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O livro didático de língua portuguesa da EJA e o seu lócus didático-pedagógico

Esquema 4 Esquema referente ao discurso epistemológico

3.2 O livro didático de língua portuguesa da EJA e o seu lócus didático-pedagógico

A discussão desta seção se alinha ao entendimento de Albuquerque (2010) que fala sobre a escola como “[...] um espaço de produção do conhecimento [...]” e neste contexto privilegiado, educandos e professores “[...] como produtores desse conhecimento”. Concebendo a disciplina escolar, na condição de uma prática didático-pedagógica goza de “[...] uma certa autonomia [...]” considerando-a constituída e vinculada não exclusivamente a partir da ciência mãe, mas, igualmente constituída, através dos “[...] saberes trazidos pelos sujeitos sociais que compõem a escola [...]”. Assim, como outros saberes oriundos de distintas fontes, constituem “[...] o que se costuma denominar saber escolar, ou seja, aquele produzido na escola pelos sujeitos que a compõem, direta ou indiretamente”. A partir desta compreensão ampla e complexa em torno das disciplinas escolares, outro ponto chave é entender o LD como um dos suportes que historicamente organiza o conteúdo das disciplinas, relacionados diretamente à ciência mãe. Agrega e converge para o seu interior os componentes curriculares que tratam, garantindo, desse modo, a produção e circulação do “[...] saber escolar [...]” por meio deste suporte (ALBUQUERQUE, 2010, p. 69-70, grifos da autora).

Sobre o domínio das pesquisas acadêmicas, tendo como objeto o LD, as análises que acontecem no Ocidente, entre outros aspectos, abordam fortemente, estudos “[...] segundo uma perspectiva ideológica ou sociológica [...]” e a partir deste olhar, “[...] trazem respostas, ou ao menos, esclarecimentos às questões atuais que a sociedade contemporânea se coloca” (CHOPPIN, 2004, p. 556). Sendo tais interrogações de natureza política e epistemológica, os estudos empreendidos vão recair sobre assuntos que dizem respeito às finalidades da aprendizagem, dos seus componentes curriculares, dos seus conteúdos programáticos e das suas metodologias de ensino, incluindo as que investigam questões discursivas.

Ao situar-se entre aqueles estudos que tratam de questões discursivas envolvendo o LD e a disciplina de Língua Portuguesa da EJA, é preciso lançar luz sobre um conjunto de

enunciados que circulam abordando, também, o seu lócus didático-pedagógico. Estudo que abrange questionar as formas enunciativas duplamente, ou seja, tanto na dimensão da disciplina de Língua Portuguesa com os seus saberes relativos à produção acadêmica na sua relação constitutiva com a ciência mãe língua portuguesa, quanto nas dimensões social, cultural, política e econômica, que permeiam e moldam a especificidade do LD-EJA, contribuindo assim para configurar o seu modo particular de existir no seio da vida escolar contemporânea.

Ao penetrar nesta trama discursiva, verifica-se que os enunciados que falam sobre a disciplina escolar de Língua Portuguesa da EJA, de início a colocam em meio aos componentes curriculares mínimos desta modalidade de ensino, situando-a junto ao conjunto formado pelas outras disciplinas tais como: matemática, história, geografia, artes e ciências. Porém, no que tange ao perfil da disciplina de Língua Portuguesa, os textos curriculares nacionais operam com a noção de área, não de disciplina, embora os livros didáticos examinados se refiram à LD de Língua Portuguesa. Assim ressalta o documento (BRASIL, 2001), ao referir-se a esta área de estudo:

A área de Língua Portuguesa abrange o desenvolvimento da linguagem oral e a introdução e desenvolvimento da linguagem escrita. Com relação à linguagem oral, o ambiente escolar deve propiciar situações comunicativas que possibilitem aos educandos a ampliação de seus recursos linguísticos. Em outras palavras, os educandos devem aprender a planejar e adequar seu discurso a diferentes situações formais e informais. Com relação à linguagem escrita, além da compreensão e domínio dos seus mecanismos e recursos básicos, como o sistema de representação alfabética, a ortografia e a pontuação, é essencial que os educandos compreendam suas diferentes funções sociais e conheçam as diferentes características que os textos podem ter, de acordo com essas funções (BRASIL, 2001, p. 51).

