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Uma amiga muito querida aqui presente é que diz que eu afirmei uma vez que um tipo que se põe a escrever um livro nunca sabe no que se mete. Pois. Um tipo. Um praticante da escrita, que a trabalha e demora entre uma espécie de tensão objectiva e uma entrega ad libitum às iluminações e aos acasos que o sobressaltam dentro e fora do papel: ele nunca sabe no que se foi meter. Não palpita, não imagina sequer aonde o pode levar a primeira frase do texto (a tal que sempre o decide, como tantas vezes se diz) nem os caprichos que lhe estão reservados em paralelo e ao correr da escrita.

Viver um livro está para mim no amontoado de memórias que o acompanham pela vida fora e não constam dele, não foram escritas. Está no apontar para a perfeição como mais-infinito indispensável ao processo de criar e está, depois, na luta contra as limitações de nós próprios, naquilo que pressentimos e procuramos e quase nunca se ilu- mina. Está, finalmente, nesta configuração solitária de criar em pro- jecto e ao mesmo tempo em disponibilidade quase supersticiosa para o corrigir a cada passo; para o deixar repousar, ganhar distância; para o rasgar se for preciso.

Porque há uma lógica interna em cada aventura que descrevemos, uma segunda natureza que nos ultrapassa e que é a dos personagens, eles mesmos, e das situações em que se enquadram com à-vontade, e com significados cada vez mais amplos e diversificados. Talvez venha daí aquilo a que se chama a unidade duma obra de ficção – é possível que sim. Talvez tudo decorra afinal da luta entre o projecto e a projec-

1 Discurso de José Cardoso Pires lido aquando da entrega do primeiro Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, a 8 de Abril de 1983 [Nota dos organizadores].

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ção que o contraria, à medida que a narração se vai tornando autónoma e ganhando temperatura e tom, voz dela.

Com isto quero eu dizer que o narrador não é mais o omnipotente dos destinos e que a sua relação com o leitor não se reduz a uma cor- respondência linear – longe disso, cada vez mais longe, como sabemos. Por mim sou mesmo tentado a concluir que o livro quando é rico por dentro se escreve a cada leitura, e que é por essa razão que ele se eleva a objecto da Crítica. Mas, ligado a isto, e acima de tudo, uma coisa me parece mais que todas evidente: a consciência de que a Literatura tende a romper a estrutura autoritária e a tornar-se conjectural no seu processo de afirmar, e que nessa evolução está envolvida fatalmente a linguagem constituída. Quando ainda agora falava de acasos e de iluminações queria referir-me a certos momentos que ocorrem nessa abertura da narração, na transfiguração das correspondências aparentes entre o facto e o vocábulo – é isso que faz feliz a mão do escritor.

Seja. Realmente, um tipo sempre que começa um livro nem so- nha no que se meteu. Muitas vezes ele transforma-se numa prova de desespero, na velada acusação de quem o escreve. Noutras numa expe- riência frustrada ou num triunfo a que jamais conseguirá tomar o peso exacto. Dúvida, marés – tanta coisa. Um livro pode acabar com o es- critor, mudar-lhe o rosto de homem e os amigos. Ou ensiná-lo no que ele próprio lhe escreveu. Pode inclusivamente acabar em alegria, como aqui, na companhia de tantos escritores, vejam só.

Aqui entre amigos. Um momento único da minha vida, é como que uma frase feliz que tantos camaradas escreveram comigo e lhe deram um significado maior e mais profundo. Exacto, um significado maior, uma razão mais objectiva e socialmente mais ampla do que um certo livro, certo escritor – é isso que legitima o prémio.

Há mais de um ano, na comunicação que fiz ao nosso II Congresso, procurei incidir exclusivamente sobre a situação do livro e do autor vivo numa sociedade de mercado como a nossa e no ghetto cultural para que todos nós estávamos sendo remetidos. A maior parte dos dados que enumerei mantêm-se ainda como atentados culturais, instituídos e

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consagrados, em particular no que diz respeito à política do Ensino; e mesmo agora nos chegam notícias do Brasil que fazem supor que de fora também o cerco se reforça.

Mas não vou demorar-me nem demorar-vos com problemas que muitos dos presentes conhecem e têm enfrentado com muito mais de- dicação do que eu. Não sublinharei o calculado vício das instituições oficiais que é o de apregoarem o estudo e a difusão da nossa língua de agora com o apagamento dos escritores vivos, nem lembrarei neste país que se afirma virado para a Europa, a aleivosia escarninha com que o paleocapitalismo encara a Literatura ou a agiotagem de letras gordas com que a Banca explora a duvidosa obra de arte como investimento de subcultura.

Não. Não é a altura. Não quero ensombrar estes momentos de fraternidade com injustiças que nos estão muito dentro. Se não resisti a apontar um ou outro eco foi porque a criação de um Prémio surge num enquadramento nacional específico que o torna particularmente justificável e necessário. A idoneidade da Associação que o institui e do júri que o avaliza, a participação das instituições culturais e das empresas que o apoiam, determinam-lhe, espero bem, uma relevância muito especial.

O prémio é alguma coisa que vem sacudir o fatalismo e a tristura duma comarca literária onde cada livro, cada autor, é apresentado à opinião manipulada como pouco mais que um ornato dispensável ou uma arrogância tolerada.

Por isso – muito mais do que por mim – eu agradeço-vos por esta- rem também neste Prémio, certo de que esta iniciativa será uma reali- dade dinamizadora de todos os escritores.