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As milícias Henriques no Rio de Janeiro

Durante a segunda metade do século XVIII, por conta do conflito luso- -castelhano e a consequente necessidade de milícias nas partes extremas dos domínios americanos, ocorreu um crescimento substancial das mi-

lícias de cor existentes na América portuguesa.23 A Carta Régia de 22 de

março de 1766 – publicada no Rio de Janeiro pelo Conde da Cunha em 14 de Janeiro de 1767 – é bastante clara em suas pretensões:

Mandeis alistar todos os moradores das terras da vossa jurisdição, que se acharem em estado de poderem servir nas Tropas Auxiliares, sem exce- ção de Nobres, Plebeus, Brancos, Mestiços, Pretos, Ingênuos e Libertos e a proporção dos que tiver cada uma das referidas classes, formeis os Terços de Auxiliares e Ordenanças, assim de cavalaria como de Infantaria, que vos parecerem mais próprios para a defesa de cada uma das comarcas de seu Estado: criando os oficiais competentes; e nomeando para disciplinar cada um dos ditos Terços.24

Segundo Russell-Wood, foi a partir desta ordem régia que o número

de Terços25 de homens de cor aumentou significativamente. Não existem

registros que indiquem a formação exata das milícias de cor no Rio de Janeiro. Este é, aliás, um problema que perpassa praticamente todos os trabalhos sobre os Henriques. Excetuando a cidade de Salvador, onde o Terço de Henrique Dias se formou, não foi encontrada documentação sobre essas milícias propriamente. No entanto, através da biografia de alguns oficiais, é possível saber que o corpo dos Henriques já estava em 23 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2005. p. 133. Ver também, Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

FIGUEIREDO, Christiane Pagano de Mello. A guerra e o pacto: a política de intensa mobilização militar

nas Minas Gerais. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Victor; KRAAY, Hendrik. Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

24 AN/RJ, códice 73, vol 1, Secretaria de Estado do Brasil. fl. 243.

25 É importante destacar que a documentação de época usava os termos “Terços ou Regimentos” de

modo indeterminado. Segundo Rafael Bluteau, em seu Vocabulário Portuguez e Latino, Terço corres- ponde ao que os Romanos chamavam Legião e os Alemães, Franceses, etc, chamam Regimento. Dividiam os Romanos em determinadas porções toda a Infantaria do Exército, e lhe chamavam Legiões, mas eram muito numerosas, tanto que a Legião antiga contava com 3 mil infantes; os Regimentos dos Alemães, Franceses, etc, a que nós chamamos Terços, por ser a terça parte de um Regimento Francês ou Alemão. R. Bluteau, Vocabulário portuguez e latino, verbete “Terço”. Moraes e Silva define Terço “como uma por- ção de soldados, que tem variado no número de companhias, quase um regimento.” Os dicionários consultados estão digitalizados na íntegra no portal do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>.

atividade no Rio de Janeiro em 1759. Naquele ano, Ignácio Gonçalves do Monte era descrito em sua Habilitação Matrimonial como Capitão do

Terço dos Homens Pretos.26

Quem eram os homens livres e libertos que ingressavam nas milícias? Quais os significados de suas escolhas? A microanálise, através da elabo- ração de biografias, pode ser um importante método de estudo para a ob- tenção de algumas respostas. Segundo Mariza de Carvalho Soares,

no que diz respeito ao estudo das biografias no campo da escravidão, um conjunto de trabalhos abriu caminho para a produção biográfica recente. A leitura destes trabalhos solidificou a idéia de que a sociedade colonial impõe certos limites à formas de organização da população escrava e forra, mas, por outro lado, eles aprendem a se mover e se organizar no interior da ordem colonial – hierárquica e escravista –, de modo a criar alternativas concretas de vida e ascensão social, de acordo com as condições particula- res, que cada caso oferece.27

