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Kelsen freudiano: a teoria pura do direito como via de gozo e do discurso a-científico

No documento O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL (páginas 136-148)

ATRAVÉS DE KELSEN

3.4.3 Kelsen freudiano: a teoria pura do direito como via de gozo e do discurso a-científico

A teoria pura do direito, de Hans Kelsen, corresponde a uma ruptura com o normativismo moral e com os saberes empíricos, especialmente a sociologia e a psicologia — a psico-sociologia, em suma. Trata-se de uma teoria do direito positivo, mas não de um direito positivo em particular e sim do direito positivo em geral. Kelsen — assim como Freud e Durkheim — pretende fundar um campo, no caso, o campo jurídico como campo científico. O procedimento de purificação não visa à absolutização do direito, mas, ao contrário, tem uma função metodológica: serve à delimitação do conhecimento do jurista, o que coloca uma questão sobre seu objeto — sobre o que é e como é o direito. Kelsen observa que não se trata de uma questão sobre como deve ser o direito, ou sobre como o mesmo deve ser feito, porque

sua questão é científica e não política159 e é por isso que o poder é, como veremos,

constitutivamente poder jurídico160.

O direito positivo, suscetível de conhecimento científico, não constitui uma realidade imediatamente objetiva, porque sua existência depende da mediação de um sujeito. Pode-se dizer que a distinção, feita por Kelsen, entre sentido subjetivo e sentido objetivo de um ato161 tem a ver com a especificação desse sujeito: no primeiro caso, trata-se de qualquer indivíduo, com a qualificação geral do ser humano; no segundo, trata-se do indivíduo relacionado a uma situação e a um lugar especificamente jurídicos. Assim, o sentido subjetivo corresponde ao ato praticado pelo in-divíduo, e o ato com sentido objetivo — do ponto de vista jurídico — é aquele praticado propriamente por um sujeito. É somente esse último ato que tem existência para o direito, porque praticado por um sujeito jurídico que existe na relação com um Outro, com um sistema normativo, uma ordem jurídica diferenciada, não essencial, ou seja, um sujeito que existe para e na ordem jurídica e, portanto, ocupa um lugar simbólico a partir de onde pode agir e decidir com sentido.

Kelsen dá o exemplo da condenação à morte162, que enquanto tal não tem qualquer significado: ela pode corresponder a um mero assassinato ou à execução de uma sentença. Qualquer pessoa pode entender que determinado indivíduo deve ser condenado à morte, mas a concretização do ato por uma organização criminosa, por exemplo, não o qualifica juridicamente. Para o direito, ele tem um sentido apenas subjetivo, mas não objetivo.

159

Sobre esse parágrafo, ver Kelsen (Teoria pura do Direito, 1984, p. 17). 160

Cf. SANTOS, M., Violência simbólica e poder jurídico, 1984, especialmente p. 20-21. 161

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 19. 162

Objetivamente, o ato só caracteriza a execução de uma sentença se praticado por um sujeito juridicamente qualificado e na forma estabelecida pelo direito.

O sentido subjetivo pode corresponder ao sentido objetivo, mas não necessariamente163. Não há relação causal entre os sentidos subjetivo e objetivo164. Não há continuidade porque o que institui o sujeito, autor do sentido objetivo, é uma descontinuidade com os registros psicológico, sociológico e moral. Por isso a questão da correspondência não é sequer uma questão jurídica. Para o direito, o que vale, o que tem existência, o que é simbolicamente primeiro, é o sentido objetivo.

Esse sentido objetivo é um sentido normativo. É a norma jurídica, norma de direito positivo que confere a um determinado ato o sentido de ato jurídico: “‘Norma’ é o sentido de um acto através do qual uma conduta é prescrita, permitida, ou especialmente facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém”165, sendo “[...] diferente do acto de vontade, cujo sentido ela constitui”166. Tal norma, por sua vez, caracteriza um ato que, como diz Kelsen, tem a sua significação jurídica dada por uma outra norma167.

O Direito constitui assim uma ordem jurídica, uma ordem normativa, um sistema de normas. A norma individual de um juiz é norma válida, ou seja, tem o sentido de norma válida porque este sentido é conferido pela lei, cujo sentido normativo é assegurado por uma norma que lhe é superior, a Constituição168. A ordem jurídico-normativa é, desse modo, uma ordem hierárquica que se autoproduz a partir da Constituição, a qual serve de fundamento de validade às demais normas de direito positivo.