Para este alcance, o citado documento, tratando particularmente desta área, considera o ponto de vista didático-pedagógico da linguagem oral como: “[...] o meio linguístico primordial dos seres humanos. É basicamente através da comunicação oral que nos desenvolvemos como participantes de uma cultura” (BRASIL, 2001, p. 52). Nesse sentido, mesmo após a aprendizagem da linguagem escrita e dos estudos da análise linguística, o educando depende da oralidade, uma vez que a fala, a conversa e o comentário sobre qualquer assunto formal, informal ou textual, independente do uso de qualquer modalidade de linguagem, depende da oralidade, como uma das formas de expressão e comunicação. Daí a relevância da aprendizagem dos sons da fala associando-o ao signo linguístico. Em outro

documento da mesma natureza, a competência da oralidade desenvolvida pelo estudo da disciplina de Língua Portuguesa é ampliada:

Ensinar língua oral não é corrigir o modo como o aluno fala. Ensinar língua oral significa possibilitar acesso a usos da linguagem mais formalizados e convencionais, que exijam controle mais consciente e voluntário da fala, tendo em vista a importância do domínio da palavra no exercício da cidadania (BRASIL, 2002b, p. 37).

O mesmo documento, tratando da linguagem oral acrescenta: “Utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e na leitura e produção de textos escritos, de modo a atender a múltiplas demandas sociais, responder a diferentes propósitos comunicativos e expressivos e considerar as diferentes condições de produção do discurso” (BRASIL, 2002b, p. 19), enuncia a condição social e específica do ensino da Língua Portuguesa. No âmbito da linguagem escrita, um dos pontos que os Programas Curriculares para o 1° e 2° segmentos dão relevo, é quanto à imersão do educando da EJA numa sociedade letrada, que a cada dia mais, utiliza diversas linguagens na comunicação. Este fato implica para vida do educando da EJA a necessidade do domínio da escrita e das diferentes formas de sua organização sígnica. Nessa perspectiva, o texto curricular diz:

No processo de aprendizagem da língua escrita, podemos distinguir dois âmbitos de compreensão e domínio. Um diz respeito aos recursos e mecanismos de funcionamento do sistema de representação; outro diz respeito às distintas formas com que esses recursos são utilizados em diferentes textos, de acordo com suas intenções comunicativas. O domínio desses dois âmbitos deve se realizar simultaneamente de modo que eles se apóiem mutuamente (BRASIL, 2001, p. 54, grifos nossos).

Em enunciados sobre o ensino da linguagem escrita, destacam-se outras linguagens, além da linguística, como neste caso: “Emprego de recursos escritos (gráficos, esquemas, tabelas) como apoio para a manutenção da continuidade da exposição” (BRASIL, 2002b, p. 28). Para complementar as articulações das competências que devem ser desenvolvidas, incluindo o texto visual do LD, ressalta-se, também, a necessidade por parte do educando EJA de compreender a relação existente entre o “Estabelecimento das relações necessárias entre o texto e outros textos, bem como recursos de natureza suplementar que acompanham os gráficos, tabelas, desenhos, fotos, boxes no processo de compreensão e interpretação do texto” (BRASIL, 2002b, p. 27).

A análise linguística, como parte integrante da área de língua portuguesa, interessa-se, sobretudo, pela alfabetização do educando, no que envolve a oralidade como uma das principais aprendizagens prévias da comunicação. A leitura, embora se estruture junto à escrita, liga-se a domínios de automação de signos e à sua decifração. Assim, o educando, “[...] nesse processo, ele acabará aprendendo e servindo-se de palavras e conceitos que servem para descrever a linguagem, tais como letra, palavra, sílaba, frase, singular, plural, maiúscula, minúscula, etc.” (BRASIL, 2001, p. 59). Ao abordar este mesmo ponto, o documento da proposta curricular para o 2º segmento v. 1, assevera:

A prática da análise linguística deve estar vinculada ao estudo da língua em sua modalidade oral ou escrita. Deve refletir sobre a língua e seus usos efetivos para, de fato, ajudar o aluno a aumentar seus recursos expressivos. Somente assim a análise linguística será uma ferramenta para que o aluno aprimore a compreensão e produção de textos orais ou escritos e para que faça uma reflexão sobre os fatos da língua e sobre as implicações sociais inerentes aos seus usos (BRASIL, 2002b, p. 18).

Assim, verifica-se que a relação fonográfica, como uma das relações organizadoras do estudo da análise linguística no contexto do LD-EJA, opera por meio de elementos como os sons e as letras, compreendidos como signos linguísticos, ou seja, sistemas próprios da língua portuguesa, que funcionam a partir de cada organização sistêmica específica acionada. Ao falar da língua como ferramenta, tal reflexão recai sobre as dimensões social, econômica, cultural e política que estão presentes no âmbito da língua e dos conteúdos do LD-EJA.