O primeiro ponto fundamental a ser compreendido diz respeito ao ca- ráter “simbólico” de que estava revestida a inserção em tais companhias de milícias. Os homens que nelas se inseriam estavam em busca de privilégios e distinções que os mais altos postos do oficialato miliciano propiciavam. Estavam plenamente “impregnados” de certos códigos hierárquicos tão característicos de uma sociedade de Antigo Regime, onde era possível de- finir a posição de um indivíduo por suas insígnias, seus privilégios e suas obrigações. Segundo Schwartz, trata-se de uma sociedade que “viabiliza

legalmente, na prática, as hierarquias de graduação, privilégio e honra”.28

Um aspecto deve ser ressaltado ao analisarmos algumas destas bio- grafias: muitos oficiais das milícias de cor, como o próprio caso de Ignácio Gonçalves do Monte, eram africanos. Esses homens, vindos particular-

mente da Costa da Mina,29 parecem formar um grupo coeso, estabelecen-

do uma série de redes de relações (pessoais, financeiras etc) por meio das irmandades e dos corpos de milícias. Em sua maioria eram homens bem 26 SOARES, Mariza de Carvalho. A biografia de Ignácio Monte, o escravo que virou rei. In: VAINFAS,

Ronaldo; SANTOS, Georgina Silva dos; NEVES, Guilherme Pereira das (Org.). Retratos do Império: trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF, 2006. p. 47-68.

27 SOARES, Mariza de Carvalho. A biografia de Ignácio Monte, o escravo que virou rei. In: VAINFAS,

Ronaldo; SANTOS, Georgina Silva dos; NEVES, Guilherme Pereira das (Org.). Retratos do Império: trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF, 2006. p. 48.

28 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835).

São Paulo: Companhia da Letras; Brasília, DF: CNPq, 1988. p. 210.

29 Grande parte da escravaria vinda para o Brasil saiu da Costa da Mina nos séculos XVIII e XIX.

Sobre os chamados “pretos-minas” na cidade do Rio de Janeiro, ver SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Ver da mesma autora: O Império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro, no século XVIII. Topoi – Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, Rio de Janeiro, v. 4, p. 59-83, 2002; A ‘nação’ que se tem e a ‘terra’ de onde se vem: categorias de inserção social de africanos no Império português século XVIII. Estudos Afro- -Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 26, p. 303-330, maio/ ago. 2004.

sucedidos na hierarquia miliciana e estabeleciam vínculos de grupo (ao serem testemunhas de casamento, testamenteiros, fiadores etc). A análi-

se do tripé milícias, irmandades30 e “ofícios mecânicos”31 é um importante

objeto de pesquisa para a melhor compreensão de uma parcela de homens de cor livres e libertos que buscaram prestígio e distinções, acumularam

pecúlio e formaram, assim, uma elite não-branca.32

A Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no Rio de Janeiro,

era um dos espaços onde os pretos-minas construíam sua sociabilidade.33

Muitos dos oficiais dos Henriques ocupavam cargos de destaque nas ir- mandades, complexificando ainda mais as redes de relações que os unem. Tais redes ficam ainda mais claras ao seguirmos os movimentos do Capitão Ignácio Gonçalves do Monte, que pode ser considerado a síntese perfeita dos bem sucedidos componentes do oficialato miliciano. Africano, trafica- do da baía do Benim para o Rio de Janeiro, Monte tem uma história bas- tante representativa. É batizado no ano de 1742, na Freguesia de Nossa Senhora da Candelária, e em 1757 recebe sua alforria. Em 1759, forro, Ignácio se casa com Victória Correa. Em sua habilitação de casamento já é identificado como capitão do Terço dos Homens Pretos. Em 1762, se torna rei da Folia dos Mahi na Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Ao analisar o caso de Ignácio Mina, Mariza de Carvalho Soares vê uma estreita relação entre irmandades, regimentos de milícia e o ofício de bar- beiro, que desempenhou ao longo de sua vida. Relação que, nas palavras da autora, faz “surgir um tipo de poder tão próprio à sociedade colonial em que religião, hierarquia social, profissão e outros fatores concorrem 30 Sobre as irmandades, ver as análises clássicas de BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmanda-

des leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. Ver também SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Dia- mantino no século XVIII. São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1978. (Brasiliana, v. 357); e também o já citado SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravi- dão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000..

