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Não há dúvidas de que o controle que o Poder Judiciário pode exercer sobre a Administração Pública é bastante amplo, diante do que já ficou assentado quando se tratou do modelo de controle jurisdicional adotado no Brasil, adepto do sistema de jurisdição una.

Entretanto, esse controle não é absoluto, uma vez que está sujeito a limites de ordem constitucional, relacionados, sobretudo, ao princípio da separação de poderes9, já tendo em vista, inclusive, a necessária manutenção da conformidade político-institucional existente.

Com efeito, não se quer dizer com isso que existem dois tipos de atos praticados pelos entes estatais, a saber, os que estão sujeitos ao controle jurisdicional e os que a ele não se submetem. Não se pode admitir tal hipótese, uma vez que em um Estado de Direito não pode haver ato livre de qualquer tipo de controle. Nesse sentido, é a lição doutrinária de José dos Santos Carvalho Filho (2012, p. 1005-1006):

Há alguns atos emanados do Poder Público que, como reconhecem os estudiosos, sofrem um controle especial em razão de suas peculiaridades. Observe-se que controle especial não é o mesmo que ausência de controle. No regime republicano democrático, onde desponta a proteção dos direitos e garantias fundamentais, não se pode conceber atos insuscetíveis a controle. Nenhum Poder ou função são tão absolutos que possam estar infensos ao controle judicial. A questão é apenas a da especificidade do controle.

Assim, tem-se que os atos do Poder Público sempre estão submetidos a controle. Ocorre que o controle jurisdicional exercido sobre determinados atos reveste-se de caráter específico, ante as peculiaridades apresentadas por esses mesmos atos. Dentre eles, convém destacar os atos políticos, os atos legislativos típicos e os atos “interna corporis”.

Em relação aos atos políticos, o controle jurisdicional sobre eles exercido deve observar a liberdade de conformação do administrador público, a quem compete, em caráter privativo, desenvolver, aplicar e controlar as políticas públicas contidas no plano de governo. Tais atos não podem ser confundidos com os de natureza meramente administrativa, uma vez que estes não abrigam qualquer decisão de natureza fundamental aos rumos da gestão governamental.

Nessa senda, registrem-se as considerações de Hely Lopes Meirelles (2009, p. 719-720),

9 Esse princípio encontra-se expresso no texto da vigente Carta Magna, conforme o disposto em seu artigo 2º, com a seguinte redação: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Como se observa, a interpretação dos dispositivos constitucionais deve estar atenta à independência e à harmonia que deve existir entre os poderes republicanos, sob pena de haver indesejável subversão da lógica do funcionamento do sistema de freios e contrapesos.

nestes termos:

A conceituação dos chamados atos políticos tem desafiado a argúcia dos publicistas, sem chegarem a uma definição coincidente e satisfatória. A dificuldade está em que, a nosso ver, não há uma categoria de atos políticos, como entidade ontológica autônoma na escala dos atos estatais, nem há um órgão ou Poder que os pratique com privatividade. Todos os Poderes de Estado são autorizados constitucionalmente a praticar determinados atos, em determinadas circunstâncias, com fundamento político. Nesse sentido, pratica ato político o Executivo quando veta projeto de lei, quando nomeia Ministro de Estado, quando concede indulto; pratica-o o Legislativo quando rejeita veto, quando aprova contas, quando cassa mandato; pratica-o o Judiciário quando propõe a criação de tribunais inferiores, quando escolhe advogado e membro do Ministério Público para compor o quinto constitucional. Em todos esses exemplos são as conveniências do Estado que comandam o ato e infundem- lhe caráter político que o torna insuscetível de controle judicial quanto à valoração de seus motivos.

Mas, como ninguém pode contrariar a Constituição e essa mesma Constituição veda se exclua da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, individual ou coletivo (art. 5º, XXXV), segue-se que nenhum ato do Poder Público deixará de ser examinado pela Justiça quando argüido de inconstitucional ou de lesivo de direito subjetivo de alguém. Não basta a simples alegação de que se trata de ato político para tolher o controle judicial, pois será sempre necessário que a própria Justiça verifique a natureza do ato e suas conseqüências perante o direito individual do postulante. O que se nega ao Poder Judiciário é, depois de ter verificado a natureza e os fundamentos políticos do ato, adentrar seu conteúdo e valorar seus motivos.

Em relação aos atos legislativos típicos (leis em sentido formal e material), o Poder Judiciário exerce sobre eles um controle jurisdicional pautado pelo exame não da legalidade, como se observa no controle exercido pelo referido poder face aos atos administrativos comuns, mas sim da conformidade constitucional, uma vez que as leis encontram seu fundamento de validade diretamente da Constituição.

Ademais, tal controle jurisdicional de constitucionalidade não pode ser realizado de qualquer forma, tendo em vista que o ordenamento jurídico coloca à disposição dos órgãos julgadores os sistemas de controle difuso em concreto e de controle concentrado em abstrato, este último por meio de ações próprias, devidamente regulamentadas em leis específicas10.

