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O ISOMORFISMO TEM LIMITES 

Na verdade, se excetuamos a onomatopéia, que resulta de um esforço de transpor no som da voz o som das coisas, não se dá isomorfismo absoluto na linguagem humana. Saussure já o disse quando postulou a criação social do signo como pedra angular do sistema. Com outro enfoque, Karl Bühler mostrou que, se o homem tivesse ficado jungido à onomatopéia, jamais teria encontrado condições para trilhar o caminho do discurso 7. Este exige a combinação temporal de formas e relações sintáticas, sem o que se esgotaria em uivos, gritos e outros gestos vocais isolados. E Trubetzkoy, com a sua lógica sem mancha, argumentava: "Se alguém conta uma aventura de caça e, para avivar a narração, imita um grito de animal ou qualquer outro ruído da natureza, deve, nessa altura, interromper a narração: o som natural imitado é um corpo estranho que se acha fora do discurso representativo normal" 8.

Seria bom poder lidar com os fenômenos imitativos da linguagem de tal modo que a sua presença, nítida em mais de um

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texto poético, não acabasse extrapolada de modo abusivo ou pueril.

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Cf. Giacomo Leopardi, Zibaldone di pensieri, aos cuidados de Francesco Flora, 2ª ed., Milão, Mondadori, 1945. O texto foi escrito por volta de 1818.

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Cf. K. Bühler, Teoria del lenguaje, trad. de Julián Marías, 3ª ed., Madri, Revista de Occidente, 1967, § 13.

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Tomo para matéria de reflexão uma série de palavras que contêm a vogal /u/ na sílaba principal, tônica. Os defensores do simbolismo orgânico acreditam que uma vogal grave, fechada, velar e posterior, como /u/, deva integrar signos que evoquem objetos igualmente fechados e escuros; daí, por analogia, sentimentos de angústia e experiências negativas, como a doença, a sujidade, a tristeza e a morte.

Um levantamento, ainda que parcial, de palavras que incluem a vogal /u/ em posição de relevo parece confirmar essa expectativa.

I) Ao campo semântico da obscuridade material ou espiritual pertencem, por exemplo:

bruma bruno cafuso crepúsculo dilúculo dúbio escuro escuso fundo fundura furna fusco gruta negrume negrura noturno núbilo penumbra profundo túnel túrbido turvo

II) Ao campo semântico do fechamento pertencem, além de palavras que já figuram na lista anterior (furna, gruta, túnel), as seguintes:

aljube apertura baiúca brusco (= enfarruscado; ex.: céu brusco) buque (= prisão)

cafua cafurna canelura canudo caramujo casulo cissura conduto

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cuba cuca cumbuca curro espelunca furda juntura lura (= furna) ocluso obtuso oculto ofusco recluso sulco sutura tubo tugúrio urna útero úvula vulva

O ato de fechar, que se enuncia nas palavras juntura, sutura e costura, supõe a existência de um corte estreito, ainda aberto, uma fenda: cissura, comissura, fissura.

III) Junto ao escuro e ao estreito acha-se o campo simbólico do triste, do aborrecido, do mal-aventurado:

agrura amargura amuo angústia azedume calundu caramunha carrancudo casmurro cenhudo jururu infortúnio lamúria macambúzio pesadume queixume rabugem resmungo soluço soturno

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taciturno tristura urubu ("Um urubu pousou na minha sorte") uruca (de "urucubaca")

IV) Junto ao escuro, estreito e fechado, está o sujo, o putrescente, o mórbido:

caruncho carusma (= dejetos de carvão, cinza) chafurda chulo corrupto culpa cúpido cuspo dissoluto estrupo furúnculo fartum ferrugem impuro imundo lúbrico lúrido monturo muco nauseabundo paul poluto pústula pútrido suburra sujo úlcera

O Diabo é Belzebu, Cafuçu, Cujo, Sujo, Súcubo, Exu.

V) Enfim, ponta extrema da negatividade, as palavras da morte:

ataúde moribundo catacumba múmia defunto sepulcro fúnebre tumba fúnero túmulo lúgubre urna luto viúvo

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É o caso de perguntar: qual o alcance efetivo dessas listas? É tão fácil sobrestimá- las quanto subestimá-las. Em todas, é possível verificar uma intersecção constante de um fonema em posição tônica, /ú/, com uma certa área de significados: a escuridão, o fechamento, a angústia, a doença, a morte.

Mas a ocorrência simples da vogal não é tudo; a leitura expressiva das palavras poderá ressaltar com vigor as conotações que as penetram; e dar ao sujeito que as profere a sensação de um acordo profundo, um autêntico acorde vivido que fundiria o som do signo e a impressão do objeto.

articula a sensação que dá, de um recinto escuro, profundo e fúnebre? Subjetivamente, parece inegável que a palavra responde, por natureza, aos estímulos que se recebem do objeto.

Estamos diante de um processo pelo qual se associam, no corpo-que-fala, dois movimentos:

a) a sensação (e, às vezes, o sentimento) que o objeto é capaz de provocar; no caso, a escuridão e a angústia que a imagem de uma tumba produz, em geral, no ser humano;

b) a sensação interna, que o mesmo sujeito experimenta quando articula uma vogal fechada, velar e escura, principalmente quando em posição de força: túm/ba.

Haveria, portanto, nas palavras ditas motivadas, um acordo subjetivo entre as reações globais (sensoriais e emotivas) e o modo de articulação de um determinado som.

Chega-se, por esta via, ao limiar da expressão, que supõe movimentos internos ao corpo. Os signos a que se atribui maior dose de motivação seriam portadores de certas sensações que integram experiências fundamentais do corpo humano. Os signos motivados não seriam, porém, "pintura" de objetos exteriores ao corpo, pela simples razão de que a matéria da palavra se faz dentro do organismo em ondas movidas pelo poder de significar.

Essa radical subjetividade ou, se se preferir, essa corporeidade interna e móvel da matéria verbal torna relativa, mediata, simbólica, jamais icônica, a reapresentação do mundo pela palavra. Mesmo quando um signo lingüístico nos parece mais colado à coisa (o que acontece, tantas vezes, na fala poética), o

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que se dá é uma operação expressiva organizada em resposta à experiência vivida e, o quanto possível, análoga a um ou mais perfis dessa experiência. Nessa operação o som já é um mediador entre a

vontade-de-significar e o mundo a ser significado.