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Professor Jairnilson, infelizmente não li a publicação com os textos das conferências,

mas, se eu entendi a sua fala, me parece que o senhor assinalou pouca capilaridade

da Reforma Sanitária como um projeto de reforma mais ampla. Eu gostaria que o se-nhor comentasse isso. Gostaria de saber se o senhor tem alguma reflexão a

res-peito da interlocução dos atores da Reforma Sanitária, se estabeleceram (se é que

estabeleceram) com outros atores do movimento social, mais especificamente com

aqueles que também têm a saúde como um elemento da sua pauta, como o movi-mento ecológico, o movimovi-mento feminista que, inclusive, tem na sua pauta alguns dos

pressupostos da própria Reforma Sanitária. Nós, em 1983, já tínhamos elaborado

a política de atenção integral à saúde da mulher. Se estou certa, é o primeiro

docu-mento dentro dessa data que aponta para esse princípio. Enfim, quais são os termos

(se é que existe um termo) para essa interlocução entre os atores da Reforma Sani-tária e outros atores do movimento social que também estão pensando na questão da saúde?

Ainda seguindo com essa reflexão, gostaria de saber também em que medida

o senhor avalia a repercussão dessa baixa capilaridade na própria constituição do

SUS, na medida em que a intersetorialidade, por exemplo, tem sido um dos seus

princípios abandonados. E me parece que esse abandono poderia residir de certa

forma nessa questão que estamos apontando. Além disso, na própria participação, ousaríamos dizer, pouco qualificada dos usuários nas suas representações dentro dos

conselhos de saúde e que me parece também ser um comprometimento dado a essa

baixa capilaridade. Então, gostaria de ouvir uma reflexão nesse sentido.

JAIRNILSON PAIM:

Antes de chegar a essa questão, que é uma das que hoje mais me têm mobilizado para pensar as bases sociais e políticas de um projeto tão ambicioso quanto o da Reforma

Sanitária, eu queria entrar um pouco nesse assunto da classe média que considero um pouco complicado. Às vezes, trabalhamos com algumas representações sobre a

classe média. Penso que precisamos de um debate mais qualificado e científico para

irmos um pouquinho além dessa primeira impressão sobre o que é a classe média.

Acho que nessa discussão, inclusive sobre planos de saúde, muitas vezes há mais críticas morais do que, propriamente, críticas políticas. Ou seja, temos de analisar

como as forças se movimentaram para que a classe média, tão criticada, tomasse aquela opção na década de 1990, como também a classe operária, os trabalhadores em geral, inclusive o trabalhador do serviço público, os médicos. Os médicos da

década de 1980 foram, de certa forma, uma das forças que apoiaram o projeto da

reforma e que depois tiveram outro tipo de posição. É preciso examinar um pouco mais concretamente o que se passou nesse processo antes de fazermos críticas que,

a meu ver, parecem morais a comportamentos de sujeitos que são coletivos; não são

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em relação aos presidiários, tem-se de viver dentro das prisões. Acho que existem outros tipos de solidariedade de classe e de projetos que podem juntar pessoas em termos de objetivos comuns.

O projeto da Reforma Sanitária brasileira tinha muita participação da

classe média. Mas não foi só a classe média. Eu diria que foi calcado num tripé em que havia todo um movimento popular de saúde muito vinculado. Por exemplo, as comunidades eclesiais de base que lutavam contra a carestia lutavam para ter creches

(em relação às mulheres), lutavam por serviços de saúde, saneamento, ou seja, uma

série de coisas que estavam acontecendo. Havia um outro elemento do tripé que eram os estudantes. Eles tinham um envolvimento muito grande. O movimento da Re-forma Sanitária nasceu muito antes de falarmos em Estado. Falávamos em “semana da saúde comunitária dos estudantes de medicina”, que depois foi se ampliando para outros tipos de estudantes. E também de intelectuais, pesquisadores, professores de escolas de saúde pública, departamentos de medicina preventiva e social etc. Esse foi o pontapé inicial, porque a classe trabalhadora que estava se organizando, sobretudo

a partir das greves do ABC, na segunda metade da década de 1970, tinha outros tipos

de pauta, mas depois foi se articulando em torno do movimento da democratização

da saúde. Na realidade, foi uma coalizão de forças que elaborou um projeto que

possuía como horizonte o socialismo. O socialismo democrático, reformista sim, porque depois da derrota da luta armada o que se discutia na época era a conquista

da democracia, chegar a um outro tipo de projeto de sociedade. Então é esse o movi

