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Jhering e o imperativo edipiano

No documento O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL (páginas 131-136)

ATRAVÉS DE KELSEN

3.4.2 Jhering e o imperativo edipiano

A concepção imperativista de norma jurídica na ciência do direito do século XIX tem, como referência, a elaboração de Jhering em A Finalidade no Direito138.

O autor parte da definição do direito, que para ele é o conjunto de normas asseguradas pelo poder coativo do Estado139. Ao conceito de direito pertencem, portanto, dois elementos: um elemento interno, a norma, e um elemento externo, a coação.

A coação é necessária à realização do direito, mas não integra a norma jurídica. Norma e coação são noções interdependentes, mas separadas. Da mesma forma, o direito —

137

BOBBIO, O positivismo jurídico..., 1995, p. 195. 138

GUERRA FILHO (Direitos subjetivos, direitos humanos..., 1996, p. 232-233) inscreve essa obra no que chama de “[...] abordagem pragmático-utilitária”.

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ao contrário do que ocorre com Kelsen, conforme veremos — não se confunde com o Estado, que tem então a função de assegurá-lo externamente.

O direito dispõe de uma natureza prática e impositiva: é uma regra orientada para o agir humano, que deve ter seu cumprimento garantido. É a partir daí que Jhering pode diferenciar a norma jurídica de outras regras, notadamente as relativas aos campos da moral e da gramática.

As regras da gramática não são propriamente regras de conduta, não visam à direção das ações humanas, ao contrário das regras morais. Mas então, o que distingue estas das normas jurídicas? Aqui o aspecto que é decisivo é o caráter impositivo do direito. Somente as normas jurídicas são obrigatórias, no sentido de que seu cumprimento é imposto desde fora e coativamente assegurado. Não se trata de uma questão individual, ou meramente social. Das normas morais, pode-se dizer que seu cumprimento depende da autonomia do indivíduo, ainda que constituam uma espécie de imperativo social140. O direito, ao contrário, não faz depender seu cumprimento exclusivamente do indivíduo, nem lhe basta a caracterização como imperativo social. O direito, sua realização, requer a organização social da coação — ou seja, um vínculo com o Estado, vínculo com a sociedade no uso do seu poder de coação141.

A norma jurídica se impõe, portanto, coativamente ao indivíduo, à vontade individual. Jhering raciocina o problema da norma jurídica, psicologicamente, como uma

relação entre duas vontades142. Existe uma vontade que se submete e uma vontade que

comanda. Trata-se assim da vontade do mais forte, emanada de quem tem o poder de estabelecer uma limitação à vontade alheia, mais fraca143. A vontade do mais forte144 aparece, pois, como uma ordem, em que está implícita uma relação de comando. Relação que, se não é estritamente interidindividual, não deixa de ter um fundamento psicológico (ou psico- sociológico). Trata-se, com efeito, sempre de uma dupla vontade, ainda que a vontade que comanda seja uma vontade geral, uma vontade coletiva145.

A origem do imperativo está na vontade coletiva, que o causa. Para Jhering, em sendo vontade, trata-se não da causa eficiente, própria à natureza, mas de uma causa final,

140

JHERING, A evolução do Direito, 1956, p. 264. Ver também Ferraz Jr. (A teoria da norma jurídica em..., 1996, p. 215.

141

Cf. JHERING, A evolução do Direito, 1956, p. 248; 264. 142

Ibid., p. 263. 143

FERRAZ JR., A teoria da norma jurídica em..., 1996, p. 215. 144

Ferraz Jr. (Ibid., p. 221) mostra que em Jhering isso não resulta de uma pesquisa empírica, própria da psicologia social americana da década de 1950. Essa questão não é, aliás, kelseniana, porque neste a problemática não é psicosociológica, nem empírica. Nem é suficiente, como vimos, à constituição do sujeito freudiano ou durkheimiano — um sujeito a-social.