31 Tratando da primeira metade do Oitocentos, ver PIMENTA, Tânia Salgado. Sangradores no Rio de

Janeiro na primeira metade do oitocentos. In: PORTO, Ângela (Org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. 1 CDROM.

32 Não só os homens de cor acumularam “riqueza”. Sobre as mulheres que acumularam pecúlio e for-

maram uma “elite de cor”, ver FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese para concurso de titularidade defendida junto ao Departamento de História da UFF, Universidade Federal Flumi- nense, Niterói, 2004. Também da autora, FARIAS, Juliana B. Sinhás pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras no sudeste escravista (sécs.XVIII-XIX). In: SILVA, Fran- cisco Carlos Teixeira da; MATTOS, Hebe Maria; FRAGOSO, João (Org.). Ensaios sobre História e Educação. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2001. p. 289-329.

33 As chamadas “irmandades de homens pretos” apresentam-se inseridas num contexto mais geral

das instituições coloniais, estas confrarias – utilizando-se dos argumentos de Russell-Wood – ofe- recem espaços que serviriam para a defesa de interesses coletivos e individuais. Tratarei aqui da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia que foi formalmente criada, na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1740. Sobre o tema ver o conjunto de trabalhos de Mariza Soares, em especial, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

para situar pessoas, famílias e grupos na hierarquia social”.34 O capitão

guardava consigo a poupança dos irmãos da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia e também lhes emprestava dinheiro; em 1763 era inven- tariante da preta forra Quitéria Fernandes da Silva; redige e é testemunha no testamento de Luiz Francisco do Couto (Mina forro); compra fazendas para sua casa com André Correa Brandão e José Duarte de Almeida com casa na Rua do Rosário; ambos são seus fregueses de barba e sangria; em 8 de dezembro de 1764 foi testemunha do casamento dos pretos mina Luiz

da Costa e Tereza de Jesus.35

Em sua habilitação de casamento, Luiz da Costa declara ser Mina for- ro, morador na cidade do Rio de Janeiro, na rua da Pedreira. Afirma ain- da que “vive de ser cozinheiro” e que morou “dois anos na Freguesia das Mercês e depois veio para esta Cidade aonde até o presente só tem assisti-

do na Freguesia de Santa Rita.”36 Para afiançar suas palavras foi chamado

como testemunha oaquim José, o capitão dos Henriques J:

Aos dois dias do mês de maio de mil setecentos noventa e sete o Capitão Joaquim José [Mahu], do terço dos Henriques, solteiro, natural da Costa da Mina, e morador nesta Cidade na Rua dos Quartéis do Regimento de Bragança, que vive do ofício de Pasteleiro, testemunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade, de idade que disse ser de cinquenta e seis anos.37

Sendo perguntado a respeito do conteúdo na petição de casamento de Luiz da Costa, o capitão revela que o conheceu, “há oito anos pouco mais ou menos”, na cidade de Lisboa, e que Luiz da Costa é de nação Mina, batizado na Cidade de Lisboa, onde foi liberto, “e daí a um ou dois anos saiu em direção desta cidade, para onde também veio ele testemunha na

mesma ocasião em outro Navio, e daqui não saiu mais a parte alguma”.38

Luiz da Costa estabelece uma série de relações de “apadrinhamento” com os oficiais dos Henriques.

Gonçalo Cordeiro (mina-mahi forro), além de ser o secretário da

Congregação Mahi,39 ocupa o posto de alferes dos Henriques. Em sua ha-

34 Ver a biografia completa e detalhada de Ignácio Monte em Soares. “A biografia de Ignácio Monte”.

pp. 48-52.

