• Nenhum resultado encontrado

Juízo freudiano e ficção jurídica: um sujeito sem-causa e sem-culpa

CLÍNICA, ÉTICA E JURÍDICA NO LAÇO SOCIAL

2.2 SUPEREU FREUDIANO, MAL-ESTAR E A RESPONSABILIDADE DO SUJEITO COMO QUESTIONAMENTO DA RAZÃO JURÍDICA NO LAÇO SOCIAL

2.2.2 Juízo freudiano e ficção jurídica: um sujeito sem-causa e sem-culpa

O sentimento de culpa inconsciente, irredutível ao sentimento de obrigação moral83, se inscreve, mais além do princípio do prazer, como uma resistência à cura84. Ele, como diz Freud, encontra “[...] sua satisfação na doença e se recusa a abandonar a punição do sofrimento”85, questionando o sujeito.

Não se trata do sujeito psicológico, reduzido a uma interioridade, mas o sujeito que se constitui como sujeito dividido e é responsável pelas conseqüências do modo sintomático de se relacionar com o Outro. A culpa freudiana não significa, com efeito, simplesmente um sentimento interior, psicológico, mas aponta para os impasses de um sujeito, que é estruturado por uma culpa, uma dívida (Schuld) — uma dívida não empírica, mas simbólica, impossível de se pagar, porque correlata da alteridade, do mal-estar na relação com o Outro, que o constitui.

O sentimento de culpa freudiano importa, pois, uma ruptura, um corte com a psicologia: “O psicanalista tem sobre a gênese do sentimento de culpa uma opinião diferente da que sustentam [...] [os] psicólogos, mas tampouco a ele resulta fácil explicá-la.”86. A pesquisa freudiana sobre a causa do sentimento de culpa não é redutível, com efeito, à linearidade e objetividade do discurso psicológico, mas aponta para outra-coisa:

Inicialmente, se perguntarmos como uma pessoa vem a ter sentimento de culpa, chegaremos a uma resposta indiscutível: uma pessoa sente-se culpada (os devotos diriam ‘pecadora’) quando faz algo que sabe ser ‘mau’. Reparamos, porém, em quão pouco essa resposta nos diz. Talvez, após certa hesitação, acrescentemos que, mesmo quando uma pessoa não fez realmente uma coisa má, mas apenas identificou em si uma intenção de fazê-la, ela pode encarar-se como culpada. Surge então a questão de saber por que a intenção é considerada equivalente ao ato. Ambos os casos, contudo, pressupõem que já se tenha reconhecido que o que é mau é repreensível, é algo que não deve ser feito. Como se chega a esse julgamento? Podemos rejeitar a existência de uma capacidade original, por assim dizer, natural de distinguir o bom do mau [distinguir o lícito do ilícito, diriam os juristas]. O que é mau, freqüentemente, não é de modo algum o que é prejudicial ou perigoso ao ego; pelo contrário, pode ser algo desejável pelo ego e prazeroso para ele. Aqui, portanto, está em jogo uma influência estranha, que decide o que deve ser chamado de bom ou mau. De uma vez que os próprios sentimentos da pessoa não a conduziriam ao longo desse caminho, ela deve ter um motivo para submeter-se a essa influência estranha. Esse motivo é facilmente descoberto no desamparo e na

83

LACAN, O seminário - livro 7, 1988, p. 11. 84

FREUD, O ego e o id, 1976g, p. 66. 85

Ibid., p. 66. 86

Cf. FREUD, El malestar en la cultura, 1981c, p. 3053, tradução nossa. Consultar também O Mal-estar na Civilização (1974h, p. 147).

dependência dela em relação a outras pessoas, e pode ser mais bem designado como medo da perda de amor.87

O juízo responsável pela oposição entre o bom e o mau não é próprio ao indivíduo. Se é familiar ao sujeito, não deixa de constituir um estranhamento, porque existe uma Coisa real, não simplesmente incognoscível, mas impossível, que o habita. O juízo tem, com efeito, uma coisa estranha, uma causa estranha. Uma causa que é imputável ao sujeito, imputável à posição que o sujeito assume em relação aos outros, ao Outro. Existe aí, pois, um vínculo irredutível à linearidade do tempo e da relação causa-efeito88, que faz ex-sistir o sujeito e o responsabiliza.