Sobre o assunto, veja-se como se posiciona Hely Lopes Meirelles (2009, p. 720-721):

[…] Os atos legislativos, ou seja, as leis propriamente ditas (normas em sentido formal e material), não ficam sujeitas à anulação judicial pelos meios processuais comum, mas sim pela via especial da ação direta de inconstitucionalidade e, agora, também pela ação

declaratória de constitucionalidade, tanto para a lei em tese como para os demais atos normativos. E assim é porque a lei em tese e os atos normativos, enquanto regras gerais e

abstratas, não atingem os direitos individuais e permanecem inatacáveis por ações ordinárias ou, mesmo, por mandado de segurança. Somente pela via constitucional da representação de inconstitucionalidade (art.102, I, “a”) e através do processo especial estabelecido na Lei 9.868, de 10.11.99 (v. Item 6.4.8), promovido pelas pessoas e órgãos

10 Nesse sentido, é válida a consulta ao teor da Lei nº 9.868/1999 e da Lei nº 9.882/1999, que versam, a primeira, sobre a disciplina da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade e, a segunda, sobre a disciplina da ação de descumprimento de preceito fundamental.

indicados (art. 103), é que o STF pode declarar a inconstitucionalidade da lei em tese ou de qualquer outro ato normativo […].

[…]

As leis e decretos de efeitos concretos, entretanto, podem ser invalidados em procedimentos comuns, em mandado de segurança ou em ação popular, porque já trazem em si os resultados administrativos objetivados. Não são atos normativos gerais, mas, sim, deliberações individualizadas revestindo a forma anômala de lei ou decreto. Tais são, p. ex., as leis que criam Município, as que extinguem vantagens dos servidores públicos, as que concedem anistia fiscal e outras semelhantes. Assim também os decretos de desapropriação, de nomeação, de autorização etc.

Por seu turno, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2005, p. 654-655) faz interessante observação acerca dos atos normativos do Poder Executivo, nos seguintes termos:

Os atos normativos do Poder Executivo, como Regulamentos, Resoluções, Portarias, não podem ser revalidados pelo Judiciário a não ser por via de ação direta de inconstitucionalidade, cujo julgamento é de competência do STF, quando se tratar de lei ou ato normativo federal ou estadual que contrarie a Constituição Federal (art. 102, I, a); e do Tribunal de Justiça, quando se tratar de lei ou ato normativo estadual ou municipal que contrarie a Constituição do estado (art. 74, inciso VI, da Constituição Paulista).

(grifo da autora)

No tocante aos atos “interna corporis”, o Poder Judiciário encontra severas limitações ao exercício de seu mister, uma vez que tais atos dizem respeito à atividade legislativa em si ou ao processo de funcionamento dos órgãos legislativos, matérias que sugerem decisões que só podem ser tomadas por quem integra o Poder Legislativo, não podendo determinado órgão jurisdicional, sob pena de grave ofensa ao princípio da separação de poderes, substituir-se ao legislador.

Dessa forma, o controle jurisdicional que o Poder Judiciário está autorizado a exercer sobre os atos “interna corporis” limita-se ao exame de meras formalidades, bem como da legalidade procedimental ou de eventual conformidade com a Constituição, não competindo ao órgão judicante o papel de se atribuir a vontade legislativa pertinente ao desenvolvimento das atividades legislativas.

Nessa linha, cumpre registrar as considerações de Hely Lopes Meirelles (2009, p. 722), segundo o qual:

Interna corporis são só aquelas questões ou assuntos que entendem direta e imediatamente

com a economia da corporação legislativa, com seus privilégios e com a formação ideológica da lei, que, por sua própria natureza, são reservados à exclusiva apreciação e deliberação do Plenário da Câmara. Tais são os atos de escolha da Mesa (eleições internas), os de verificação de poderes e incompatibilidades de seus membros (cassação de mandatos, concessão de licenças etc.) e os de utilização de suas prerrogativas institucionais (modo de funcionamento da Câmara, elaboração de regimento, constituição de comissões, organização de serviços auxiliares etc.) e a valoração das votações.

Daí não se conclua que tais assuntos afastam, por si sós, a revisão judicial. Não é assim. O que a Justiça não pode é substituir a deliberação da Câmara por um pronunciamento judicial sobre o que é da exclusiva competência discricionária do Plenário, da Mesa ou da Presidência. Mas pode confrontar sempre o ato praticado com as prescrições

constitucionais, legais ou regimentais que estabeleçam condições, forma ou rito para seu cometimento.

Ainda sobre o assunto, impende transcrever a seguinte passagem da lavra de Fernanda Marinela (2010, p. 947-948), nestes termos:

Atos interna corporis são atos praticados pelos Poderes Judiciário e Legislativo, dentro do limite de suas competências, para instituição de normas internas.

Consiste no reconhecimento da soberania dos pronunciamentos, deliberações e atuação dos Poderes Legislativo e Judiciário, na esfera de sua exclusiva competência discricionária, ressalvadas, para efeito de apreciação judicial, apenas as hipóteses de lesão ou ameaça a direito constitucionalmente assegurada.

[…]

O STF já deixou bastante claro que a tese da incognoscibilidade da matéria não se aplica quando se diz respeito à alegação de ofensa a direito ou garantia constitucional, o que, por si só, afasta o caráter interna corporis do comportamento. A hipótese é a mesma quando se está diante de matéria que ofenda direitos assegurados pela CF na iminência de serem transgredidos. Ou seja, só se pode falar de ato interna corporis, quando este se revela essencialmente insindicável, se presentes aspectos discricionários concernentes às questões políticas.

Resta evidenciado, dessa forma, que o controle jurisdicional exercido pelo Poder Judiciário sobre os atos que emanam do Poder Público não obedece a uma fórmula universal, pois é necessário que o órgão judicante examine a verdadeira natureza jurídica do ato, com o fito de identificar se as suas peculiaridades admitem o exercício de um controle comum ou de um controle especial.