Para a teoria kelseniana, “[...] o fundamento de validade de uma norma apenas pode

ser a validade de uma outra norma”169. Por isso, à pergunta sobre “[...] o que é que

fundamenta a unidade de uma pluralidade de normas [...]”170, sobre o que fundamenta a

163

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 19. 164

Kelsen (Ibid., p. 20): “O que transforma este facto num acto jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objectivo que está ligado a esse acto, a significação que ele possui.”

165

Ibid., p. 22. Em outra passagem, Kelsen afirma que “Com o termo ‘norma’ quer-se significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É este o sentido que possuem determinados actos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem. Dizemos que se dirigem intencionalmente à conduta de outrem não só quando, em conformidade com o seu sentido, prescrevem (comandam) essa conduta, mas também quando a permitem e, especialmente, quando conferem o poder de a realizar, isto é, quando a outrem é atribuído um determinado poder, especialmente o poder de ele próprio estabelecer normas”. (Ibid., p. 21; grifos do autor). Para o problema do poder em Kelsen, remetemos a M. Santos (Violência simbólica e poder jurídico, 1984, p. 2 et seq.).

166

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 22. 167 Ibid., p. 20. 168 Ibid., p. 323. 169 Ibid., p. 267. 170

Ibid. Essa questão pode ser reportada ao problema freudiano da unidade social... e jurídica, que vimos a partir dos comentários kelsenianos à teoria de grupo de Freud.

Constituição, Kelsen responde afirmando ser necessário pressupor uma norma fundamental, que empreste àquele que positiva a Constituição o estatuto de uma autoridade constituinte e determine que devemos nos conduzir de acordo com a norma constitucional, independente de

seu conteúdo171. A norma fundamental não é uma norma posta, mas pressuposta. Ao lado

disso, ela tem uma função lógico-transcendental, sendo a condição de possibilidade da ciência do direito, ao constituir o seu objeto como um sistema unitário, sem contradições. A norma fundamental funciona, assim, como princípio metodológico e, ao mesmo tempo, como último fundamento de validade da ordem jurídica172 — um fundamento condicional e hipotético.

Assim ela funda o imperativo hipotético. Na primeira edição da Teoria Pura do Direito, Kelsen não considera a norma jurídica um imperativo, mas um juízo lógico173. Ele entende que o ato da autoridade não constitui um ato psicológico e então a norma jurídica não pode corresponder a um imperativo. Kelsen, ao negar o caráter imperativo da norma, não faz senão confundir a natureza do imperativo com a tese imperativista, que o toma no sentido de uma ordem inscrita em uma relação psicológica do tipo comando-obediência, que envolve uma dupla vontade (como vimos em Jhering). Kelsen, pois, (de)nega o caráter imperativo da norma porque só o consegue conceber psicologicamente.

Desse modo, a afirmação da norma como juízo lógico e a sua negação como imperativo ainda constituem um resquício da tradição jurídica imperativista. A questão kelseniana, neste momento, é ela mesma imperativo-categórica: afinal, ou a norma jurídica é uma ordem (de natureza psicológica), ou ela não é um imperativo... e, pois, é um juízo lógico.

A mudança de posição ocorre com a hipótese kelseniana de um imperativo extrapsicológico174 (metapsicológico, diria Freud), um imperativo despsicologizado. A norma fundamental é, nesse sentido, a origem — não genética, mas suposta — de uma ordem imperativa. Ela autoriza o ato de produção e positivação de normas pela autoridade juridicamente instituída, ou seja, um processo simbólico de autoprodução normativa.

A ordem jurídica não é, assim, uma ordem natural ou interpessoal. Suas normas valem não porque é assim na natureza, mas porque deve ser, conforme o ato de decisão de

171

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 271. 172

Ibid., p. 278-279. Consoante ainda Kelsen (A justiça e o Direito Natural, 1979, p. 172): “[...] a teoria do direito natural é uma teoria jurídica dualista, pois, segundo ela, ao lado do direito positivo há um direito natural”, enquanto “[...] a Teoria Pura do Direito [...] é uma teoria jurídica monista. Segundo ela, só existe um direito: o direito positivo. A norma fundamental definida pela Teoria Pura do Direito não é um direito diferente do direito positivo: ela apenas é o seu fundamento de validade, a condição lógico-transcendental da sua validade e, como tal, não tem qualquer carácter ético-político, mas apenas um carácter teorético- gnoseológico”.

