contexto, um apelo maior do que no Peixe Cru Velho. Além disso, a proximidade do povoado com a rodovia e outros povoados faz com que a convivência seja mais dispersa. O que quero dizer é que ao realizar eventos comunitários, existe uma grande possibilidade de que participem pessoas de outras comunidades, tirando do evento as características de integração interna da comunidade. Isso era completamente diferente no povoado antigo na medida em que o acesso não propiciava esse tipo de contato tão fácil com pessoas de outras comunidades. Esse fato descaracteriza qualquer tipo de evento a ser desenvolvido pela comunidade, uma vez que será sempre um evento também para os outros e não somente para as pessoas da comunidade, o que para eles, pode gerar brigas e outras formas de desentendimento. Assim, a precariedade do acesso ao Peixe Cru Velho propiciava a concentração e convivência de seus membros.

Um exemplo disso, foi a última festa do Bom Jesus do Peixe Cru, realizada em agosto de 2006. Segundo os entrevistados, foi uma festa em que houve um número muito superior, em relação àquelas realizadas no antigo povoado. Isto em função da facilidade de ir e vir.

Para essa discussão, retomo as reflexões de Giddens (2000) acerca da modernidade e das sociedades pós-tradicionais. Defendo a idéia de que a profunda mudança, sob os aspectos materiais da comunidade de Peixe Cru, implicaram na sua entrada no mundo pós-tradicional. Esta mudança tem exigido de seus moradores um alto grau de reflexividade social em relação às condições de existência e menos atrelada às práticas tradicionalmente estabelecidas.

Esta reflexividade social diz respeito a uma sociedade onde as condições em que vivemos são cada vez mais o resultado de nossas próprias ações e, inversamente, nossas ações visam cada vez mais a administrar ou enfrentar os riscos e oportunidades que nós mesmos criamos. (GIDDENS, 2000, p.20).

O remanejamento compulsório propicia o contato das comunidades reassentadas com uma série de realidades diferentes daquelas com as quais estavam acostumados. No caso de Peixe Cru, além das já citadas, outras são fundamentais para uma profunda mudança no que se refere ao patrimônio da comunidade da geração que viveu no Peixe Cru Velho e daquela que irá se estabelecer a partir da vida na Nova Peixe Cru (memória vivida e memória relatada). Alguns fatores são determinantes, quais sejam: a própria experiência que deixa de ser vivida no Peixe Cru Velho, para se tornar uma experiência relatada dos tempos antigos às margens do rio; além disso, a inserção de elementos como a televisão, a qual passou a ser acessível a todos da comunidade após o recebimento de indenização; a facilitação do transporte coletivo e da proximidade com a sede do município de Turmalina; e, por fim, o processo de monetarização da comunidade, tal como já discutido neste capítulo.