145

uma finalidade, ou seja, o fim social146, o interesse social, coletivo. Essa apresentação psicológica (e circular) do problema da causa funciona como anteparo, desconhecimento de que o direito é, como vimos, sem-causa. Ela se sustenta em um modelo que se reduz a uma alternativa excludente: ou causa eficiente ou causa final (psicológica, sociológica, psicosociológica, tanto faz). Para Jhering, é isso que autoriza dizer que a norma jurídica é um imperativo social, ainda que de caráter específico, porque um imperativo cuja finalidade, cuja realização é assegurada pelo poder da coação estatal.

A norma para Jhering relaciona-se assim com a coação que, entretanto, não lhe integra a estrutura. A coação é o elemento externo do direito. A norma, norma imperativa, seu elemento interno. A relação entre direito e poder, norma e coação não é, assim, estrutural. Ela pressupõe uma concepção cronológica do tempo:

[...] a norma jurídica não exclui, ao contrário, exige também, num segundo momento, após a imposição, a coação. E a noção de coação leva Jhering a discorrer sobre a noção de poder. Note-se que a norma não se define pela noção de coação, mas a norma jurídica, sim, ou seja, a norma jurídica é dotada de coação; daí ser impossível separar os dois conceitos. Isso é importante na obra de um homem do século XIX: não se pode separar completamente o estudo do direito do estudo do poder.

A norma, para Jhering, porém, não se confunde com a coação: a norma é dotada de coação, mas ela mesma não chega a ser uma coação, a norma é um imperativo, é apenas um comando, a coação vem depois, pelo descumprimento.147

A norma jurídica, o comando jurídico, se tem um conteúdo este não é a coação (justamente porque falta o liame, a relação entre norma e coação), mas um pensamento. A teoria da mens legislatoris decorre daí148: existe um pensamento que é declarado, transmitido pelo legislador e expresso numa proposição imperativa. A proposição não é constitutiva (do sujeito, de lugares, relações simbólicas), não é um ato constitutivo. Ao contrário, ela simplesmente expressa um conteúdo interno do legislador, enquanto sujeito psicológico do direito normado, que regra as relações sociais — relações entre indivíduos preexistentes. Um conteúdo que deve ser incorporado, internalizado pela vontade individual, a quem o comando se dirige. A insistência, portanto, é sempre em categorias psicológicas e na dimensão conteudística, super-egóica, da norma.

A norma jurídica pode assumir o aspecto de uma determinação positiva — na hipótese da obrigação — ou de uma determinação negativa — na hipótese da proibição. Em

146

JHERING, A evolução do Direito, 1956, p. 264. 147

FERRAZ JR., A teoria da norma jurídica em..., 1996, p. 216, grifos do autor. 148

qualquer hipótese, trata-se de um imperativo abstrato — porque válido como orientação do agir humano em todos os casos, ao contrário do imperativo concreto. A norma é assim o imperativo abstrato das ações humanas (já que a natureza não conhece imperativo) e tem como destinatário todos os cidadãos149.

Nessa concepção imperativista, como fica o problema da permissão? Jhering reconhece que nem todas as normas são imperativas, mas isso não significa, segundo o autor, uma incongruência. O direito é um conjunto normativo, conjunto de imperativos, mas isso não quer dizer que todas as normas sejam imperativas. Jhering admite assim a presença da permissão no direito, como limitação de um imperativo. Ela pode ter, portanto, um aspecto negativo (para negar um imperativo positivo, ou seja, a obrigação) ou um aspecto positivo (para negar um imperativo negativo, ou seja, a proibição). Em ambos os casos, ela tem uma dimensão conteudística, determinando-se a partir da obrigação ou da proibição150.

Essa concepção da permissão é o resultado da articulação de uma concepção liberal de Estado, vigente no século XIX, com o modelo autoritário do Estado prussiano151. Por um lado, a coação adquire um aspecto do Estado liberal, que coage minimamente, ou seja, que só intervém para impedir uma interferência ilegítima de um indivíduo na esfera de liberdade de outro. Nesse sentido, pois, a permissão não funciona como autorização à instituição dos espaços público e privado, porque a relação entre o público e o privado já é dada, já se afirma como dada. Por isso a afirmação de Jhering de que o Estado e a sociedade são campos separados. Uma separação que independe de uma estrutura simbólica, que é pré-normativa: a coação, enquanto elemento externo à norma, apenas garante a separação entre o Estado e a sociedade152 e a própria distinção entre o público e o privado.