-mento. As propostas de integralidade da atenção beberam efetivamente da medicina preventiva e concretamente do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher

(Paism). Então, o movimento feminista (os ambientalistas vieram depois) sempre

es-teve ao lado do projeto do Cebes, do projeto da Reforma Sanitária e, posteriormente, do projeto da Abrasco. Acho que a classe média tem sido muito bombardeada. É

muito fácil malhar a classe média. Em determinados momentos da história, de crise de hegemonia, ela vai à luta e toma, inclusive, as opções. Muita gente morreu dentro desse processo. É muito fácil falarmos de democracia, mas, antigamente, para poder discutir um tema desses na universidade, o professor tinha como ameaça o Decreto

n º 477 e o AI-5. Então, a garotada que está aqui presente precisa, de alguma forma, ter uma proximidade com essa história para podermos, hoje, ter avanços. Até para que os equívocos que foram realizados pela minha geração possam ser redefinidos,

rediscutidos e, quem sabe, se possa dar um outro tipo de salto.

O que era essa Reforma Sanitária brasileira? A Reforma Sanitária brasileira tinha vários projetos. Havia uma tendência sanitarista na qual bastava que a saúde

pública entrasse com seus programas especiais e com sua polícia sanitária para estar

tudo muito bem. Existia uma tendência eficientista desde a sua origem, que era o

pessoal da burocracia do Inamps que queria dar outro tipo de resposta, e havia uma

tendência socialista. O relatório final da 8a Conferência Nacional de Saúde diz, com todas as letras, que o SUS é um detalhe; o fundamental era aquilo que constituía

uma totalidade de mudanças que passava pela reforma urbana, pela reforma agrária,

pela reforma tributária, pela reforma universitária. Ou seja, era um conjunto de mu -danças propostas num momento de crise de hegemonia em que se pensava poder

realizar um outro tipo de sociedade no Brasil pela via pacífica. Então, acho que é

uma obrigação nos debruçarmos sobre esse processo para que possamos entendê-lo

como um processo político em aberto. Quando hoje trazemos a ideia da revolução

passiva como critério, é porque existe esse conceito de, tendencialmente, conservar para mudar e mudar para conservar, que resume a história do nosso país. E como

podemos, dentro desse tipo de processo, fortalecer a antítese para que ela não seja

simplesmente uma síntese daquilo que está estabelecido? Nesse particular, o

“ele-mento jacobino”, no bom sentido do termo, que esteve sempre presente no projeto

da Reforma Sanitária, precisa ser reforçado para que ela não se convença apenas a ser sistema, a ser constituída.

Falei de classe média, falei de quem era a Reforma Sanitária... Não sei se foi

suficiente para citar essas ligações que existiam com outros segmentos. Por exem -plo, existiam também o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos So-cioeconômicos (Dieese), o Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de

Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat), onde o lema era “Saúde não se troca

por dinheiro”, e o Cebes. Foram grandes espaços em que essas várias tendências se reuniam. Quando o PT ainda não existia como partido organizado, as pessoas que tinham tendências mais progressistas estavam dentro do Cebes. Então, era esse o

es-paço onde se construiu esse projeto que eu chamo de generoso e, ao mesmo tempo, um projeto de acumulações progressivas de forças que estavam atreladas a uma mu -dança dentro da organização política e social do Brasil.

A intersetorialidade era um elemento não com essa expressão de que basta juntar setores que estão separados. Era a ideia do concreto como uma síntese de

múltiplas determinações. É uma ideia de que você pode intervir no setor e isto se reproduzir no social. O setorial e o societário dentro da Reforma Sanitária eram

elementos de uma síntese dialética, ou seja, ao se atuar no setor, tinha-se como

pers-pectiva “bulir” com o social dentro da saúde. E quando se trabalha com a saúde não como produção de serviços, quando se fala em saúde não como necessidade de serviços de saúde, mas como necessidade do estado da vida, do estado vital, rompe-se com a forma institucionalizada de pensar a sociedade nos moldes atuais.