Nessa perspectiva, o caminho tomado pelos documentos curriculares oficiais, em direção ao ensino da EJA, através dos seus recursos didáticos e metodológicos, visa dar visibilidade ao ensino da língua portuguesa como ferramenta indispensável à comunicação, tanto na escola, como fora dela. Considerando o contexto contemporâneo, onde as relações sociais e econômicas encontram-se cada vez mais cambiantes e dependentes de novas tecnologias, demanda da escola o ensino da língua materna e outras linguagens, voltadas para as novas competências. Sobretudo, porque as novas tecnologias, de rápidas superações, têm provocado profundas transformações sociais, impondo no campo do trabalho novas relações profissionais, fato que afeta diretamente o educando da EJA, no sentido deste educando necessitar de uma aprendizagem que o auxilie a superar as novas dificuldades e esteja apto a “[...] uma inserção vantajosa no mercado de trabalho [...]” (BRASIL, 2001, p. 38).

Para enfrentar os imperativos do mundo atual, o ensino da língua portuguesa para esta modalidade deve ajustar-se a uma metodologia que enfoque o perfil do educando EJA, sensível à sua especificidade, considerando o conjunto destes educandos, um “[...] público dos

programas de educação de jovens e adultos, como um grupo homogêneo do ponto de vista socioeconômico. Do ponto de vista sociocultural, entretanto, eles formam um grupo bastante heterogêneo” (BRASIL, 2001, p. 40). Decorrente disto, são as escrituras achadas nas propostas curriculares para estes educandos, uma vez que o ensino deve alinhar-se à sua vida social, posta num regime democrático e aberto ao debate político e à “[...] consciência de direitos e deveres, a disposição para a participação, para o confronto de ideias e o reconhecimento de posições diferentes das suas” (BRASIL, 2001, p. 39). Verifica-se que a trama enunciativa presente em parte dos documentos normativos emerge com enunciados que abordam o sujeito educando desta modalidade de ensino, levando em consideração distintos aspectos da sua vida societária.

Igualmente, para nortear os trabalhos pedagógicos da EJA, documentos curriculares recorrem ao chamado “[...] contrato didático [...]”26 (BRASIL, 2002a; 2002c), cuja

concepção é de orientador das relações e papéis dispostos na pedagogia escolar. “O contrato apresenta o conjunto de condutas específicas que os alunos esperam dos professores e vice- versa, os quais regulam o funcionamento da aula e a relação professor/aluno/conhecimento”. Falam, também, em “[...] inversão da lógica curricular [...]” que, tradicionalmente, orientou a proposta curricular para EJA, salientando identificar as “[...] capacidades, competências ou habilidades [...]” que se objetiva tomá-las como “[...] indicadores para guiar a proposta pedagógica, a seleção e a organização de conteúdos dos diferentes âmbitos do conhecimento, a destinação de espaços e tempos curriculares etc.” (BRASIL, 2002a, p. 111-114). Documentos normativos correlatos falam em dois princípios pedagógicos orientadores para a proposta curricular da EJA: as “[...] lições de Paulo Freire [...]” cujo caráter da educação é emancipatório e político, e pedagogicamente, “[...] libertador, problematizador da liberdade, no sentido oposto ao da educação para a submissão”. Salienta que educar não é um ato neutro e, sendo político, está relacionado à trilogia “[...] professor/aluno/conhecimento [...]” (BRASIL, 2002a, p. 98), tomando-a numa visão dialética. O segundo princípio são as contribuições de Vygotsky frisando que, a partir da teoria construtivista, a relevância curricular deve recair, também, sobre as interações sociais, considerando que a aprendizagem:

É, antes de tudo, uma construção histórica e social, na qual interferem fatores de ordem antropológica, cultural e psicológica entre outros. A aprendizagem, na concepção construtivista, caracteriza-se como atividade mental construtiva, que parte dos conhecimentos prévios dos alunos (BRASIL, 2002a, p. 99).

26 A propósito desta questão, ver os Referenciais para a Formação de Professores (BRASIL, 2002c). Neste

A partir das condições de vida do educando, o que está posto em documentos normativos tem base no entendimento que os educandos da EJA “[...] já são cidadãos e participam da vida em sociedade” (BRASIL, 2002a, p. 115). Em expressões que conferem legitimidade em torno da definição e seleção do que deve ser ensinado, encontram-se enunciados que dizem: “[...] não há razão para reproduzir, num processo de educação de adultos, a estrutura e os conteúdos de ensino da educação formal, regular, tradicional, pensada para alunos das faixas etárias equivalentes às da educação básica (7 a 17 anos)” (BRASIL, 2002a, p. 118, grifos nossos). Observa-se que é dada relevância ao fato de o educando jovem e adulto ter uma história de vida marcada por participação ativa na vida social e trazer suas experiências para a escola, em forma de saberes prévios. Este texto enuncia a relação entre o educando da EJA e a escola, e trata as especificidades desta modalidade de ensino.

