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Marcos de início

No documento Doença de Alzheimer e cuidado familiar (páginas 66-70)

2. O DIAGNOSTICO: REFLEXÕES ACERCA DOS ITINERÁRIOS

2.2 O Itinerário Mediado pelo CMI

2.2.1 Marcos de início

Arthur ainda não tinha completado 60 anos no semestre que convivi com ele no CMI. Havia já bastante tempo que andava esquecido, mas a esposa Natália só começou a achar que algo estava errado depois de dois episódios que considerou de maior gravidade. O primeiro ocorreu durante a mudança de um apartamento para a casa onde moravam. Arthur havia saído de casa para sacar R$ 800,00 no caixa eletrônico com o intuito de pagar os profissionais contratados para fazer a mudança. Chegando a casa, com certo atraso, Natália perguntou ao marido onde estava o dinheiro, Arthur disse que não tinha dinheiro nenhum, que não estava sabendo desse dinheiro e não havia saído para sacá-lo. Natália chegou a discutir um pouco com o marido, o qual teve de sair novamente para fazer o saque e pagar os profissionais que estavam esperando.

Natália achou aquela situação muito estranha e decidiu investigar o que estava acontecendo. Olhou o extrato do mês e notou que naquele dia relatado o marido havia realizado, de fato, dois saques no valor de R$ 800,00. E, apesar de não estarem com nenhum problema financeiro grave, esse não era um valor a ser ignorado. Passado um tempo, Natália encontrou essa quantia de dinheiro guardado dentro de uma gaveta.

É relativamente comum que os esquecimentos financeiros sirvam de base para que se julgue que há algo errado com o sujeito. Normalmente, o tipo de lapso foge do que seria tido como um comportamento normal da pessoa e a prova direta disso pode ser um prejuízo financeiro considerável. Conheci uma mulher que havia descoberto a doença da mãe há pouco tempo, ela só percebeu que alguma coisa estava estranha porque a mãe – que tinha uma condição financeira muito boa – acabou perdendo quase todas as economias, além do apartamento que valia em torno de um milhão de reais. A mãe não só andava

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esquecida, como havia tomado algumas decisões que se distanciavam bastante do que a filha esperava dela. Sempre foi uma mulher muito calculista e objetiva, mas acabou por gastar uma quantia enorme de dinheiro investindo em reformas, utensílios desnecessários e por vezes repetidos, além de doações para uma nova religião da qual virou adepta. A perda do apartamento foi fruto de um golpe planejado por alguém da família, que a fez vender o imóvel por um valor menor do que o mesmo valia. Quando a filha descobriu o que se passava, a mãe estava para ser despejada de casa e com várias dívidas – as quais, na opinião da filha, eram inexplicáveis – para pagar.

Duas cuidadoras também relataram que seus esposos pagaram algumas contas mais de uma vez. Quando perceberam que estavam com dificuldades financeiras e não sabiam explicar os motivos, decidiram por investigar os extratos bancários e notaram pagamentos repetidos de uma mesma conta. Comportamento que até poderia acontecer uma ou duas vezes, na opinião das mesmas, mas nesses casos se tratavam de eventos recorrentes, que acabaram por prejudicar a situação financeira dessas famílias.

O outro lapso que levou Natália a notar algo de estranho aconteceu durante uma viagem até Pirinópolis/Goiás. Ao longo de uma das tardes do passeio, o casal passou em frente a um restaurante que costumavam frequentar, o mesmo estava fechado e na porta havia uma placa informando o novo local de atendimento. Na noite desse mesmo dia, Arthur pegou o carro e começou a conduzir na direção desse restaurante. Natália indagou o motivo pelo qual o marido estava tomado esse rumo, já que o restaurante havia mudado de endereço. Arthur retrucou que não sabia disso e perguntou de onde ela havia tirado essa informação. Natália tentou fazer o marido recordar o que havia se passado durante a tarde, mas sem sucesso, o mesmo até chegou a dizer que ela estava ficando louca. Natália contou que chegou a desconfiar que talvez estivesse com algum problema envolvendo sua sanidade, dada a certeza do marido de que eles não haviam visto nenhuma placa. Contudo, ao chegarem ao endereço do restaurante, compreendeu que o problema não estava consigo, o mesmo estava fechado e com o aviso.

As viagens também são relatadas com frequência como momentos de possíveis crises para as pessoas com problemas de memória. Sair de um espaço conhecido, cercado de repetições e rotinas pode fazer com que os lapsos de utilização da memória fiquem mais aparentes. Ouvi várias histórias no CMI sobre como as viagens – assim como saídas e

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ambientes estranhos – são momentos difíceis para pessoas com D.A. (e para as cuidadoras que precisam dobrar sua atenção).

Seu Luís, cuidador de Arthur, contava que esse se virava relativamente bem em casa e recordava do local onde eram guardados a maioria dos utensílios domésticos, principalmente aqueles utilizados para o preparo do café – hábito apreciado por Arthur. Contudo, quando o casal precisava passar algum tempo no Rio de Janeiro, por conta das exigências do pós-doutorado de Natália, Arthur tinha menos autonomia para fazer qualquer coisa sozinho em casa e ficava mais nervoso. Além disso, logo que voltavam para Brasília, Arthur não conseguia mais preparar o café porque havia esquecido onde ficavam os ingredientes e ferramentas necessárias.