35 As informações estão num banco de dados biográfico, de africanos minas forros na cidade do Rio

de Janeiro no século XVIII que conta atualmente com cerca de mil nomes e dados biográficos cor- respondentes. O referido banco ainda está em fase de elaboração e o trabalho sobre os milicianos aqui apresentado surgiu de sua representativa presença no conjunto das biografias por mim orga- nizadas através do já mencionado projeto coordenado pelo professor Maurício Abreu.

36 ACMRJ - Habilitações Matrimoniais, notação 9908, cx. 1300. 37 Ibidem.

38 Ibidem.

39 Gonçalo Cordeiro é amigo de Ignácio Monte e membro da Congregação Mahi estudada por Soares.

Ver SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. cap. 6.

bilitação de casamento declara “que vive de ser Barbeiro”. Ao ficar viúvo pede que a Irmandade de Santa Efigênia lhe passe por certidão do dia, mês e ano em que foi sepultado sua falecida esposa, Joana do Prado. João Luiz de Figueiredo escrivão da Irmandade certifica que

revendo o Livro em que se lançam os assentos que se fazem dos falecidos que se sepultaram na capela desta Irmandade consta que no dia cinco de Agosto de mil setecentos noventa e dois deram sepultura nesta capela, a Joana do Prado, mulher do suplicante a qual é Irmão desta Irmandade.40

João Luiz de Figueiredo (mina forro) é outro personagem impor- tante nesta teia de relações. Além de ocupar cargo de vice-regente

da Congregação Mahi,41 é capitão da terceira companhia das milícias

Henriques do Rio de Janeiro. No ano de 1803, assina a lista de dispensas

de soldados de sua companhia.42 Em 1805, é o terceiro testamenteiro de

Vitória Rodrigues (mina forra) e irmã da Irmandade de Santo Elesbão e

Santa Efigênia.43 A irmandade ainda possuía outros membros com hon-

ras militares: Manoel Martins da Fonseca e Manoel Mendes da Conceição

eram capitães dos Henriques.44 Ambos africanos alforriados, vindos da

Costa da Mina. Temos ainda João Fogaça, preto forro Mina, morador na Rua dos Pescadores, que “vive de sua agência”. Em 9 de dezembro de 1771 se casa com Maria da Ressurreição, crioula forra. Em sua habilita- ção de casamento declara ser segundo ajudante do Terço dos Henriques. Aproximadamente 26 anos depois, em 1797, é elevado ao posto de pri- meiro ajudante do “Batalhão de Infantaria Auxiliar dos homens pretos desta Cidade de que é capitão comandante José dos Santos Teixeira”. Não encontrei informações detalhadas do dito capitão. Em 1797, consultando a lista de nomeação de oficiais, José dos Santos Teixeira já assinava como comandante dos Henriques. Tendo em vista que o cargo de comandante, antes de 1802, era ocupado pelo capitão mais antigo do Regimento, supo-

nho que Teixeira já desempenhava o cargo há um longo período.45

Como todas as tropas auxiliares, as milícias representavam forças que não eram remuneradas. Dessa forma, em paralelo ao posto ocupado na milícia, esses homens mantinham um ofício mecânico indispensável para seu sustento. Ofício que serviria ainda como importante maneira de fazer contatos sociais e acumular pecúlio. É interessante notar que, ao mesmo tempo que se dedicavam a uma atividade mecânica especializada (o que 40 ACMRJ - Habilitações Matrimoniais, notação 27653, cx. 1799.

41 Ver SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no

Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. cap. 6.

42 AN/RJ, cx. 484, pct 02. Vice-Reinado. Correspondência de capitães-mores e comandantes de regi-

mentos de vilas do Rio de Janeiro.

