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As milícias Henriques e a historiografia

Durante um longo período a historiografia brasileira dedicou pouca atenção ao estudo das milícias de cor. Como indica Russell-Wood, “em- bora as irmandades tenham atraído o interesse dos historiadores, as

companhias da milícia foram em grande parte ignoradas”.4 Nesse mesmo

sentido, Silvia Lara aponta que a presença dos Henriques “nas cidades e nas áreas rurais é ainda pouco estudada”, sendo um importante objeto

de análise.5 O silêncio sobre o tema gera certa dificuldade para a elabora-

ção de um estudo bibliográfico mais sistemático. No entanto, ainda que de modo bastante sumário, é possível estabelecer um mapeamento de al- guns autores que, mesmo não contribuindo de forma mais incisiva para a reflexão, enfocaram o tema.

A exposição do levantamento bibliográfico está dividida em dois mo- mentos. O primeiro tem início com a história produzida por Francisco Adolfo de Varnhagen até a produção historiográfica do início dos anos de

1980. Nessa década, com a publicação do clássico Slavery and Freedom,6 de

A. J. R. Russell-Wood, acontece uma importante modificação no patamar do estudo das milícias de cor. O segundo momento abarca os trabalhos produzidos pela historiografia recente.

Os estudos iniciais tratam especificamente da formação das milí- cias Henriques em Pernambuco, no contexto das guerras de expulsão Holandesa, no século XVII. Em sua maioria apresentam análises pontu- ais sobre as milícias de cor, não sendo seu estudo o objetivo central dos autores. O trabalho de Varnhagen está inserido neste nível de análise. Promovendo um elogio à colonização portuguesa, em sua História Geral

do Brasil (1854-57),7 ao tratar da guerra contra os holandeses, o autor rela-

tiviza sua avaliação das “raças inferiores” e argumenta que a participação 4 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2005. p. 129.

5 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa.

São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.167.

6 RUSSELL-WOOD, A. J. R. The black man in slavery and freedom in colonial Brazil. Nova York: St.

Martin`s Press, 1982.

7 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil: antes da sua separação e independência

de Portugal. Revisão e notas de J. Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 7. ed. São Paulo: Melhora- mentos, [200-]. 3 tomos. p. 99-107.

do “negro” Henrique Dias na guerra de restauração Pernambucana teria marcado a vitória portuguesa na construção de um Brasil-português. Seguindo a linha interpretativa de Varnhagen, em 1868, o cônego J. C. Fernandes Pinheiro publica uma biografia de Henrique Dias na Revista

do IHGB.8 Plenamente imbuído dos objetivos de construção de modelos

exemplares para as gerações futuras, Pinheiro inicia um trabalho elogioso em relação aos feitos de Henrique Dias e finaliza a biografia lamentando a extinção dos regimentos de homens pretos “que com vantagem ao país serviam.” Assim como Varnhagen, o cônego Pinheiro vê uma vitória lusa na busca pela construção de um Brasil-português.

Em seus Capítulos de História Colonial, em 1907, Capistrano de Abreu também se refere às milícias Henriques. Seguindo um caminho oposto ao de Varnhagen, o autor vê a derrota do inimigo holandês como uma vitória do “espírito nacional”. Em sua leitura, a vitória portuguesa não teria colaborado para a construção de um Brasil português, mas da nação brasileira: “Venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus como Vieira, mazombos como André Vidal, índios como Camarão, negros como Henrique Dias, mamelucos, mulatos, caribocas, mestiços de

todos os matizes combateram unânimes”,9 vencendo assim o “espírito na-

cional”, brasileiro. Para provar seus argumentos (cada um com seu modo de fazer História) Varnhagen e Capistrano tratam o tema de modo pouco descritivo e muito instrumentalizado. Acabam, assim, por não aprofun- dar uma análise sobre as milícias de cor.

Já em 1935, Gustavo Barroso publica a História Militar do Brasil.10 O

livro segue a tradição de estudos que enfoca a análise minuciosa das guer- ras, campanhas, batalhas e táticas militares. O autor fez parte de uma es- cola interpretativa surgida nos anos de 1890, composta por historiadores militares e produziu o que se costuma classificar como uma “história mili- tar tradicional”. Barroso define seu livro como “resultado duma campanha nacionalista”, onde procura apresentar um resumo histórico das guerras,

batalhas e táticas militares ao longo da história.11 Remontando ao período

colonial, Gustavo Barroso trata brevemente das milícias Henriques. Com um texto ufanista, empreende uma análise anacrônica do que considera o “exército brasileiro” e exalta a tradição que incorporava “soldados negros” 8 PINHEIRO, J. C. Fernandes, Cônego. Biografia de Henrique Dias. Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 31, p. 365-383, 1868.

9 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:

EdUSP, 1988. p. 139.