Por outro lado, a defasagem entre a norma e a coação coloca o problema relativo ao caráter autoritário do direito público-constitucional. A submissão do poder público à lei deve ser limitada153, constituindo “[...] um erro julgar-se que a segurança do direito e a liberdade política são incompatíveis com um poder forte [...]”154. É por isso que o poder de coação é um

poder estatal que não alcança os órgãos supremos do Estado155. Jhering reporta-se

149

Como observa Ferraz Jr. (A teoria da norma jurídica em..., 1996, p. 219), somente a coação, que não compõe a estrutura da norma, ao contrário do que ocorre em Kelsen, se dirige ao juiz.

150

BOBBIO, O positivismo jurídico..., 1995, p. 188. 151

Ferraz Jr. (A teoria da norma jurídica em..., 1996, p. 224) observa ser esta uma teoria da época, acompanhada por Jhering, “[...] embora o Estado prussiano não fosse propriamente o que se poderia chamar de um Estado liberal [...]”.

152

JHERING, A evolução do Direito, 1956, p. 249. 153

Ibid., p. 322 et seq. 154

Ibid., p. 323. 155

expressamente ao soberano como uma autoridade pré-jurídica — uma autoridade que possui, primariamente, o poder de coação, mas não se submete, ela própria, ao direito de coação do Estado:

O detentor soberano do poder, a quem cumpre coagir todos os que têm autoridade abaixo de si, não pode ter acima de si pessoa que o coaja. Em qualquer instante do funcionamento da coação pública, o estado de coação deve ter termo, para só deixar lugar ao direito de coação, como por outro lado é necessário que num dado momento o direito de coação tenha um fim e fique sozinho em cena o estado de coação. Para todos os outros órgãos do poder público, o estado de coação e o direito de coação coincidem.

[...] Esta impossibilidade de coagir o soberano à observância dos seus deveres de direito público, que imprime caráter à sua posição, ainda se manifesta com relação a outras funções, com relação à dos jurados, por exemplo, os quais têm o dever de julgar segundo a sua consciência.156

A teoria da coação de Jhering é estatal-legalista157 e se fundamenta em uma filosofia do direito substancial que, por sua vez, se sustenta em uma filosofia da consciência. A existência empírica da constituição não implica a instituição simbólica do soberano e da monarquia (diferente do que vimos a partir dos comentários lacanianos sobre A Carta Roubada); não importa a instituição de uma função simbólica do direito público- constitucional.

Nesse sentido, a teoria imperativista da norma tem um fundamento edipiano. A norma jurídica não tem, em Jhering, a função de corte simbólico. Não tem o efeito da negação freudiana, que funciona como condição da simbolização e, pois, de uma positividade da linguagem, positividade jurídica não imediatamente semântica, que permite, autoriza, a existência simbólica do sujeito.

A concepção da norma em Kelsen é que vai nos reportar a uma noção de permissão como autorização e constituição de um espaço simbólico. É a partir daí — e dos impasses constitutivos da própria teoria pura do direito kelseniana — que poderemos aceder a uma concepção radical da permissão como permissão significante... e a-nômica158, constitutiva do campo jurídico como campo discursivo, campo simbólico-e-de-gozo.

156

JHERING, A evolução do Direito, 1956, p. 260-262. 157

BOBBIO, O positivismo jurídico..., 1995, p. 154. 158

Isso coloca o problema das normas permissivas como normas independentes, que se vincula à questão dos direitos humanos e sua dimensão política (FERRAZ JR., Teoria da norma jurídica..., 1978b, p. 59-60). Essa questão será analisada especialmente nos Capítulos 7 e 8.

No documento O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL (páginas 131-136)