A referência à loucura na história de Natália pode se relacionar com o fato de que determinados esquecimentos, ou mesmo lapsos em estabelecer uma conexão direta com a realidade, podem ser julgados como indicadores de falta de sanidade. Evidente que ambos poderiam ter um desentendimento em relação ao que lembravam daquela tarde de passeio em Pirinópolis/GO, mas no caso relatado as lembranças eram contrárias uma da outra – o que fez com que se chegasse a conclusão de que alguém estava louco.

A relação entre a capacidade de memória e de julgamento com a sanidade é tema de fundo do livro “O lugar escuro”, nele a autora Heloísa Seixas (2007) conta a experiência de sua mãe com a D.A. No relato de Heloísa acerca dos marcos de início da percepção da doença da mãe, a autora afirma que essa cruzou a fronteira da loucura ao acordar em casa e agir como se ainda estivesse no hotel para o qual havia viajado no mês anterior. Além de ter feito a confusão de locais uma vez, a mãe ainda se comportou como se estivesse no hotel mais uma vez durante o mesmo dia, confundindo a neta com uma companheira da viagem. Heloísa escreve que a mãe já andava esquecida muito tempo antes desses episódios, mas essa mudança com a rotina e o fato de esses lapsos serem considerados muito além do comum fizeram com que a autora os percebesse como momentos nos quais a mãe “ultrapassou o limiar da loucura”.

Avaliando as histórias escritas acima, não é qualquer lapso de memória que desencadeia alguma reação em busca da procura por ajuda. Os lapsos citados são de outra ordem e, na percepção dos que estavam observando, não poderiam ter sido cometidos em condições de normalidade, são esses: esquecer uma quantia grande de dinheiro, perder um apartamento, não recordar de uma conversa tida durante a tarde sobre um restaurante

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predileto que fechou, não perceber que se está em casa depois de uma viagem duas vezes no mesmo dia, demorar-se para perceber os equívocos e desconfiar-se dos próprios esquecimentos.

Tanto no livro de Heloísa, como no discurso de Natália e de outras cuidadoras, são citados alguns episódios nos quais se nota que algo está fora do comum. Contudo, isso não significa que as pessoas esquecidas não estivessem confusas no seu cotidiano há um tempo considerável, mas que nem sempre os esquecimentos são tidos como um problema, ou uma questão para a qual se precisa buscar ajuda. Isso porque, em alguns casos, esses são considerados leves ou capazes de acontecer com qualquer um, principalmente em momentos de estresse. A interpretação de Natália era de que a dificuldade de Arthur com a memória ficou mais evidente em dois momentos de mudança com a rotina. Em situações comuns para Arthur, esse ainda conseguia manejar relativamente bem seu esquecimento.

Outro ponto que pode ter influenciado a demora da avaliação de que o esquecimento precisava de uma intervenção era o fato de Arthur ser ainda jovem na época. Seu caso era considerado um tipo de demência pré-senil. Em se tratando de pessoas maiores de 65 anos com esquecimentos, esse é facilmente encarado como indício de uma demência. Em uma reunião do grupo de neuropsicologia que aplicava os testes cognitivos, ouvi o coordenador contar que era cada vez mais comum que idosos/as fossem ao CMI para fazer os testes por conta do medo de que seus esquecimentos diários fossem resultado do Alzheimer – e que, sendo assim, era necessário ter algum tipo de rigor para não confundir um declínio normal que acompanha o envelhecimento, com um quadro de demência patológica.

No filme chamado “A moment to remember” (2004)35, a personagem principal – Su-jin – representa uma moça bastante esquecida na faixa dos 27 anos. No início do filme, seus lapsos de memória são apresentados de forma imensamente charmosa, por conta deles acaba conhecendo um homem com o qual desenvolve um relacionamento amoroso. Durante os rituais de aproximação dos dois, Su-jin ainda comete vários do que se poderiam chamar “erros de julgamento”, ou comportamentos “inapropriados”, mas são todos muito graciosos e fundamentais para a aproximação dos dois. Esquecer alguns episódios do seu passado também faz dela uma personagem muito leve e pouco adepta a rancores. Talvez

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O título em coreano (내 머리 속의 지우개) literalmente significa “Apagador em minha cabeça”, mas foi traduzido para o inglês como “A moment to remember”.

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pela juventude da personagem, os esquecimentos são ignorados como um problema, são, no lugar disso, tidos como parte de sua personalidade – mesmo quando deixa panelas no fogo e nunca se recorda de datas e nomes. Su-jin não sai de sua rotina e seus esquecimentos não lhe aparecem como um problema, só começa a achar que precisa ver um médico quando conversa com algumas amigas e percebe que nenhuma delas encontra dificuldades para achar o caminho de casa.

É possível notar, então, que a procura por ajuda surge de uma percepção – normalmente também, ou principalmente, por parte de pessoas próximas – de que alguma coisa em relação ao raciocínio não é mais da ordem dos esquecimentos comuns do dia a dia. Algum tipo de limite foi quebrado. Com pessoas mais jovens, parece que o limite é ainda mais distante de ser alcançado, dado que os esquecimentos na velhice já possuem um histórico considerável de patologização.

No documento Doença de Alzheimer e cuidado familiar (páginas 66-70)