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Labeling Approach: a compreensão do desvio a partir da reação do social

CAPÍTULO II – UM APORTE CRIMINOLÓGICO NA COMPREENSÃO DA

2.5 Labeling Approach: a compreensão do desvio a partir da reação do social

A reflexão empreendida neste capítulo ─ reafirma-se ─ visa percorrer os caminhos traçados pela criminologia até alcançar o atual estágio de compreensão da criminalidade, inclusive, da criminalidade que tem como vítima a mulher. A despeito de serem relevantes todas as teorias aqui estudadas, não se pode olvidar que nessa trajetória alguns tópicos são dignos de maior destaque e, dentre eles, é notadamente importante o enfoque do etiquetamento ou labeling approach. Assim, como a teoria da anomia de Dukheim foi destacada como uma virada no pensamento criminológico, porque superou o enfoque no autor do delito ou desvio, passando a focar a estrutura social considerada defeituosa como causa do desvio, o

labelling approach também representa uma grande ruptura, pois, se até então, quer

com enfoque no autor, quer nas estruturas sociais, o objetivo da criminologia era circunscrito à etiologia, isto é, era voltado exclusivamente para a compreensão das causas do crime, com o enfoque sociológico do etiquetamento, a compreensão se

volta também para a reação social.191

Em outras palavras, para a teoria do etiquetamento192 ou definicionista,

diferentemente de todas as teorias que a antecederam, mais que as causas da

190 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 61.

191 LARRAURI, Elena. La Herencia de la criminología crítica. 1. ed. Madrid: Siglo XXI, 1991, p. 28. 192 Alguns autores afirmam não se tratar de uma teoria do comportamento delitivo, mas apenas uma

mudança do enfoque, pelo qual se busca a importância da reação para a construção do conceito de criminoso.

criminalidade interessa o processo de criminalização, ou seja, o caminho percorrido

para que uma pessoa possa ser considerada ou etiquetada como criminosa.193

Essa teoria fundamenta-se, principalmente,194 no interacionismo simbólico,

linha de pensamento sociológico que concebe um indivíduo numa relação de inter -

ação com o meio. Nesse modo de compreensão, o indivíduo é ativo frente ao

ambiente, que é modelável pelo mesmo indivíduo, mas este também é flexível para

adaptar-se ao ambiente, constituindo-se, pois, uma relação de mútua influência.195

Logo, a atuação de um indivíduo não pode ser analisada objetivamente, pois para se entender a ação, é necessário compreender as condições sociais em que se atua, uma vez que essa atuação ocorre em razão da situação e de como se

interpreta essa situação.196

Essa linha de pensamento, também produto da Escola de Chicago, sobre a qual já se falou, defende que não se pode compreender a criminalidade sem estudar o sistema penal, que a define e reage contra ela; desde a definição abstrata do delito pelo direito penal até a ação das instâncias oficiais que aplicam essas normas penais, uma vez que o status de criminoso é decorrente da atuação dessas

instâncias.197

Assim, perguntas que orientam a investigação criminológica na perspectiva do

labeling são: “quem é definido como desviante? que efeito decorre desta definição

sobre o indivíduo? em que condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma

definição? E, enfim, quem define quem?”198

Ao propor perguntas como essas o labeling approach supera o paradigma etiológico tradicional, pois busca sinalizar para o fato de que o crime não é ontológico, como um objeto físico, mas resultado de um processo de interação social

193 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 20.

194 Também a etnometodologia integra o horizonte sociológico em que o labeling approach se situa. Essa linha de pensamento sociológico investiga o modo como o conhecimento é produzido pelo senso comum , enfatizando o caráter ativo e racional da conduta humana. Dicionário do

pensamento social do Século XX / editado por William Outhwaite, Tom Bottomore; com a

consultoria de Ernest Gellner, Rpobert Nisbet, Alain Touraine; editoria da versão brasileira, Renato Lessa, Wanderley Guilherme dos Santos; tradução de Eduardo Francisco Alves, Álvaro Carbral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996 , p. 284-285.

195 RAMIREZ, Juan Bustos. Criminologia y evolución de las ideas sociales. In: El pensamiento

criminológico. Vol. 1, pp. 27-48. Bogotá: Temis, 1983, p. 40.

196 LARRAURI, Elena. La Herencia de la criminología crítica. 1. ed. Madrid: Siglo XXI, 1991, p. 25. 197 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia

do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 86.

198 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 88.

que define e seleciona as condutas que serão etiquetadas como tal. E é esse processo que passa a interessar à investigação. Logo, é a criminalização, e não a criminalidade e o criminoso, que se torna foco de estudo nessa teoria, o que implica não mais se centrar na investigação dos motivos pelos quais as pessoas cometem crimes, mas sim os motivos por que algumas pessoas recebem o rótulo de criminoso.

A compreensão mais apurada do labeling pressupõe a distinção entre a delinquência primária e secundária, pois esse enfoque evidencia, sobretudo, como a punição ou a reação a um primeiro comportamento desviante gera uma mudança na identidade do “etiquetado”, que se sente impulsionado a cumprir o papel de

criminoso, que a reação social lhe atribuiu.199

Essas são, pois, as primeiras compreensões apresentadas pelos teóricos do

labeling, dentre os quais se destacam os norte-americanos Howard Becker e

Lemert, a elas, no entanto, acresceram-se outras,200 decorrentes, das pesquisas

sobre a criminalidade de colarinho branco, empreendidas também nos Estados Unidos, sobretudo, por Sutherland. Essas outras investigações revelavam grande discrepância entre as estatísticas oficiais da criminalidade e a criminalidade oculta,

sobretudo, entre as pessoas em posições sociais de prestígio,201 provocando os

teóricos do labeling a fazerem também uma correção no conceito de criminalidade. As cifras negras, isto é, a diferença quantitativa entre volume da criminalidade real e a criminalidade que integra as estatísticas oficiais, impuseram corrigir a concepção do senso comum de que a criminalidade é um comportamento próprio de uma minoria integrante de estratos sociais inferiores, concepção essa, própria da

ideologia da defesa social202 e que fora até então, de certo modo, ratificada pelas

teorias sociológicas.