Freud relaciona essa causa e esse vínculo ao desamparo e à perda de amor, mas isso não significa entendê-lo nos termos do empirismo ou do psicologismo. Seu desamparo não é a de um ser-psicológico ou de um in-divíduo desde sempre existente, porque ele se fundamenta na defasagem da relação ao Outro, que o constitui. Na relação com o Outro, algo se perde. Trata-se de um objeto radicalmente perdido, impossível de se reencontrar, porque ele nunca esteve lá para se perder89.

O estranho, nessa perda, é que ela só ex-siste como a Coisa impossível de se dizer, no dizer90. Uma coisa estranha: ela não é assimilável à existência empírica de um objeto, que se coloca à percepção imediata de um sujeito psicológico e em correspondência ao seu desejo. Ela, como o Bem Supremo, não existe, senão através dos bens substitutos. Na busca desses bens, algo se re-pete como impossível, constituindo a-Coisa como vazio traumático, vazio real, por efeito de linguagem, efeito significante.

Se há, pois, um registro dos bens, este não é o registro das necessidades. Lacan reporta-se a Bentham e à sua teoria das ficções – uma teoria irredutível ao ilusório91 e, pois, ao que se lhe opõe, ou seja, as elaborações gnoseológicas, próprias à teoria de Parsons —, para mostrar que a questão se situa na repartição do gozo. Essa repartição de gozo inclui a exclusão como algo impossível, como um exterior radical constitutivo da verdade do sujeito, uma verdade sintomática, estruturada como ficção92. Uma repartição que se sustenta na ilusão

87

Cf. FREUD, O mal-estar na civilização, 1974h, p. 147, grifos nossos. 88

Ver Capítulo 1. 89

Cf. LACAN, O seminário - livro 7, 1988, p. 69; 76. 90

Para esse contexto que enlaça a questão do juízo, o dizer e a coisa (das Ding), consultar Villalba (Ética da Psicanálise ...,1989, p. 71).

91

LACAN, O seminário - livro 7, 1988, p. 22. 92

Lacan (Ibid., p. 22): “Fictitious quer dizer fictício, mas no sentido em que já articulei perante vocês que toda verdade tem uma estrutura de ficção.” Isso vale para a verdade das instituições jurídicas e políticas, como se depreende do que diz Miller (A máquina panóptica..., 1996, p. 47), reportando-se a Bentham: “Se não há Natureza legisladora, se o útil é a única instância de legitimação, então é da lei, de sua enunciação efetiva,

das instituições — uma ilusão, uma suposição, uma ficção funcionalmente necessária — e é efeito de um ato de poder. Poder normativo (Foucault)93, poder da/na letra jurídica: “É nisso mesmo que está a essência do direito – repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo.”94. Poder do significante:

A respeito de todas as instituições, mas no que elas têm de fictício, ou seja, profundamente verbal, sua pesquisa consiste não em reduzir a nada todos esses direitos múltiplos, incoerentes, contraditórios cuja jurisprudência inglesa lhes dá o exemplo, mas pelo contrário, a partir do artifício simbólico desses termos, eles também criadores de textos, em ver o que há em tudo isso que possa servir para alguma coisa, isto é, para constituir justamente o objeto da partilha. A longa duração histórica do problema do bem é centrada, no final das contas, na noção de como são criados os bens, dado que se organizam, não a partir de necessidades supostamente naturais e predeterminadas, mas enquanto fornecem matéria para uma repartição, em relação à qual se articula a dialética do bem, na medida em que ela adquire seu sentido efetivo para o homem.95

