JAIRNILSON SILVA PAIM:
É uma alegria estar aqui e poder conversar sobre um tema que, de certa forma, ficou um pouco fora de moda durante a década de 1990 e que, hoje, para a nossa satisfa
-ção, volta a entusiasmar debates, reflexões e produção científica. No final da década de 1990, havia a ideia de que a Reforma Sanitária já era coisa do passado – da década
de 1970 para a de 1980 – e que não tinha muito a dizer em relação ao momento que estávamos vivendo. E, para aqueles que sempre militaram nessa temática ou a
estudaram, era um incômodo verificar que a expressão Reforma Sanitária, nos mo
-mentos que aparecia, era mais para embelezar finais de editoriais ou de textos como figura de retórica. Não no sentido de um projeto mobilizador capaz de introduzir
mudanças dentro do setor saúde e, sobretudo, no âmbito da sociedade.
O que é, portanto, uma Reforma Sanitária? No caso brasileiro, estamos falan-do de uma reforma da questão saúde, a qual transcende uma dimensão setorial. Tem a ver com a vida das pessoas, com a forma da organização da vida social. Essa é uma
especificidade da Reforma Sanitária brasileira. Ela se distancia daquelas reformas
setoriais que ocorreram, sobretudo, na década de 1980, patrocinadas por organismos internacionais como o Banco Mundial. Quando vamos observar a revisão sobre essa temática, geralmente a literatura internacional traz a ideia de reforma dos serviços de saúde, e não necessariamente uma reforma da questão sanitária, da questão das necessidades de saúde das pessoas e das coletividades.
Gostaria de fazer alguns delineamentos iniciais no sentido de distinguir a Reforma Sanitária para além de uma política social, de uma política estatal ou de
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uma política de saúde. Embora o Sistema Único de Saúde – o qual comemora seus
20 anos – seja um filho dileto da Reforma Sanitária, ele não é o único. A Reforma
Sanitária não se esgota no Sistema Único de Saúde. Este é uma parte do ideário da
Reforma, mas não se confunde com seu projeto original. Portanto, a ideia que eu queria trabalhar era a da Reforma Sanitária como um projeto de reforma social que,
apesar de inconcluso, teve elementos importantes para poder fazer uma diferencia-ção com outras reformas parecidas.
Nesse particular, buscamos interpretar esse projeto à luz de alguns tipos de
práxis que se desenvolveram ao longo da história da humanidade e que implicavam
mudanças do ponto de vista da organização da sociedade. A contribuição de Agnes
Heller, ao sistematizar esses tipos de práxis, aponta quatro mudanças fundamentais: a
reforma parcial, que diz respeito à mudança de um setor específico ou de determina
-da instituição; a reforma geral, particularmente ocorri-da no início do século XX com um conjunto de mudanças setoriais dentro da social-democracia, que visava a uma
transformação mais ampla da sociedade; os movimentos políticos revolucionários, que implicavam uma ruptura através da tomada de poder do Estado; e aquilo a que a própria autora húngara chamava a atenção, de que não existia ainda na história da humanidade uma revolução total que levasse, também, depois da mudança das
relações de poder, a uma modificação no modo de vida. E, se algo pudesse parecer
um pouco com essa ideia, mencionaria o cristianismo, que mudou o cotidiano das pessoas, ainda que dentro da perspectiva religiosa.
Então, a partir desses quatro tipos de práxis social, podemos identificar ao
longo das leituras sobre os textos que foram produzidos em relação à Reforma Sani-tária brasileira que a mesma apresentava-se como uma proposta de reforma geral. Portanto, geraria uma totalidade de mudanças que passava pelo setor saúde, mas
não se esgotava nele. Além disso, do ponto de vista da sua teorização apontava para mudanças da forma de organização da vida cotidiana das pessoas. As leituras que
podemos fazer dos textos seminais a partir da proposta construída no Brasil são
suficientes para identificar alguns desses tipos de práxis.
