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“Sou natural de Baturité, mas moro em Fortaleza desde que tinha oito anos de

11 Corruptela das palavras Ebó (comida) e Ori (cabeça).

idade. Casei aos vintes e dois e, logo então, veio a doença... Nessa época, minha mãe rezava. Ela era de mesa branca13! Quando eu passava mal, ela rezava, aí pronto: eu melhorava!”

“Foi para tentar me curar que também fui procurar uma mesa branca. Encontrei uma que ficava no Pirambu. Quando cheguei lá, o mestre do recinto mandou me botar na ponta da mesa. Depois de acabada a sessão, ele chegou e disse ao meu cunhado: ‘Irmão Raimundo, essa senhora não é de mesa branca. É da Umbanda! Procure um terreiro! Eu vou lhe dar o nome de um terreiro’. Então me indicou o nome da Madrinha Valkíria. Isso aconteceu numa sexta-feira! No domingo, eu fui”...

No Brasil, relação do Kardecismo com a Umbanda sempre foi estreita e, ao mesmo tempo, contraditória, por se tratar de uma religião onde incorporação também tem um lugar privilegiado no rito. As manifestações caboclas, de entidades que remetiam à brasilidade, insistiam em acontecer nas mesas brancas. As respostas que os centro kardecistas davam eram as mais diversas. Alguns tentavam doutrinar o médium de forma que controlasse sua incorporação, restringindo-a aos boca-funda - categoria utilizada para classificar um espírito recém-desencarnado, a quem são destinadas as sessões de mesa branca. Outros doutrinavam os espíritos caboclos a somente se manifestar em determinado dia da semana, quando o ocorria uma sessão especial, com a finalidade de atender somente a esses espíritos. Geralmente eram sessões secretas ao grande público, acessíveis apenas a uma elite mediúnica já preparada do centro. Havia ainda os que encaminhavam o médium para se desenvolver nos terreiros de Umbanda. Noto que estas três ações visam fazer certa ascese ritualística, de forma que o rito kardecista ficasse preservado e não sofresse influência dos meios umbandistas.

“Quando cheguei na porta do terreiro, o Seu Gérson, incorporado na Madrinha Valkíria, vinha chegando, ele falou: ‘Se tu não morreu até ontem, de hoje em diante tu não morre mais!’ Aí eu já entrei para me desenvolver”...

“Não dei trabalho no desenvolvimento: com dois desenvolvimentos, já peguei caboclo. Com um me que estava no terreiro, o caboclo já cantou, já dançou, já bebeu cachaça, já bebeu café... Eu sou filha de preto-velho, mas trabalhava com o Raimundão. Na minha cabeça, ele bebia cachaça, bebia vinho... Bebia o que desse”!

“Eu era cabona e meu marido o cabono14. Ele, filho de tranca-ruas e eu, filha de preto-velho. Aí pronto: ele recebia o caboclo dele, eu recebia o meu. Ás vezes eu estava meio

13 Ritual do Kardecismo onde a incorporação acontece. Tem como uns dos objetivos doutrinar espíritos desencarnados para que estes continuem seu caminho evolutivo.

assim... Ela mandava logo eu trabalhar pra poder receber a corrente, pra poder ficar ajudando ela no desenvolvimento do povo. Depois que despertava, ajudava no desenvolvimento do povo”.

“Depois que a gente estava bem firme no caboclo, começavam os cruzos. Se fosse preto-velho, tinha a obrigação de preto-velho! Tinha a oferenda de preto-velho, o café, o cachimbo, farofa... Essas coisas assim! Eu sou cruzada em todas as linhas... Mas só depois que eu estava bem firme, foi que pude receber cruzo. Não era ela quem dava a odre, era Seu Gérson. Quando estava no tempo, ele falava: ‘Maria, tu vais te cruzar tal dia! Te limpa, não venhas suja!’ Quem viesse ajudar se preparava, se isolava das farras, das bebedeiras... Como eu era a cambona da casa, toda obrigação que tivesse, eu passava a noite com a Madrinha. Só voltava para casa depois das quatro da madrugada. Dormia no terreiro, no chão. Daí eu fui pembada na cabeça, nas costas, na frente, nos lados... Esse era o cruzo”!

