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Invocações às sete flechas do ano:

No documento Bastet e Sekhmet : aspectos de natureza dual (páginas 111-114)

2. Bastet e Sekhmet: os testemunhos

2.2. Sekhmet

2.2.4. Sekhmet nas fontes de carácter religioso

2.2.4.5. Textos de Edfu

2.2.4.5.3. Invocações às sete flechas do ano:

32. «Ó Sekhmet, aquela que preside sobre o campo/sobre as planícies, senhora da verdura, generosa, Sekhmet que protege as Duas Terras! Vem ao rei do Alto e do Baixo Egipto, ao senhor das Duas Terras, ao filho de Ré, ao senhor das coroas, [nome do rei], à imagem viva, ao falcão vivo! Salva-o, protege-o e defende-o da primeira flecha do ano!»386. Está presente aqui um novo aspecto da deusa, ligado à flora, o que pode ser entendido como parte do seu papel enquanto defensora do Egipto, algo que é corroborado por Germond387.

33. «Ó Sekhmet, a de cabelo encaracolado, senhora da escuridão, Uadjit, a grande! Vem ao rei do Alto e do Baixo Egipto, ao senhor das Duas Terras, ao filho de Ré, ao senhor das coroas, [nome do monarca], à imagem viva, ao falcão vivo! Salva-o, protege-o e defende-o da segunda flecha do ano!»388. Aqui, Sekhmet é referida novamente como a personificação da escuridão, bem como sendo Uadjit, fincando o seu papel protector enquanto serpente divina. A relação com o cabelo poderá ter a ver com a forma como o penteado simbolizava uma certa distinção. O adjectivo «grande» muito provavelmente está a qualificar Sekhmet e não Uadjit.

385 Idem, p. 73. 386 Idem, p. 75.

387 Idem, p. 94, nota número 55. 388 Idem, p. 75.

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34. «Ó Sekhmet, aquela que se move com a luz, aquela que aterroriza os deuses através do seu massacre! Vem ao rei do Alto e do Baixo Egipto, ao senhor das Duas Terras, ao filho de Ré, ao senhor das coroas, [nome do monarca], à imagem viva, ao falcão vivo! Salva-o, protege-o e defende-o da terceira flecha do ano!»389. Nota-se uma reiteração do que já foi observado: Sekhmet como senhora da luz, opondo-se à invocação anterior onde se exaltava o seu aspecto ligado à escuridão, e Sekhmet, a deusa que os restantes deuses temem.

35. «Ó Sekhmet, aquela que conduz os humanos, senhora das margens e da humanidade! Vem ao rei do Alto e do Baixo Egipto, ao senhor das Duas Terras, ao filho de Ré, ao senhor das coroas, [nome do soberano], à imagem viva, ao falcão vivo! Salva-o, protege-o e defende-o da quarta flecha do ano!»390. Sekhmet é a que conduz os humanos, o que, segundo Germond, significa literalmente, aquela que está à cabeça, a que está no comando, noção concordante com o que já vem sendo analisado. O epíteto de senhora das margens refere-se, muito possivelmente, ao Nilo e à vegetação, o que vai de encontro ao que é afirmado na invocação 32 – o papel da deusa ligado à vegetação. O epíteto de senhora da humanidade servirá, possivelmente, para dar força a esta característica de Sekhmet.

36. «Ó Sekhmet, a luminosa, a grande, preeminente na mansão de fogo, que aterroriza391 as Duas Terras com o seu temor! Vem ao rei do Alto e do Baixo Egipto, ao senhor das Duas Terras, ao filho de Ré, ao senhor das coroas [nome do monarca], à imagem viva, ao falcão vivo! Salva-o, protege-o e defende-o da quinta flecha do ano!»392. Mais uma vez se repetem atributos já observados, salvo a menção da mansão de fogo, que de acordo com Germond, é uma «toponímia mítica de Edfu, referente a Hathor-Sekhmet, incarnação da chama»393. Significa isto que Edfu é o local e se Sekhmet é nele preeminente, então é ela quem governa a cidade, uma concepção curiosa, tendo em conta que o templo era dedicado a Hórus e que o estandarte da

389 Idem, p. 77. 390 Idem, p. 77.

391 Variação: «que domina». 392 Idem, p. 79.

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urbe, capital da segunda província do Alto Egipto, «era formado pelas imagens de um trono e de um falcão hórico»394.