Acrescentei, também, para a reflexão sobre essa reforma, dois conceitos de origem gramsciana: revolução passiva e transformismo. Estes já foram utilizados na América Latina e, particularmente, no Brasil, por Luiz Werneck Vianna e Carlos
Nelson Coutinho. Estes autores vinham trabalhando com esses conceitos para poder entender um pouco a sociedade brasileira. Do ponto de vista do encadeamento de
evidências empíricas acerca desse desenvolvimento, apresento um conjunto de mo -mentos que não são etapas. Trata-se de mo-mentos em que um pode estar dominante
em relação a outros: o momento da ideia, o da construção da proposta, o do projeto e o de um processo. Assim, um movimento foi engendrando a ideia, as propostas e o projeto, fazendo avançar o momento do processo. Uma vez construídas as bases
sociais e políticas, surgia não uma mente iluminada, mas um conjunto de homens e mulheres que apostaram nesse projeto e conquistaram força social para poder, inclusive,
chegar ao Estado e conseguir uma determinada permanência do ponto de vista temporal. Portanto, poderíamos destacar que a Reforma Sanitária brasileira é uma
re-forma social centrada na democratização da saúde. O seu projeto implicava uma de -mocratização do Estado, dos seus aparelhos, no sentido de ter maior transparência, maior participação do público no seu controle e uma democratização da sociedade, da cultura. E, para usar uma expressão de Gramsci, de uma reforma intelectual e moral que trouxesse a questão da saúde para o cotidiano e para a crítica desse co-tidiano pelas pessoas.
No entanto, há um certo esvaziamento da agenda da Reforma Sanitária. Poderíamos indicar que nos anos 1999 e 2000 essa reforma esteve ausente até
mes-mo nos editoriais do Cebes, que é um intelectual e um sujeito coletivo desse projeto. Esteve ausente também em todos os editoriais da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), entre 1994 e 2000, excetuando-se apenas num documento que a Abrasco produziu para a 10ª Conferência Nacional de Saúde. Assim, ao se apresentar como um sujeito coletivo que teria o que dizer naquela con
-ferência, a Abrasco afirmava que era um sujeito que apostava na Reforma Sanitária,
e assim voltou a aparecer a expressão “Reforma Sanitária”.
Esta somente volta a frequentar os editoriais da Abrasco a partir da gestão
que se inicia em 2000 e que termina em 2003. Logo em seguida, e até 2006, a
Re-forma Sanitária desaparece de novo do discurso institucional da Abrasco. E, se observarmos os relatórios finais de todas as conferências posteriores à 8ª – a 9ª, a 10ª, a 11ª –, verificaremos que a expressão “Reforma Sanitária” havia sido banida do discurso dos próprios construtores desse projeto. Então, esses são indicadores
empíricos de uma ausência de militância capaz de fazer com que essas manifestações coletivas recuperassem a história e o potencial de mudança daquela reforma pensada na década de 1970 e na década de 1980.
Entretanto, alguns fatos foram ocorrendo, especialmente a partir de 2005,
que fizeram com que esse processo tivesse, novamente, um espaço de agenda. A realização do 8o Simpósio de Política Nacional de Saúde, em junho de 2005, trouxe uma crítica desses sujeitos que lá estavam lá. O Cebes, particularmente, apresentou
uma crítica contundente ao Estado brasileiro, que estava sendo incapaz de realizar e
de concretizar aquela reforma. Ao mesmo tempo, houve uma certa valorização dos movimentos sociais e da própria sociedade civil diante de alguns fatos conjunturais
que todos devem se recordar.
Até o início daquele ano havia um namoro desses movimentos com o
go-verno, pois muitos apostavam na possibilidade de ele viabilizar a reforma. No entan-to, o governo se distanciava, cada vez mais, dos compromissos com as mudanças na
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sociedade brasileira e, no particular, da Reforma Sanitária. Então, é como se tivesse
“caído a ficha”, reconhecendo-se que apenas por uma ação no âmbito governamen
-tal seria impossível avançar no SUS, quem dirá na Reforma Sanitária brasileira. Dessa
forma, foi organizado o Fórum da Reforma Sanitária com várias entidades.
No âmbito da sociedade civil, isso vai se desenvolvendo mediante um
con-junto de debates e de movimentações. Certas iniciativas pontuais no âmbito do Esta -do (particularmente -do Executivo) assinalavam algumas propostas que estavam nas origens da reforma como, por exemplo, a ênfase nos determinantes sociais da saúde, a ideia de uma política de promoção da saúde e a própria ideia de pacto que sempre pautou a construção, dentro de uma sociedade democrática, de uma federação que
tem especificidades como a do Brasil.
Hoje podemos fazer um certo balanço das conquistas que foram alcança
-das. Uma dessas grandes conquistas da Reforma Sanitária foi o SUS. Com todas as
suas imperfeições, com toda a sua implementação tortuosa, com todas as suas con-tradições, é, seguramente, um dos maiores sistemas públicos universais do mundo. São quase três bilhões de procedimentos que são feitos por ano, por exemplo, um
milhão de internações por mês. Então, tudo no SUS é muito grande, inclusive seus
problemas. Essa escala que conseguimos conquistar, em termos do Sistema Único de Saúde, é uma das conquistas da reforma.