humana, isto é, de um ato de linguagem que os direitos e deveres nascem. A legislação é, do princípio ao fim, fenômeno de discurso — efeito de discurso.” A propósito do que se está discutindo, lembre-se da função do utilitarismo de Bentham e de sua “[...] teoria das ficções, demonstrando, da linguagem, o valor de uso, ou seja, o estado de utensílio”. (LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 11-12). Isso implica um efeito de linguagem e de ilusão que se pode ler da análise que Bentham faz das instituições jurídicas e políticas na sociedade moderna (Ver BENTHAM, De L`Ontologie..., 1997; GARCIA, B., J. Bentham: política y..., 1988; LAVAL, Jeremy Bentham: le pouvoir…, 1994; LAVAL; CLÉRO, La théorie des fictions..., 1997). Essa problemática benthamiana repercute no conceito de direito de Hart (O conceito de Direito, 1986); sobre a relação entre os dois autores consultar ainda B. Garcia (J. Bentham: política y..., 1988, p. 201-202). C. Garcia (Psicologia jurídica..., 2004, p. 12), quando discute “a norma, a ficção e a dimensão simbólica”, reporta-se à teoria das ficções de Bentham e à concepção kelseniana de norma fundamental como ficção, a partir do texto A função da Constituição e da Teoria Geral das Normas, para observar que “[...] nessa operação levada a efeito por Kelsen, a Psicanálise se encontrava implicada, grandemente implicada!” A definição que Kelsen (Teoria geral das normas, 1986) dá à norma fundamental, entendendo-a como “[...] norma fictícia [...]” (Ibid., p. 328), ou como uma ficção (Ibid., p. 329), pode, com efeito, ser considerada nos termos lacanianos. Segundo Kelsen (Ibid., p. 328-9): “[...] a suposição de uma norma fundamental [...] não contradiz apenas a realidade, porque não existe tal norma como sentido de um real ato de vontade; ela também é contradiória em si mesma, porque descreve a conferição de poder de uma suprema autoridade da Moral ou do Direito, e com isso parte de uma autoridade — com certeza apenas fictícia — que está mais acima dessa autoridade [...] o fundamento de validade das normas instituintes de uma ordem jurídica ou moral positiva [...] a norma fundamental, no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-se não é hipótese — como eu mesmo, acidentalmente, a qualifiquei —, e sim uma ficção que se distingue de uma hipótese pelo fato de que é acompanhada pela consciência [sic] ou, então, deve ser acompanhada, porque a ela não corresponde a realidade [sic] [...]”

A norma fundamental como ficção produz efeitos discursivos, ela funciona. E conforme C. Garcia (Psicologia jurídica..., 2004, p. 11), “Aí entra em jogo a função simbólica, já conhecida nossa, para nos dizer como funciona a ficção”, acrescentando que “[...] em Bentham, passando por Kelsen, a ficção foi convocada como modalidade operatória” (Ibid., p. 13). C. Garcia (Ibid., p. 10; 12, grifos do autor) observa ainda que Kelsen concebe a norma fundamental “[...] como uma ficção, nos termos do filósofo neokantiano Vaihinger [...] para quem uma proposição falsa pode eventualmente ser de utilidade, como uma etapa do pensamento” e que “O termo ficção permite, com efeito, que Kelsen se mantenha logicista sem abandonar a questão da verdade. Ficção em Kelsen sugere algo equivalente a um mito fundador, um lugar vazio sem referente semântico”. Para outra leitura psicanalítica das concepções kelsenianas de Teoria Geral das Normas, consultar Safouan (A palavra ou a morte..., 1993), especialmente o capítulo A Verdade como Norma e a Crença. Por fim, para uma consideração do falso, como constitutivo da verdade, verdade do sujeito, ver a função da implicação material e sua articulação com os discursos jurídico e psicanalítico, que abordamos especialmente no Capítulo 4.

93

Ver Introdução deste trabalho. 94

LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 11. 95

O sujeito que, de boa vontade, deseja cumprir a norma, desconhece — como propõe a análise lacaniana de Antígona96 — que o trágico não está no seu descumprimento, mas, para além, na sujeição ao desejo de um direito absoluto, ele mesmo sem limites, excessivo,

transgressor — um direito impossível97. Trata-se de uma sujeição inconsciente a algo

estranho e constitutivamente familiar, sustentada por um olhar de fora, que se entranha em meu corpo e faz dele uma coisa dócil98. Se essa sujeição, pois, importa uma via de acesso à Coisa, essa é uma via trágica. Uma via que faz do significante um referencial supostamente absoluto e do sujeito um sujeito que ex-siste estranhamente ao cumprimento normativo: cumprindo ou não a lei e o direito supostamente naturais, ele cumpre com sua posição trágica, ele se faz objeto do gozo do Outro.

O trágico da existência do sujeito — que vai até o limite de sua abolição — aponta assim para o real impossível, ao articular os registros do significante e do gozo: “[...] o gozo é exatamente correlativo à forma primeira de entrada em ação do que chamo a marca, o traço unário [...]”99, origem do significante100. O trágico relaciona-se à mortificação... e vivificação do corpo, então implicado na ex-sistência do gozo, através da clivagem significante. Relaciona-se com um vazio, uma perda — o objeto a, para sempre perdido, que cai, tragicamente, do Outro, por efeito da operação significante.101 E nisso há um desconhecimento radical, ou seja, o inconsciente não é simplesmente in-consciente, porque ele importa um saber, um saber de que não se sabe — o inconsciente é efeito d´alíngua: “[...] trata-se de algo que se diz sem que o sujeito se represente nisso nem que nisso diga — nem tampouco saiba o

96

Para o contexto, consultar Lacan (O seminário - livro 7, 1988, especialmente p. 288 e 308, e O seminário - livro 17, 1992, p. 47).