43 ACMRJ. Livro de Testamentos e Óbitos da Sé, 1776-1784, fl. 144. 44 ACMRJ. Habilitações Matrimoniais, notação 32100.

lhes conferia um status socialmente inferior em relação aos “brancos”, mas elevado no conjunto da escravaria), através das milícias alcançavam os mais altos postos do oficialato miliciano. Seguindo as análises desen- volvidas por Russell-Wood e Soares, reforço aqui que esses “homens de cor” estavam em busca de distinções e privilégios que os afastassem tanto quanto possível de seu ponto de partida: escravos e trabalhadores braçais sem qualquer qualificação profissional que os distinguisse.

Parto do pressuposto que a massa da soldadesca não alcançava a pos- sibilidade real de ascensão. Ao contrário da oficialidade, os soldados pare- cem viver em situação de pobreza. Exemplo disto é André Pires Sardinha, crioulo forro, soldado do corpo dos Henriques. André recebe sua alfor- ria em 1794. Um ano depois, em 1795, em sua habilitação de casamen- to André declara que “é um pobre preto que há pouco tempo se libertou do Cativeiro” e não tem como arcar com as despesas dos banhos. Mesmo considerando que a retórica da pobreza é uma constante na época, o mes-

mo argumento não aparece em outras petições do período.46

Meu interesse é o oficialato (superior e inferior) dos Henriques – sar- gento-mor comandante, ajudantes, capitães, tenentes, alferes etc. Meus estudos estão voltados para esse oficialato, uma minoria, por certo, mas é entre eles que se pode encontrar maior volume de informação e tam- bém situações extremamente ricas para pensar a questão da mobilida- de desses africanos alforriados. Os postos mais cobiçados na hierarquia miliciana eram os de sargento-mor comandante e ajudante, pois, além dos privilégios naturais que os cargos conferiam, ainda proporcionavam soldo. Em provisão do Conselho Ultramarino de 26 de Julho de 1797, é determinado que se iguale em soldos, graduações e honras os sargentos- -mores e ajudantes do Terço dos Henriques do mesmo modo feito em

Pernambuco.47 O posto de sargento-mor era a maior qualificação possí-

vel dentro da hierarquia miliciana. Tratando da Revolta dos Alfaiates, de 1798, em Salvador, Russell-Wood afirma que

umas das principais testemunhas foi Joaquim José de Sant`Anna, “bar- beiro” negro que comprara sua alforria e que era, na época, capitão de uma companhia do Regimento Henrique Dias. Os conspiradores contavam com seu apoio e de sua companhia e tentaram minar-lhe a lealdade insinuando que um branco seria nomeado sargento-mor de seu regimento, posto este que Sant`Anna cobiçava a ponto de frequentar cursos extras com as tropas regulares para melhorar seu conhecimento militar.48

46 ACMRJ. Habilitações Matrimoniais, maço 88, doc. 34. 47 AN/RJ, Secretaria de Estado do Brasil, códice 204, vol. 04.

48 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

É interessante notar o quão cobiçado era o posto quanto o fato de José de Sant`Anna ser “barbeiro”. O provimento do posto mais alto da hierar- quia miliciana envolvia uma série de questões. Incluindo, como no caso do Rio de Janeiro, o bom relacionamento estabelecido com o comandan- te geral das tropas, homem branco, nobre, que mantinha estreita relação

com o Vice-Rei.49

Se em meados do século XVIII ocorria uma expansão das milícias de cor, na virada para o século XIX, o caminho seria inverso. No Rio de Janeiro, o corpo dos Henriques era organizado em 16 companhias. Sete estavam estabelecidas na cidade (incluindo uma companhia de granadei- ros) e outras nove foram espalhadas pelas diferentes “freguesias desta

circunvizinhança”.50Cada companhia era composta por seus três respecti-

vos oficiais (capitão, tenente, alferes), dois sargentos, um porta bandeira e quatro cabos de esquadra. Com a chegada do novo comandante geral das tropas José Narcizo de Magalhães de Menezes, foi implementado um importante plano de reforma que reduzia significativamente o número das companhias Henriques.

Em abril de 1802, o comandante geral envia ao vice-rei, D. Fernando