LIGIA BAHIA:

Em relação ao Gustavo, eu computei a precarização do trabalho no PSF. O que eu acho que a gente não conhece, mais uma vez, é a precarização do trabalho no resto

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da rede que acredito que tenha uma magnitude maior do que a do PSF. A do PSF está contabilizada agora, a do meu hospital da UFRJ não está. O Hospital da UFRJ tem

dezesseis formas de contratação e como a gente poderia se apropriar um pouco mais desse conhecimento? E acho que é claro que essa precarização do trabalho repercute na qualidade da atenção. Não há outra possibilidade; há uma intensa rotatividade

de profissionais de saúde e não há a menor perspectiva de saída a curto prazo... Causa muito nervosismo porque ficamos capacitando, capacitando e inclusive esse

conceito de capacitação para precarização é um moinho satânico... É uma educação

permanente pra quem não é permanente, para transitórios, enfim, isso para nós que

somos de instituições de ensino e pesquisa, digamos assim, nos precariza também.

Como planejar as nossas atividades diante disso?

Eu queria chamar a atenção um pouco para o que a Virgínia tinha afirma-do em relação à filantropização. Eu não aborafirma-do a filantropização sob a perspectiva

da natureza assistencialista da proteção social no Brasil, e sim sob o registro da privatização. Porque, de um lado, a gente passa a ter uma seguridade social priva-da (não sei se vocês estão se priva-dando conta disso). Os trabalhadores formais como

o André têm plano privado de saúde, previdência privada, mas isso não é um

“mau-caratismo” da classe média; é uma engrenagem; são as forças do capitalismo

em ação e a gente precisa compreendê-las porque, se não, a gente fica imaginan-do que existe um culpaimaginan-do. E eu não tinha atentaimaginan-do para a dimensão da filantropiza

-ção relacionada com a precariza-ção do trabalho. Acho que é muito interessante e

acho que poderíamos fazer um empreendimento desses mais exploratórios para tentar pensar nisso.

Eu penso assim. Eu acho que a SAS é um locus importante de concretização das relações entre o público e o público e também entre o público e o privado do sistema de saúde. Se vocês entrarem no site do MS, deem uma olhada nas portarias

expedidas pela SAS... É a SAS que credencia, descredencia... Imaginem o número de interações legislativas, judiciárias, políticas que tudo isso envolve... Concentram

poder e, claro, se reproduzem, enfatizam ou alteram o padrão privatizante. O que

eu penso? Que a proposta atual de dividir a SAS é inadequada. É como se a gente

pudesse fugir do diabo. O diabo vai continuar com seu rabinho, com seu chifrinho,

sentado na SAS. Alguns de nós imaginam que com isso vamos reforçar a mudança do

modelo de atenção. Como é que vamos reforçar uma mudança do modelo de atenção

(eu queria me referir especificamente ao André) imaginando um sistema [eu estou

falando de um sistema pegando carona aqui no nosso ídolo (referindo-se ao Jairnilson)] (risos) que, digamos assim, seja completamente imune às indústrias que hoje integram o setor da saúde? Por que a atenção primária à saúde não dá certo? Por que a AIDS deu certo? Por que a AIDS universalizou, todos são satisfeitos, o programa nacio

-nal de AIDS é o cartão postal do Brasil e tal... Então, por que a gente acha que deu

certo? Claro que deu certo pela política, pelos profissionais de saúde que realizaram

uma aliança com as organizações não governamentais dos pacientes e tal... Mas claro que também deu certo porque envolve a compra de medicamentos caros, não é? É claro que em lugar nenhum do mundo o sistema universal não tenha sido compatível com o aumento da venda de medicamentos, de equipamentos e tudo mais. É típico dos sistemas universais, do sistema de saúde universal inglês... O sistema de saúde universal alemão compra muito equipamento da Siemens porque esta é alemã. O

Estado de proteção social é um Estado capitalista. Trata-se de um modelo de capitalismo mais igualitário, só que é capitalista. Então, penso que é ingênuo querermos nos livrar do peso das mercadorias etc. Eu acho que essa é uma perspectiva ingênua que temos debatido com Nelson Rodrigues dos Santos e outras pessoas do Cebes que têm tentado se pronunciar em relação a essa perspectiva de mudança.