Um segundo ponto de atenção dessa conquista é o direito à saúde que já está,
de certa forma, permeando o senso comum. Mesmo que a população não entenda a reforma como uma conquista popular, uma conquista social, ainda assim a ideia de
direito social já começa a ser mais disseminada. Um outro aspecto é a Reforma Sani -tária ter contribuído para que o Estado se tornasse mais permeável, um pouco mais participativo. Construiu, portanto, a ideia de uma gestão descentralizada e participa-tiva. Mas, tomando um pouco emprestado uma ideia de Boaventura de Sousa Santos – das promessas não cumpridas pela modernidade –, também tivemos promessas
não cumpridas pela Reforma Sanitária. Uma delas é que, embora concebida como
um tipo de práxis de reforma geral, acenando para uma revolução no modo de vida, a Reforma Sanitária se reduziu a uma reforma parcial, que tem uma face
institucio-nalizada, que é o SUS, com seus aspectos setoriais e administrativos.
O movimento sanitário que gerou essa reforma esmaeceu-se diante de todo um recuo dos movimentos sociais ao longo da década de 1990 por motivos que po-dem ser debatidos. Nesse particular, esse retrocesso do movimento sanitário vai ter como consequência a ocupação progressiva do espaço político por gestores,
corpo-rações e grupos de interesse. Assim, a Reforma Sanitária passou a operar com aquele binômio alusão/ilusão, comum às práticas ideológicas. Alude, portanto, a uma re -forma ampla e ilude quanto às suas consequências quando se limita à implantação do Sistema Único de Saúde. Revela a dialética entre o instituinte e o instituído: quando
o movimento se transformou em sistema, predominou o instituído. No entanto, a repolitização desse movimento pode trazer novas energias instituintes e, quem sabe, transcender o sistema.
O conceito de revolução passiva, portanto, passa a ser um conceito útil em relação à compreensão dos impasses da Reforma Sanitária brasileira. Durante muito tempo, questionamos o retrocesso do governo Sarney, as políticas neoliberais do
Collor, o ajuste estrutural do Fernando Henrique e o continuísmo do Lula em rela
-ção ao conjunto de políticas econômicas que se faziam desde o início da década de 1990. Ou seja, geralmente eram explicações conjunturais. Esta reforma, particular -mente diante do Estado brasileiro (não o Estado abstrato, mas o Estado real-mente existente), nos faz entender que a lentidão e os impasses do processo são muito
me-nos questões conjunturais e muito mais decorrentes da forma como as classes domi -nantes ocuparam e controlaram o Estado brasileiro e como elas foram cooptando os vários segmentos que potencialmente poderiam ser a sua antítese. Creio que, nesse particular, o conceito de transformismo passa a ser útil para interpretarmos as mu-danças de lado de vários segmentos que se opunham à determinada política e passam a desenvolvê-la no momento seguinte.
Gramsci apontava dois tipos de transformismo: o transformismo molecular
e o de grupos radicais inteiros. Poderíamos observá-los nas duas conjunturas anali -sadas: a primeira é a da transição democrática e a segunda, do período pós-constitu-inte. Na primeira, poderíamos ilustrar o transformismo molecular quando o MDB, autêntico, se articula com a aliança democrática, passando para o lado conservador-moderado. E, no período pós-constituinte, quando muitos oponentes do governo Collor passaram a apoiar o governo Itamar. Dizem, inclusive, que o próprio PSDB e Fernando Henrique Cardoso só não participaram efetivamente do governo Collor porque Covas não permitiu. Então, essa é uma ilustração de um transformismo mo-lecular. Já o transformismo de grupos radicais inteirospode ser ilustrado com o Lula, o PT e seus aliados, que dão continuidade àquelas políticas anteriores, de modo que
mostra muito bem uma frase crítica do Gramsci: “A política da direita com homens
e frases de esquerda.”
Portanto, o desenvolvimento do SUS, ainda que muito mais estreito que a
Reforma Sanitária, exige toda uma preocupação com a sua sustentabilidade,
particu-larmente a sustentabilidade econômica, política, científico-tecnológica e institucional. Apesar de tudo, diríamos que a Reforma Sanitária não é um movimento desnaturado. Ela não traiu os seus objetivos. Ela teve limites na implantação dos seus objetivos mais generosos. Mas essa revolução passiva pode ser, de certa forma,
utilizada como critério, para mudar o curso da história. Pode fazer com que se en-tenda a possibilidade de superar os transformismos e fazer avançar a política que a
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melhores para construir a Reforma Sanitária e o SUS, em particular. Mas, “para
cons-truir uma história duradoura, não bastam os melhores; são necessárias as energias nacionais populares mais amplas e numerosas.”