199 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 89. 200 Dentre essas compreensões, destaca-se a decorrente da analogia feita por Fritz Sack , na

Alemanha, o qual compara a distinção entre a criminalidade oculta e oficial com a distinção estabelecida na linguística por Ferdinand Saussure entre langue e parole e também com distinção estabelecida Chomski entre gramática tradicional e gramática gerativa, ambas distinções consideradas fundamentais para a superação da ideia de língua uniforme e do estudo normativista da linguagem.

201 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 65. 202 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia

Ora, se cometendo as mesmas ações, uns são apanhados e, consequentemente, etiquetados como criminosos, enquanto outros não recebem qualquer rótulo, nem integram as estatísticas da criminalidade, uma conclusão se torna possível: o desvio ou delito não é qualidade intrínseca do ato realizado, mas uma consequência da aplicação das regras e das normas contra o autor. O

criminoso, por sua vez, é aquele definido como tal.203

Sob essa ótica, o processo de criminalização seria orientado por mecanismos de seleção e de discriminação operados por aqueles a quem se concede o poder e controle do sistema penal: policiais, promotores e juízes, que seriam os verdadeiros produtores da criminalidade, tendo em vista que ela se constituiria no mero processo

de etiquetamento.204

Há quase uma unanimidade quanto à contribuição dessa teoria à superação da ideia de que delinquentes ou desviantes formem uma categoria humana diferenciada, determinada por fatores bioantropológicos, psicológicos ou mesmo de socialização. De fato, é incontestável a afirmação de que a tutela penal seja influenciada por razões de ordem econômica, social e ideológicas. A atividade legislativa está sujeita a toda ordem de pressão, acordos, pactos, concessões mútuas etc. Também polícia, ministério público e tribunais atuam dentro de um

contexto político, econômico e social, do qual não conseguem se desvencilhar,205

logo suas ações, como bem explica o próprio interacionismo simbólico, sofrem influência desse contexto.

Do ponto de vista da ideologia da defesa social, com essa teoria fica bastante fragilizado o princípio da igualdade, pelo qual a lei penal é igual para todos, pois o reconhecimento da multirreferida seletividade sinaliza, inversamente, para uma desigualdade, que será amplamente destacada pela criminologia crítica.

As críticas ao labeling approach, diferentemente de sua mencionada contribuição, não têm um caráter homogêneo, antes são muitas e também variadas quanto ao fundamento, logo não se pode, nem se pretende aqui abarcá-las. Uma crítica mais comum é a de que o enfoque no etiquetamento não enfrenta o conteúdo da criminalidade, apenas afirmando ser construída a partir da reação social. Como

203 Cf. LARRAURI, Elena. La Herencia de la criminología crítica. 1. ed. Madrid: Siglo XXI, 1991, p. 29.

204 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 111.

205 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 116.

destaca Baratta, essa reação é provocada por um comportamento concreto que perturba, o qual não é enfrentado pela teoria, que não explica o porquê de um

comportamento, e não outro, ser criminalizado.206 Muñoz Conde e Hassemer

também fazem essa crítica, afirmando que, “se a delinquência é o resultado de uma definição, o primeiro que deveria ser conhecido é com base em que pressupostos se

define alguém como delinquente”.207

Assim, ao descuidar da desviação primária, a teoria do etiquetamento parece afirmar que toda delinquência é ocasionada pelo controle social, sendo construída,

exclusivamente na ação do sistema penal. 208 Em favor do labeling, poder-se-ia

argumentar quanto a essa crítica, apenas o fato de que não se pretende uma teoria, mas apenas um enfoque, ou melhor, a indicação de outro enfoque na compreensão da criminalidade, sem pretensões de apresentar uma explicação mais abrangente.

Sob o prisma mais preciso dos penalistas, por exemplo, afirma-se que o

labeling approach “adoece de falta de conexão com a realidade, interpretando mal

as condições da Administração da Justiça penal.”209 Para fundamentar essa

crítica210, afirma-se que, se a delinquência fosse apenas resultado de uma definição,

a cifra negra não poderia ocorrer, pois só é possível identificar essa criminalidade não conhecida pelas instâncias de controle, porque ela se constitui como uma

realidade anterior ou exterior ao ato da definição.211

Na perspectiva da criminologia crítica, como se vê adiante, aponta-se como limite do enfoque no etiquetamento o fato de, apesar de indicar atividade política representada pela seletividade, não associá-la à estrutura econômica das relações de produção e distribuição. Em outras palavras, os teóricos do labeling descrevem o modo como opera o sistema penal, demonstrando os mecanismos de seleção e

206 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 115. 207 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2008, p.116-117.

208 Cf. LARRAURI, Elena. La Herencia de la criminología crítica. 1. ed. Madrid: Siglo XXI, 1991, p. 108.

209 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 117.

210 Essa crítica atinge diretamente à proposição de Fritz Sack, para o qual “a criminalidade, como a realidade social, não é uma entidade preconstituída em relação à atividade dos juízes, mas uma qualidade atribuída por estes últimos a determinados indivíduos”. BARATTA, Alessandro.

Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad.

Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 107.

211 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 118.

estigmatização, mas não atrelam isso às desigualdades sociais, nem assumem uma posição valorativa ou política diante desse modus operandi.