“Seu Pedro e eu acompanhávamos a madrinha a todos os lados. Nessas andanças, conheci inclusive o Seu Luis da Serrinha. O terreiro dele era muito bonito. Nas festas, lotava de gente! E lá a gente sempre foi muito bem recebido, davam tudo na mão: comida, bebida, assento... Era muita gente que ela levava! A madrinha que abria o trabalho - por ser filha-de- santo dele - e ele fechava”.

“A madrinha sempre gostou de fazer as coisas certas! Desde que o terreiro abriu, somos registrados na Federação. Ela dizia que ia A esses cantos para tirar a licença para podermos trabalhar em paz, sem ser perturbado por polícia. Desta forma, nunca tivemos problema! Os policias entravam, falavam com a madrinha... O caboclo na cabeça da madrinha sempre foi muito amigo! Eles olhavam unicamente se tinha a bebida. Como não viam, iam embora. Pronto! Quanto a isso, nunca deram flagrante: os nossos caboclos trabalhavam com a garrafa escondida embaixo da roupa, enrolada num pano”.

O surgimento das federações de Umbanda pelo país vem atender a duas demandas específicas. A primeira delas diz respeito a legalidade da religião: a força da instituição juridicamente alicerçada iria conferir armas no combate às medidas discriminatórias e repressivas que, muitas vezes, eram implementadas pelo próprio Estado. A segunda era tentar trabalhar no rumo oposto ao da segmentação e da dispersão da religião, ou seja, era num longo prazo, tornar a Umbanda como a religião legitimamente brasileira. (BIRMAN, 1985)

Para tanto, o cuidado para que sua difusão pelo território nacional seguisse certa homogeneidade era primordial. Uma das medidas para assegurar tal homogeneidade era

elaborar um modelo ritual, composto de normas que passavam a ser seguidas pelos filiados a essas instituições, em troca da proteção judicial no que diz respeito à liberdade de prática religiosa. Práticas como a Macumba, o Terecô e o Camtibó, que remetiam a um passado “étnico” (como uma identificação com os povos africanos ou indígenas, a exemplo) eram rejeitadas ou, por vezes, fagocitadas e incorporadas pelo panteão umbandista. No Ceará, esse movimento se inicia com a fundação da UECUM (União Espírita Cearense de Umbanda), em 1954. Foi esta a primeira instituição da classe a emitir alvará de funcionamento para os terreiros.

Elementos que remetiam à Macumba (a exemplo da bebida, como bem destaca D. Maria) eram condenáveis. Cabia à instituição eliminá-las ou corrigi-las. O nome “Centro Espírita de Umbanda” era preferido outras denominações comuns - a saber: tenda, cabana, terreiro etc. Nas palavras do professor Ismael Pordeus: “o que nos leva a pensar naquilo que concerne às tentativas de legitimarão e codificação da religião umbandista - a Macumba utiliza o nome Umbanda para se legitimar, do mesmo modo que a Umbanda utiliza a designação espírita com objetivos similares, em relação ao Espiritismo Kardecista” (PORDEUS JR., 2003, p. 13).

“E assim seguimos durante muito tempo: eu sempre como a pessoa de confiança da madrinha. Quando ela viajou pra Salvador, eu que fiquei tomando conta das coisas aqui. A ordem que ela saiu dando era a ordem que era cumprida. Ela telefona, falava comigo, dizia como queria que as coisas fossem feitas e eu fazia. Eu que abria os trabalhos, fechava, acendia os pontos, cuidava dos assentamentos... E assim se passaram os meses em que ela esteve fora. Quando voltou, entreguei a ela o terreiro da mesma forma que estava quando ela saiu”.