10 BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.

11 Gustavo Barroso foi deputado federal de 1915 a 1918. Em 1923, foi eleito para a Academia Brasilei-

ra de Letras. Foi diretor do DIP na ditadura Vargas. Hendrik Kraay, Vitor Izecksohn e Celso Castro informam que o autor “publicou uma série de histórias anedóticas das campanhas militares, além de uma História militar do Brasil, assim colaborando também para a ressurreição de antigas tradi- ções militares.” Ver CASTRO, Celso, Victor Izecksohn; KRAAY, Hendrik (Org.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 15.

nas milícias.12 O trabalho de Barroso pode servir de referência para con-

sulta de termos e expressões militares, mas é destituído de interesse para maiores preocupações analíticas.

Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, tra- ta topicamente sobre as milícias Henriques. Buscando um enquadramen- to geral, o autor indica sua formação no contexto das guerras pernambu- canas e sua existência nas diversas capitanias da América portuguesa. Em uma breve nota explicativa, aponta que “Henriques” seria a “designação de muitos corpos de escravos libertos organizados por Henrique Dias nas

guerras holandesas”.13 Preocupado com questões mais amplas, buscando

promover uma análise sobre administração colonial, as milícias de cor são descritas de modo geral, sem haver uma problematização do tema.

Raymundo Faoro, buscando uma interpretação sobre o Brasil – no livro Os Donos do Poder, publicado em 1958 – considera que as milícias tiveram papel fundamental para manter a ordem pública e conter a tur- bulência social. Em sua leitura, ao alcançar os maiores postos do oficialato miliciano, “o mulato ganhava atestado de brancura.” E aqui o autor iden- tifica o que seria um ponto de tensão: a concessão de patentes. Afinal, “as patentes afidalgam, levam o mulato e o negro livre a desprezar o trabalho

para se elevar verticalmente, com o galão nobilitador”.14 Ainda que não

aprofunde a análise (e trate brevemente do tema) é interessante notar a compreensão das milícias de cor como um meio de busca por prestígio e

status social. Ao contrário de Caio Prado, cuja análise se sustenta numa

abordagem voltada para o econômico, Faoro aponta caminhos a serem seguidos e identifica questões de ordem política e social que serão discuti- das pela historiografia recente (a busca por prestígio e distinção social, o branqueamento através dos cargos do oficialato superior, a tensão provo- cada pela concessão de patentes etc).

Os anos de 1980 foram um marco fundamental para os estudos da es-

cravidão no Brasil, de um modo geral, e das milícias em particular.15 Como

indica a historiadora da escravidão Silvia Lara:

A partir da década de 1980, os estudos sobre a escravidão dos africa- nos e seus descendentes no Brasil passaram por transformações que

12 BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000. p. 16. 13 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2007. p. 312. 14 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo:

Ed. Globo, 2001. p. 226.

15 O livro de Russell-Wood foi tardiamente traduzido e publicado no Brasil em 2005. Para um estudo

detalhado da historiografia da escravidão ver capitulo 1 “Africanos e europeus: historiografia e per- cepções da realidade” e o Epílogo, preparado para finalizar e atualizar o debate historiográfico do livro na edição brasileira )”Considerações retrospectivas, atuais e prospectivas”. Ver A. J RUSSELL- -WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Ver também, Stuart B. Schwartz, B. A historiografia recente da escravidão brasileira. In: SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. p. 21-82; e LARA, Sílvia Hunold. Escravi- dão no Brasil: balanço historiográfico. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, 1992.

redimensionaram a abordagem do tema. Questionando amarras estru- turais de paradigmas explicativos fixados na década de 1960, vários pes- quisadores enfatizaram a necessidade de procurar outras perspectivas de análise. Ao criticar o enfoque estritamente macroeconômico e a ênfase no caráter violento e inexorável da escravidão, observaram que o resultado da maior parte da produção sobre o tema era uma história que, mesmo sem o desejar, apoiava-se numa ótica senhorial que era, inevitavelmente, ex- cludente. Recuperando movimentos e ambiguidades que antes poderiam parecer surpreendentes, valorizaram a experiência escrava, que passou a ser analisada a partir de outros parâmetros.16

Temáticas como a família escrava, as irmandades católicas leigas, aco- modações e solidariedades, entre outras, foram responsáveis por uma

nova compreensão da escravidão na historiografia brasileira.17 Nesse

contexto, aproximadamente 24 anos depois da publicação do livro de Raymundo Faoro, A. J. R. Russell-Wood aprofunda a análise e enfatiza as tensões provocadas pelas ações dos livres e libertos, africanos e seus des- cendentes. A forte presença destes segmentos da população teria como expressão mais reconhecida as milícias de cor e as irmandades católicas leigas, espaços que serviriam para uma vivência de sociabilidade que, em outras esferas da sociedade, dificilmente escravos e forros encontra-

riam.18 A argumentação básica do autor valoriza as milícias de cor como

“porta-vozes das aspirações e reivindicações dos negros e mulatos livres”. 16 LARA, Silvia Hunold. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na Amé-

rica portuguesa. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de governar: idéias e práticas políticas no império português: séculos XVI a XIX. 2. ed. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2007.