173

Cf. REALE, Filosofia do Direito, 1987, p. 185; 457. 174

uma autoridade competente. A ordem jurídica institui a relação de autoridade que, portanto, não tem existência anterior. A relação de autoridade não tem fundamento na realidade social, moral ou psicológica. Não se trata, por exemplo, de uma ordem edipiano-familiar, porque a autoridade, o pai, não constitui uma realidade biológica, antropológica ou filogenética. Ao contrário, ele é constituído simbolicamente, no campo jurídico, um campo de linguagem. Ninguém é naturalmente ou essencialmente pai. É o direito que institui o lugar de pai e o faz independente de correspondência com a ordem biológica. A instituição desse ou de qualquer outro lugar não garante uma essência, mas apenas inscreve uma função simbólica.

Os termos autoridade e sujeito são eles mesmos funcionais — correspondem à função exercida (pelo sujeito jurídico) na produção normativa: criação ou aplicação do direito175. Em relação ao ato de criação normativa, trata-se de autoridade; em relação ao ato de aplicação, trata-se de sujeito. O mesmo indivíduo, pois, ocupa simultaneamente os lugares de autoridade e sujeito, que apenas têm existência no sistema hierárquico de normas jurídicas. Autoridade e sujeito não são, pois, noções substanciais, mas relativas, e por isso são relativos os atos de criação e aplicação do direito, no processo de produção normativa:

É desacertado distinguir entre actos de criação e actos de aplicação do Direito. Com efeito, se deixarmos de lado os casos-limite — a pressuposição da norma fundamental e a execução do acto coercivo — entre os quais se desenvolve o processo jurídico, todo o acto jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior.176

É nesse contexto, de produção normativa e instituição de relações de autoridade, que a norma jurídica vale e tem existência. A validade, como a identificação freudiana, é assim um conceito relacional e relativo177. Para Kelsen, a norma jurídica vale na relação com as outras normas. Trata-se de uma relação normativa, e não imediatamente semântica. Para existir e ter validade, a norma jurídica deve estar em correspondência com a norma superior que lhe serve de fundamento, mas não se trata de uma correspondência quanto ao conteúdo. Os conteúdos normativos não são logicamente dedutíveis, nem imediatamente evidentes, porque a vontade da autoridade, não psicológica, mas normativa, é constitutiva da norma jurídica. As normas de direito positivo são normas postas — postas por decisão de uma autoridade. O sistema normativo não é um sistema estático, mas dinâmico. A norma superior, desde a norma fundamental, não fornece, pois, o conteúdo de validade, e sim o fundamento de

175

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 324 et seq. 176

Ibid., p. 325. 177

validade, inscrevendo, conforme vimos, uma permissão ou autorização, que institui a autoridade e lhe atribui poder para produzir normas jurídicas, de acordo com a forma e as regras procedimentais que estabelece, independente do conteúdo178.

A vinculação que a norma jurídica estabelece não é uma vinculação necessária ou natural, mas simbólica. Ela corresponde à dimensão simbólica, que vimos em relação ao aparelho psíquico freudiano, um aparelho de linguagem, e, enquanto tal, tem valor constitutivo: é simbolicamente primeira. Trata-se de uma vinculação normativa, posta pela autoridade, e por isso mesmo não é descrita conforme o princípio da causalidade, mas segundo o princípio da imputação. Nos dois casos, a descrição científica se dá através de um juízo hipotético. Mas, consoante Kelsen, enquanto as ciências causais formulam as suas proposições segundo o esquema se A é, então é B, as proposições da ciência do direito, que descrevem as normas jurídicas, se apresentam na forma se A é, então B deve ser179. A relação entre o antecedente e o conseqüente não é, segundo Kelsen, necessária, justamente porque o princípio de imputação se reporta a uma decisão da autoridade juridicamente instituída.