37. «Ó Sekhmet, aquela que ama a maet/Maet e que abomina o mal, senhora dos

rekhit395! Vem ao rei do Alto e do Baixo Egipto, ao senhor das Duas Terras, ao filho

de Ré, ao senhor das coroas [nome do monarca], à imagem viva, ao falcão vivo! Salva-o, protege-o e defende-o da sexta flecha do ano!»396. Tal como ocorrido na invocação 28, não é perceptível se o texto se refere à deusa ou ao conceito de maet, mas neste contexto, tendo em conta que logo em seguida há uma contraposição com o mal, que Germond diz significar literalmente a desordem, então é provável que aqui se fale do conceito. Quanto ao termo rekhit, embora o autor não o tenha traduzido, pode significar que Sekhmet dominava e/ou exercia influência sobre o povo.

38. «Ó Sekhmet, iaret que abre a acácia, soberana, a grande! Vem ao rei do Alto e do Baixo Egipto, ao senhor das Duas Terras, ao filho de Ré, ao senhor das coroas [nome do monarca], à imagem viva, ao falcão vivo! Salva-o, protege-o e defende-o da sétima flecha do ano!»397. Germond explica que a expressão «que abre a acácia» se relaciona com o epíteto «senhora das duas acácias», observado em outra obra referenciada pelo autor. A relação da acácia com Sekhmet não é clara, esta árvore era utilizada de várias formas e tinha um certo grau de resistência, mas tendo em conta esta invocação, é muito provável que existisse alguma conotação de foro religioso/mitológico.

Após este rol de invocações sekhméticas, segue-se outra que começa de uma forma bastante interessante e do qual apenas importa reter a primeira expressão: «Hórus, Hórus descendente de Sekhmet»398, a qual levanta algumas questões que convirá analisar. Este Hórus, descendente de Sekhmet, será, à partida, o «Hórus descendente» referenciado ao longo das invocações. Mas este Hórus será o mesmo Hórus, filho de Ísis e de Osíris? Isto porque dentro desta invocação, referem-se a ele como Hórus de Behedet, Hórus do Horizonte (Horakhti),

394 TREMOCEIRO, R. P., «Edfu». Dicionário do Antigo Egipto, p. 288. 395 População do Egipto.

396 Vide GERMOND, TE, p. 79 397 Idem, p. 81.

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Hórus o grande, Hórus o senhor do céu, Hórus o marido de Hathor e pai de Ihi e Horsemataui, filho de Ré, rei do Alto e do Baixo Egipto. Assim, e de acordo com as concepções hóricas apresentadas por José das Candeias Sales399, esta invocação parece reunir vários aspectos do deus falcão, nomeadamente as formas solares e as formas osíricas, o que poderá dizer muito sobre as concepções mitológicas no derradeiro período do Egipto faraónico. No meio de tudo isto, o importante, para a dissertação, é reter que este Hórus aglutinado é descendente de Sekhmet, o que não deixa de ser estranho, visto a deusa leoa ser filha de Ré e o mesmo texto que assevera que Hórus é descendente de Sekhmet (pensa-se, à partida, em filiação) declara, ainda, que Hórus é filho de Ré. Porém, tais concepções não são novidade na mitologia egípcia: num outro texto, também do templo de Edfu, não referenciado por não conter informações relativas a Sekhmet, Hórus é apresentado como filho de Ísis e Osíris para depois ser dito que o seu pai é Ré-Horakhti400.

No documento Bastet e Sekhmet : aspectos de natureza dual (páginas 111-114)