97

Reportando-se a Antígona, Teubner (O Direito como sistema autopoiético, 1993), refere-se ao “[...] paradoxo fundamental do direito” (para apontar o que tematizamos não propriamente como paradoxo, mas como o impossível de se dizer, no dizer, correlato de um furo constitutivo do campo jurídico, isto é, uma antinomia pragmática, ou melhor, uma a-nomia pragmática estruturante do direito, como veremos, sobretudo no Capítulo 5), notando que “[...] há que não reduzir o alcance da crítica de Antígona a um mero conflito entre a lei divina e a lei humana, mas antes entrever nela o insolúvel paradoxo subjacente ao direito, tornado familiar desde a reflexão feita atrás sobre a auto-aplicação da chamada ‘distinção jurídica’: Antígona aplica o código jurídico ao próprio código jurídico quando sustenta que a pretensão de Créon definir aquilo que é legal ou ilegal é, em si mesma, ilegal. Aqui reside justamente a radicalidade da crítica sofocliana: para Antígona, o caráter paradoxal do direito é intrinsecamente inerente ao próprio direito, mais do que (como pretendem os ‘novos’ críticos) o resultado da instrumentalização política da doutrina jurídica ou o reflexo da configuração histórica concreta dos seus ‘dogmas’. Não são as normas individuais, os princípios doutrinais, ou a dogmática jurídica que constituem a fonte das antinomias e paradoxos, mas sim a circunstância de ser o próprio direito que repousa, ele mesmo, sobre um paradoxo”. (Ibid., 1993, p. 14-15, grifo do autor).

98

Isso se reporta, com efeito, à análise foucaultiana do poder disciplinar (Cf. FOUCAULT, Vigiar e punir, 1987). Consultar também o capítulo de nossa Dissertação de Mestrado (RODRIGUES FILHO, A lei e o sujeito de direito..., 1996), com título O Poder e o Sujeito: o Direito Entre-Dois (H. Arendt, Foucault, Lacan: com-senso ou sem-sentido?).

99

LACAN, O seminário - livro 17, 1992, p. 169. 100

Ibid., p. 44. No traço unário, que está na origem do significante, é “[...] que tem origem tudo o que nos interessa, a nós, analistas [...]” (Ibid., p. 44).

101

que diz.”102. Desconhece-se, numa palavra, a divisão do sujeito, “[...] o laço do sujeito com um discurso de onde ele pode ser reprimido, isto é, não saber que esse discurso o implica”103.

Esse desconhecimento está, como vimos, no f-ato do amor ao próximo. E é por isso que a ilusão da perda e recuperação do amor — um amor de suposta existência fática num passado remoto e que supostamente pode ser re-produzido na continuidade do tempo — é uma ilusão que não tem por conseqüência senão situar o sujeito na posição de assujeitado. Não se trata de um assujeitamento que tem causa em um Outro-maligno-por-si-só, o grande responsável pelo que é mau na vida do sujeito, um sujeito egóico: afinal, diz-nos Freud, “[...] o que é mau, freqüentemente [...] pode ser algo desejável pelo ego e prazeroso para ele”104.

O assujeitamento, se é uma questão subjetiva, é porque o sujeito está implicado no

gozo do Outro — que “[...] não é o signo do amor”105, já que o gozo não faz signo, nem

importa a reciprocidade do amor106. Aliás, o amor só pode ex-sistir como efeito de ilusão, suposição, e nisso algo rest-a. O gozo rest-a107 e é por isso que pode produzir uma questão como descontínua em relação à resposta, já que não existe uma resposta necessária108, senão por efeito de uma posição do sujeito, posição de objeto perante o Outro.

Ex-siste, pois, uma questão, uma descontinuidade radical, constitutiva do juízo e da decisão do sujeito. Ela pode ser reportada à descontinuidade na relação prazer-desprazer, uma descontinuidade mais além do princípio do prazer, que corresponde àquela descontinuidade entre causa e efeito, que faz do juízo e do sujeito freudianos um juízo e um sujeito sem-causa.