A ordem jurídica, ao regular as condutas, não o faz, portanto, de modo categórico. O ato de mediação e decisão da autoridade, a separação entre o que é (na realidade ou nos sistemas morais) e o que juridicamente deve ser, produzem uma modalização do imperativo, que se torna então hipotético e condicional. A norma jurídica institui os sujeitos em uma relação jurídica — daí se falar em sujeito ativo e sujeito passivo —, vinculando-os de diferentes modos, por meio dos operadores ou modais deônticos (proibido, obrigado, permitido). O conteúdo jurídico- normativo não é necessário ou evidente, mas, ao contrário, vale porque mediado pelo ato da autoridade que vincula o antecedente e o conseqüente da norma jurídica expresso pela cópula dever ser na proposição jurídica da ciência do direito180. Tal dever ser não é absoluto, mas tem uma forma condicional181: se ocorrerem as situações previstas, então deve ser a conseqüência estabelecida. A norma jurídica não vale, com efeito, incondicionalmente, mas nas situações prescritas. Ela não diz respeito senão ao sujeito que ocupa lugares simbólicos e por isso mesmo pode integrar relações jurídicas, que são constitutivamente relações de direito público, postas, instituídas por um ato de autoridade (pública), independente de se tratar, na terminologia da ciência tradicional, de relações públicas ou privadas182.

178

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 271. 179

Ibid., p. 137-138. 180

Ibid., p. 121-121. Consultar ainda VILANOVA, As estruturas lógicas e ..., 1977, p. 65. 181

Cf. FERRAZ JR., Introdução ao estudo do Direito..., 1988, p. 114. 182

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 231; 234. Kelsen (Ibid., p. 380), que nesse ponto se aproxima das premissas de Durkheim (Capítulo 1, seção 1.2), contesta, como ideológica, a distinção entre direito público e direito privado que “[...] não tem qualquer fundamento no Direito positivo [...]”. (Ibid., p. 381).

O sujeito, pois, não existe como essência ou pessoa (moral, social ou psicológica), mas na relação jurídica e para a relação jurídica — uma relação “[...] entre dois indivíduos, melhor, entre a conduta de dois indivíduos determinada por normas jurídicas [...]”183. A pessoa é constitutivamente pessoa jurídica184. O sujeito de direito é sujeito relacional, constituído na relação jurídica, sem existência prévia185. Desse modo, por exemplo, o sujeito não é comerciante, pai ou criminoso, mas pode ocupar esses lugares e outros, em determinadas situações e sob as condições especificadas pelo direito. A ordem jurídica nesse sentido é uma ordem moderna: ela faz corte com a essência, para que o sujeito — sujeito jurídico, do mesmo modo que o sujeito freudiano e durkheimiano — possa existir e funcionar em diferentes lugares e âmbitos normativos.

A ordem jurídica para Kelsen não é, pois, imperativista como o é, por exemplo, para Jhering. Ela não se refere a um comando de uma pessoa dirigido imediatamente a outra pessoa objeto da norma. A norma jurídica, na teoria kelseniana, não normatiza a vida da pessoa em sua essência, mas regula a conduta do indivíduo em relação a outro. Ou melhor, regula a conduta do sujeito. Por isso, a menção à reciprocidade186 da conduta não faz da relação jurídica uma relação simplesmente dual, mas requer a mediação, a instituição de um terceiro. Isso devido àquela alteridade constitutiva do sujeito: ele é instituído na relação com o Outro; o sujeito jurídico é instituído na relação com uma autoridade.

Isso não significa afirmar a existência de uma autoridade soberana por natureza e, pois, anterior ao direito, como em Jhering, já que ela ocupa um lugar e exerce uma função simbólica, jurídica — em um sistema jurídico. Nesse sentido, é que para Kelsen a ordem soberana, estatal, é ordem jurídica.

O dualismo entre o Estado e o direito da doutrina tradicional, correlato da oposição entre direito público e direito privado187, pressupõe que o Estado é anterior ao direito, ou seja, uma entidade metajurídica. Isso, conforme Kelsen, atende a uma função ideológica que é a

183

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 234. Ou como diz Ferraz Jr. (Introdução ao estudo do Direito..., 1988, p. 157): “Kelsen [...] diz-nos que relações jurídicas não são relações entre seres humanos concretos, entre pessoas no sentido do senso comum, mas entre normas [...]” E adiante, ainda se referindo a Kelsen (Ibid., p. 157): “[...] o que chamamos de relação jurídica nada mais é do que relação entre normas (normas que qualificam os sujeitos, ativo e passivo, normas que lhes prescrevem condutas).”

184

Assim, segundo Kelsen (Teoria pura do Direito, 1984, p. 244): “[...] a chamada pessoa física é uma pessoa jurídica.”