O que nós precisamos mudar no Ministério da Saúde? Nós precisamos

con-stituir o chamado MUS, que é o Ministério Único da Saúde, porque na realidade nós temos vários Ministérios da Saúde... Então, a divisão da SAS seria uma tentativa de

solução tópica para um problema estrutural extremamente relevante. Eu queria só

concluir conversando ainda um pouquinho sobre a classe média. Eu penso, sabe An -dré, que não é privilégio. Não existe sistema universal de saúde que não atenda a rico, que não atenda a classe média, ou ele é universal ou ele não é universal. Como foi constituído o sistema universal de saúde inglês? Por que será que naquele lugar, que tem uma classe média enorme, que tem um monte de gente com renda individual maior do que a nossa, houve possibilidade de se constituir um sistema universal? Lembremos de que lá houve disputas claras. Houve briga entre médicos, brigas entre partidos políticos, briga que abrangeu a sociedade. Em segundo lugar, a correlação de forças não era tão favorável assim. Nós não éramos isoladamente “uma força viva” da sociedade brasileira capaz de impulsionar uma mudança muito radical. Havia uma aposta de que a gente conseguiria conquistar mais adeptos, dentre os quais essas pes-soas que são dos sindicatos e que têm uma pauta, que exigem um padrão de atenção, que não admite que três pessoas fiquem deitadas no mesmo leito da enfermaria... Então, André, se a gente encaminhar o debate por aí, nos afastaremos da compreen -são dos sistemas universais. Sistema universal não é um sistema de má qualidade, não é uma padronização por baixo, não é um sistema que a democracia implica uma pior qualidade. Ele tem que ser de qualidade progressiva, tem que incorporar progressiva-mente os direitos. Concluindo: ou nós seremos capazes de melhorar a qualidade de atendimento na rede pública ou não há possibilidade de você, inclusive, ser atendido nela porque você não vai querer. Se você tiver um problema grave de saúde, não vai

querer ficar na fila como um menino ficou ontem no Rocha Maia (vocês viram isso no jornal). Nós não estamos falando apenas de outras pessoas, nós estamos falando

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comece a se posicionar em relação a isso, tanto pra apontar as qualidades do sistema

público quanto pra identificar profundamente as suas deficiências.

JAIRNILSON PAIM:

Eu só queria fazer um comentário em relação à pergunta do Gustavo: da mesma

maneira que via o feitiço das reformas curriculares, já me cansei de ver o feitiço das

reformas administrativas. Estou inteiramente de acordo com a posição de Ligia e

me perdoem os companheiros que já passaram pela burocracia pública, mas acho

que não é uma questão fundamental para debatermos atualmente. Creio que é uma questão que está interessando mais a determinados segmentos da própria tecnobu-rocracia e não como questão de fundo da Reforma Sanitária.

E um outro comentário: quando damos um destaque à saúde da família, é porque é o que está aí. Se na Itália não existiam os sovietes, mas existiam os con-selhos de fábrica, então Gramsci trabalhava com os concon-selhos de fábrica. Eu não

consigo ver um modelo assistencial único do SUS, muito menos que a saúde da

família venha a ser esse modelo assistencial, a não ser que entendamos modelo as-sistencial como algo normativo, um padrão em que todo mundo vai ter de vestir a mesma camisa, como é o modelo das crianças que brincam com massa de modelar ou das moças que costuravam primeiro cortando um papel para depois tirar o molde e fazer o vestido. Se sairmos dessa ideia de modelo como algo normativo, algo para enquadrar, e passarmos a entender o modelo como uma racionalidade, como uma lógica que orienta uma combinação de tecnologias num país com uma complexidade

de perfil epidemiológico, de condições socioeconômicas e de realidades ambientais,

então vamos ter inúmeros modelos de atenção em saúde no Brasil dentro do próprio

SUS, abrigado pelo próprio SUS.

MESA 3