Costuma-se afirmar que a grande maioria dos alunos de EJA desenvolveu uma cultura basicamente fundamentada na oralidade, e que uma das suas expectativas, em relação à escola, é poder utilizar diferentes linguagens. Desse modo, o curso deve está atento a essa demanda, propiciando atividades em que as múltiplas formas de linguagem como – a musical, a plástica, a corporal, dentre outras – possam ser construídas (BRASIL, 2002a, p. 117, grifos nossos).

Sobre uma pedagogia que oriente os trabalhos em LD-EJA, bem como outros materiais didáticos, as distintas propostas curriculares (BRASIL, 2001; 2002a; 2002b) são escrituras normativas que tomam como princípios fundamentais, primordialmente, os referenciais teóricos e metodológicos defendidos pelo educador Paulo Freire. Assim, para funcionar essa prática pedagógica, os citados documentos mobilizam noções pedagógicas já historicamente compreendidas e assimiladas na prática da educação popular. Quando se referem ao envolvimento da cultura e dos saberes dos educandos jovens e adultos, estes documentos asseguram que estes saberes podem ser um dispositivo capaz de ancorar e funcionar como um dos pontos de partida para a prática em sala de aula e que a noção crítica diante do mundo deve permear toda prática pedagógica da EJA. Destarte, constata-se que as propostas curriculares para a EJA, trazem séries enunciativas articuladas ao discurso didático- pedagógico e no âmbito do ensino da língua portuguesa, trazem enunciados correlatos com base na proposta freiriana. Estas propostas curriculares asseguram que portam uma orientação que traduzem uma prática pedagógica que aponta para um prática pedagógica, cujas regras são pautadas no ideal ético, social, político, cultural e crítico.

Situando-se entre enunciados que privilegiam o diálogo com a língua, e arrastando os conhecimentos prévios do educando como um dos pressupostos da educação popular, em trabalho sobre o preconceito linguístico, Bagno (1999) fala sobre a língua portuguesa ensinada no contexto escolar e inicia sua reflexão abordando a realidade sociolinguística do português brasileiro sob três focos:

[...] de um lado, (1) o da norma padrão, isto é, o modelo idealizado de língua „certa‟ descrito e prescrito pela tradição gramatical normativa – e que de fato não corresponde a nenhuma variedade falada autêntica e, em grande medida, tampouco à escrita monitorada – e, de outro lado, como extremos de um amplo continuum, (2) o conjunto de variedades prestigiadas pelos cidadãos de maior poder aquisitivo, de nível de escolarização e de maior prestígio sociocultural, e (3) o conjunto de variedades estigmatizadas, faladas pela imensa maioria da nossa população [...] (BAGNO, 1999, p. 11-12, grifos do autor).

O citado autor parte do entendimento de língua como “[...] atividade linguística real dos falantes em suas interações sociais [...]” (BAGNO, 1999, p. 13) e introduz nesta discussão as práticas sociais do educando. Ao lançar luz sobre o ensino da língua portuguesa, agenda o preconceito linguístico como uma prática recorrente em todo lugar e contempla o assunto, esclarecendo noções necessárias ao ensino de línguas na escola. Para isto, enuncia que é preciso não confundir a “[...] norma padrão [...]” como inexistente no português brasileiro contemporâneo; as “[...] variedades prestigiadas [...]” como normalmente aquelas encontradas nos livros didáticos ou mesmo nas gramáticas atuais e as “[...] variedades estigmatizadas [...]” aquelas que não constam registros em livros didáticos e são faladas e utilizadas pelas camadas da população brasileira que não tiveram acesso à escola, ou tiveram poucos anos de escolarização. Esta discussão culmina em entender que a “[...] prioridade absoluta, no ensino de língua, deve ser a prática de letramento” (BAGNO, 1999, p. 11- 13).

A reflexão do citado pesquisador encontra correlatos entre gramáticos, professores, educadores, pedagogos, pesquisadores, bem como nos textos dos documentos curriculares nacionais, cujas inscrições convergem aproximando o ensino da língua portuguesa como língua materna envolvendo processos de letramentos. E, alinhando-se a esta aproximação, a seção seguinte faz um mise en pages de alguns achados enunciativos que põem em evidência o ensino da língua portuguesa como língua materna.