185

Ibid., p. 238. Kelsen (Ibid., p. 238) contesta a ciência jurídica tradicional, que entende o conceito de sujeito jurídico, como um conceito personalístico, como “[...] representação ou idéia de uma essência ou entidade jurídica independente da ordem jurídica, de uma subjetividade jurídica, que, por assim dizer, preexiste ao direito, quer no indivíduo, quer em algo coletivo, e que o mesmo Direito apenas tem de reconhecer e necessariamente deve reconhecer se não quer perder o seu caráter de ‘Direito’”.

186

Ibid., p. 59. A expressão, como vimos, é recusada por Lacan, em razão da alteridade constitutiva do sujeito. 187

justificação do Estado pelo direito. A ordem jurídica, com efeito, é entendida como essencialmente diferente da natureza política do Estado. O poder estatal pode, desse modo, criar o direito e então se vincular a ele, pressupondo-o justo188.

O conhecimento científico requer, ao contrário, a coincidência entre o Estado e o direito189. A vinculação funcional do Estado e do direito pode ser entendida de dois modos, um mais restrito e outro mais amplo, que se correlacionam. De um lado, a organização estatal, enquanto pessoa agente, constitui uma organização burocrática (Weber) que se integra de funcionários e opera, funciona, segundo o princípio da divisão do trabalho (Durkheim), para criação e aplicação das normas jurídicas de modo centralizado. De outro lado, o Estado pode ser entendido como personificação não simplesmente de uma parte da ordem jurídica, mas da

ordem jurídica total190. Ora, esses dois modos estão relacionados entre si, porque

funcionalmente o Estado é, em qualquer caso, uma ordem simbólica de produção de direito. Uma entidade que não é anterior ao direito, já que o direito se autoproduz. A ordem jurídica é, pois, como dissemos, ordem estatal.

A dimensão política é, assim, constitutiva do direito, ou seja, para a teoria pura do direito, o poder é constitutivamente poder jurídico. O ato de poder, segundo Kelsen, é, por excelência, o ato de coação. A ordem jurídica, enquanto ordem estatal, é uma ordem coativa centralizada.

Para Kelsen — e ao contrário do que ocorre com Jhering — a norma jurídica e a coação não estão separadas. A norma que prescreve uma conduta e a norma que estatui uma sanção estão articuladas. A conduta, aliás, só pode ser considerada juridicamente prescrita se o pressuposto da sanção for a conduta oposta191. Por isso, somente a norma que estabelece a sanção é, segundo Kelsen, uma norma autônoma, tendo a outra uma função secundária.

Kelsen identifica vários casos de normas não autônomas192 e afirma que elas são válidas na medida em que se ligam à norma que estabelece um ato de coerção, ou seja, na medida em que funcionam como condição ou pressuposto da coação. As normas não autônomas são válidas no contexto de uma ordem coativa — elas valem enquanto se inserem no funcionamento da ordem jurídica entendida como ordem coativa193.

188

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 384. 189

Isso repercute na questão da soberania, conforme Solon (Teoria da Soberania como problema... 1997, p. 53- 54): “Tendo demonstrado que a relação entre Direito e Estado, o suplício da Teoria do Estado moderno, só poderia ser de identidade, Kelsen liquidou o problema de se saber se a soberania seria uma propriedade do Direito ou do Estado: o Estado só é soberano enquanto ordem jurídica.”

190

KELSEN, Teoria pura do Direito, 1984, p. 394. 191 Ibid,, p. 60; 88. 192 Ibid., p. 88-92. 193 Ibid., p. 92.

Mas também sob esse aspecto não se trata de uma ordem imperativista194. A ordem coativa não o é porque obriga ou força a conduta que é conforme ao direito. Isso significaria pressupor que a conduta fática contrária ao prescrito é não direito — ou seja, está fora do direito, em contradição com o direito — e que a ordem jurídica é uma ordem incondicional, sustentada em um valor metajurídico, absoluto. Ora, o ilícito para Kelsen também é jurídico e mesmo a condição do jurídico. A sua ocorrência não constitui um ato imoral, mas tão somente implica uma conseqüência estabelecida pela ordem jurídica, enquanto ordem condicional — a sanção195.

O ato coativo caracteriza uma sanção porque ele constitui reação a uma conduta que é tida como indesejável pela ordem jurídica196. Não se trata de uma conduta absolutamente indesejável, já que só o é através da mediação de um ato de decisão da autoridade, suscetível de modificação. Kelsen, aliás, admite que o estabelecimento de sanções pode motivar os

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