Sem-causa e sem-culpa. Afinal, a culpa em Freud não se reduz ao remorso. Não se trata da culpa de um pecador pela infringência do que é desde sempre bom, culpa por ter feito “[...] algo que sabe ser ‘mau’”109, porque o mau é mau. Nem se trata de procurar a culpa na relação com a intenção do in-divíduo. Se essa intenção e o ato empírico do pecador são capazes de provocar remorso, é porque eles pressupõem, sustentados no saber moral ou psicológico, a linearidade do tempo (cronológico) e da relação causa-efeito. Eles prescindem — afinal o pecador e o in-divíduo são seres vivos, existentes desde o fato natural do nascimento — do ato de constituição subjetiva.

102

Cf. LACAN, O engano do sujeito suposto saber, 2003b, p. 335. 103

Ibid., p. 335. 104

Para contextualizar ver citação supra de Freud (O mal-estar na civilização, 1974h, p. 147). 105

LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 12. Sobre isso consultar também O Desejo e o Gozo de Gerbase (2006, p. 1)

106

LACAN, O seminário - livro 20, 1985, p. 12. 107

Lacan (ibid., p. 12): “O gozo — gozo do corpo do Outro — resta, ele, uma questão, porque a resposta que ele pode produzir não é necessária.”

108

Ibid., p. 12. 109

Ora, é a implicação nesse ato que o sujeito desconhece, ao associar o sentimento de culpa à necessidade de punição. O sujeito é sem-culpa, porque a necessidade de punição não constitui senão o desconhecimento de um juízo em que o sujeito está implicado. A punição funciona como uma forma neurótica de o des-responsabilizar. O sujeito neurótico goza com a punição, porque ela produz satisfação, ainda que mórbida: ela pressupõe a existência de uma consciência moral, que lhe é anterior e superior, e que por isso mesmo o alivia da responsabilidade por sua existência — cumpridor ou transgressor da norma, o responsável é sempre o Outro (ou porque fez a norma de validade objetiva, ou porque me fez assim, como sou).

Se a obra freudiana e a tragédia de Antígona não se reduzem a uma lição de moral110, é porque o sujeito sem-culpa se insere no impossível de um sujeito que não é transgressor, senão do tempo — um tempo atual, que faz ato e constitui o sujeito como culpado... por um crime que não cometeu: “[...] não faz diferença que se mate o pai ou não — fica-se com um sentimento de culpa do mesmo jeito!”111.

Não se trata, pois, de uma culpa empírica, mas uma culpa sintomática, estruturante da relação do sujeito com o Outro, que importa uma posição de assujeitamento em relação ao Outro112. Há aí, pois, um gozo supereuóico, como efeito de significante, para o qual a saída é na clínica (já que a entrada é na clínica, na análise, entendida como análise de juízo113, análise de discurso), através da mediação da lei — lei constitutivamente a-nômica, que importa a modalização do gozo. Uma saída ética — a ética do bem-dizer, ética do desejo: afinal, meu desejo é o desejo do Outro.

É desse modo que o supereu se articula, desde a clínica, a uma dimensão ética. A seguir analisaremos como isso se situa perante duas questões problemáticas na obra freudiana, relacionadas ao mandamento supereuóico: as questões da origem e do deôntico.

110

LACAN, O seminário - livro 7, 1988, p. 302. 111

Cf. FREUD, O mal-estar na civilização, 1974h, p. 155. 112

E é por isso que, como vimos, não basta, para situar a relação com o superego, colocar a questão moral da renúncia pulsional, já que “[...] a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa [...]” sintomático, que “[...] representa uma grande desvantagem econômica [...]” (Cf. FREUD, O mal-estar na civilização, 1974h, p. 151). E faz gozar, compulsivamente, para além do princípio do prazer: “[...] toda renúncia ao instinto [pulsão] torna-se agora uma fonte dinâmica de consciência, e cada renúncia aumenta a severidade e a intolerância desta última.” (Ibid., p. 152), tornando “A ordem [moral ou jurídica, na modernidade] [...] uma espécie de compulsão a ser repetida [...]” (Ibid., p. 113).

113

LACAN, O seminário - livro 7, 1988, p. 350. Consultar Freud (Projeto para uma Psicologia científica, 1990f, p. 443; A negação, 1976i). Consultar ainda Villalba (Ética da Psicanálise..., 1989, p. 73-74), que se reporta à distinção entre juízo de atribuição e juízo de existência formulada por Freud e às posições do sujeito aí implicadas.