17 ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro

1808-1821. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988; Azevedo Célia Maria de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. Campinas, SP: Anablume, 1987; CHIAVENTO, Júlio José. O negro no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1980; CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985; FRAGOSO, João Luís; FLORENTINO, Manolo G. Marcelino, filho de Inocência crioula, neto de Joana Cabinda: um estudo sobre famílias escravas em Paraíba do Sul (1835-1872). Estudos Eco- nômicos, [S.l.], v. 17, n. 2, p. 151-74, 1987; GOLDSCHMIDT, Eliana. A motivação matrimonial nos casamentos mistos de escravos. Revista da SBPH, Curitiba, v. 3, p. 1-16, 1986-87; KARASCH, Mary. Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850. New Jersey: Princeton University Press, 1987; LARA, Sílvia Hunold. Campos de violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; LARA, Sílvia Hunold. Escravidão. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 16, 1988; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; MOTT, Luiz R. B. Uma santa africana no Brasil colonial. D. O. Leitura, São Paulo, v. 6, n. 62, 1987; MOTT, Luiz R. B. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988 REIS, João José. Poderemos brincar, folgar e cantar...: o protesto escravo nas Américas. Afro-Ásia, Salva- dor, v. 14, p. 107-120, 1983; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986; REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (Org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

18 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

Três das principais reivindicações seriam: soldo, privilégios e ascensão

aos postos superiores de seus regimentos.19

Russell-Wood avançou de modo substancial em relação às análises an- teriores. Sua obra pode ser vista como um divisor de águas na historio- grafia no que diz respeito aos estudos das milícias de cor no Brasil. Depois dele alguns estudos bastante recentes têm dedicado análises sobre os mi- licianos Henriques. Tratando das vilas canavieiras de Pernambuco, Kalina Vanderlei Silva debate a possibilidade de ascensão social dos homens de cor (escravos ou libertos) através da organização militar portuguesa. A autora entende que, “longe de serem compostas com os marginais e ex- cluídos, como o exército regular, esses terços representam um espaço de

assimilação e ascensão.”20 Francis Albert Cotta trata das milícias de cor

numa capitania que considera sui generis: Minas Gerais. De acordo com o autor, “por ser uma capitania de centro, isso é, não ter litoral ou fa- zer fronteira com as possessões da Espanha, os seus corpos militares, e consequentemente as milícias negras ali formadas, se especializaram

na manutenção da ordem”.21 Cotta entende que os milicianos negros, ao

conquistarem relativa mobilidade social através dos cargos que exerciam, estavam se inserindo na sociedade escravista. No entanto, acredita que “não se pode desprezar o fato de que alguns negros ao se alistarem nos corpos militares estariam desenvolvendo estratégias de resistência ao sis-

tema escravista”.22

De modo geral, focalizando diferentes capitanias, os trabalhos recen- tes sobre as milícias apresentam um consenso quanto às pretensões de as- censão social dos homens de cor ao procurarem se integrar na “estrutura

militar” portuguesa. As milícias amorteciam possíveis tensões e ao mes-

mo tempo abriam um canal para o desenvolvimento de solidariedades en- tre forros e libertos, africanos e seus descendentes. Um ponto pouco va- lorizado nos estudos, sejam os mais recentes ou os clássicos, é a presença diferenciada de africanos alforriados nas milícias. O foco deste trabalho são as milícias de cor na capitania do Rio de Janeiro, onde há uma forte presença de africanos alforriados nos altos cargos do oficialato miliciano. São em sua maioria homens vindos da Costa da Mina, que obtiveram sua 19 O autor valoriza as tensões que os privilégios concedidos aos homens de cor ocasionavam. No ano

de 1796, em Salvador, tais tensões ficam evidentes. O governador apresenta ao príncipe regen- te uma proposta de reforma da estrutura de comando do regimento dos Henriques. A proposta defendia a abolição dos postos superiores (coronel e tenente-coronel) que eram ocupados por ho- mens de cor e a substituição por um sargento-mor branco. Tal reforma foi implementada, o que gerou uma série de insatisfações. A oficialidade de cor protestou junto a coroa e, em 23 de julho de 1802, o príncipe regente revogou a reforma retomando, assim, à organização prévia de comando (RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei- ra, 2005. p. 140-142).

20 SILVA, Kalina Vanderlei. Os Henriques nas vilas açucareiras do Estado do Brasil: tropas de homens

negros em Pernambuco, séculos XVII e XVIII. Estudos de História, [S.l.], v. 9, n. 2, 2002. p. 18.

21 COTTA, Francis Albert. Milícias negras na América Portuguesa. Klepsitra: Revista Virtual de His-

tória, [S.l.], v. 27, p. 3, 2007. p. 3

alforria por aquisição (o que indica capacidade de acumulação de recur- sos) e ocuparam cargos de importância tanto na direção das irmandades quanto na oficialidade “de cor”, de onde derivava sua posição de destaque no conjunto da escravaria africana e também junto a outros setores da sociedade.