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Moema Amélia Serpa

No documento contradições e desafios para a saúde (páginas 69-76)

Boa tarde! Eu gostaria de iniciar agradecendo o convite para estar aqui. É muito importante a temática deste seminário. Na minha experiência, discutir o tema trabalho tem sido uma forma de resistência. Neste contexto que estamos debatendo aqui no seminário, o trabalho vem sendo um foco de descaracterização e ameaça da vida dos indivíduos. Discutir o trabalho é um dos mecanismos que temos para resis-tir e problematizar a realidade.

Eu já fui trabalhadora da saúde. Hoje sou docente e militante deste campo. Vou tentar discutir o trabalho na saúde e no âmbito dos serviços a partir de três eixos. Primeiro, vou observar como esse setor de serviços tem se comportado nesse contexto, diante da contração do emprego industrial e também dos serviços públi-cos. Segundo, vou discutir as particularidades do trabalho no campo da saúde, que é um trabalho complexo, buscando caracterizar esta complexidade. No terceiro eixo, vou trazer esta questão, aproximando-a da gestão do trabalho em saúde no serviço público, que é o objeto da minha pesquisa.

Nas experiências que tenho acompanhado, o trabalho no campo do serviço

público vem passando por um processo flagrante de desregulamentação que expres -sa a precarização. Embora exista uma certa naturalização desta questão, isso não deve ser incorporado pelos trabalhadores da saúde. A precarização, dos serviços e do próprio trabalho, os baixos salários, a rotatividade e os vínculos precários são elementos que constituem este fenômeno.

Buscarei abordar a precarização a partir de três pontos: da especificidade do

serviço, da particularidade do trabalho na saúde e do processo de desregulamentação do trabalho e dos serviços. Uma primeira questão que a administração pública tem interpretado é que a precarização do trabalho nos serviços públicos é uma questão de vinculo. Se o vínculo possui bases formais, a precarização é eliminada. Parto do princípio de que a precarização vai mais além do que a formalização do vínculo. Por

exemplo, a situação dos Agentes Comunitários de Saúde e outras categorias profis -sionais da Estratégia Saúde da Família, em muitos municípios, ainda não é formali-zada. O Governo Federal, ao lançar um projeto como o DesprecarizaSUS, parte do pressuposto de que, formalizando os contratos de trabalho e os vínculos, há uma eliminação da precarização. Eu acredito que não seja esse o caminho.

Outro elemento diz respeito a uma particularidade do campo da saúde, que é a utilização efetiva da força de trabalho. Mesmo com todas as inovações, não podemos abrir mão do indivíduo, que é responsável pela escuta, pelas indagações, pela

prescri-ção dos medicamentos, pela realizaprescri-ção dos exames, enfim, pelo cuidado. Apesar de

todo o avanço tecnológico, não existe uma sobreposição ou uma eliminação da força de trabalho no campo da saúde. Ao contrário. Cada vez que um novo recurso

tec-nológico é implantado, há uma necessidade de formar novos profissionais para que

haja o manejo daquele recurso. A dispensa da força de trabalho ocorre por outros elementos, mas não porque houve um incremento de tecnologia. É diferente de ou-tros setores, como na indústria ou no setor bancário, em que a inovação tecnológica diminuiu a incorporação de força de trabalho.

Outra questão é que o campo da saúde tem sido uma porta de entrada para introduzir a lógica da privatização nos serviços públicos. Este é um elemento impor-tante. A imposição da lógica mercantil entra nos serviços públicos e a saúde ultima-mente tem sido seu grande alvo. A partir dos anos 2000, há uma institucionalização da incorporação da lógica do mercado pelos serviços e, principalmente, os serviços de saúde.

Um último elemento é que, na saúde, apesar de todo este processo, há um grande movimento de resistência, através da organização de comissões, fóruns de discussão e conferências. É esta resistência que permite que o Sistema Único de Saú-de ainda exista e que tenhamos conseguido implantá-lo nos anos 1990. Em função desta resistência, observamos avanços que se expressam pela manutenção dos servi-ços já existentes e pela não desestruturação completa do SUS.

No campo de serviços, alguns autores já apontam que, desde os anos 1970, no Brasil e, principalmente, na Europa, os serviços públicos vêm assumindo a lógica de gestão do setor privado, a partir da reestruturação e reorganização do capitalismo. O setor de serviços tem incorporado a força de trabalho eliminada pelo setor produti-vo, mas não totalmente. No entanto, houve um crescimento do setor de serviços que ampliou seu escopo para um conjunto de outras atividades. Como isso vai se dar no serviço público? O que serviço público tem a ver com lucratividade? Por que a lógica do público deveria diferir da lógica do privado?

A lógica do privado é a lógica da produtividade, da lucratividade, onde a força de trabalho e o serviço prestado têm que responder a um padrão de produtividade e lucratividade. O serviço público tem uma intenção, um objetivo de prestar aquela atividade para atender uma necessidade do indivíduo e do coletivo. Em função disso, existem duas lógicas distintas, a do setor privado e a do setor público, mas que no atual momento se imbricam e se confundem. Através da indústria de medicamentos e de equipamentos hospitalares, há uma incorporação de vários mecanismos da ló-gica privada no serviço público. Pensando o trabalho em saúde como uma atividade que precisa do trabalho humano de forma intensa e que pressupõe interação com o

outro, que é o usuário, esta relação é fundamental para que haja um diagnóstico, além do diálogo e da interação, o apoio diagnóstico, o conjunto de ações que não são só resultado do pensamento ou da vontade, mas que se dão em função da vinculação

de vários procedimentos paralelos, como exames complementares. Refletindo sobre

essas particularidades do setor saúde, como a lógica do privado aparece no trabalho na área? Pela desregulamentação do setor.

Desde os anos 1990, com a Emenda Constitucional 19, um legado do gover-no Fernando Henrique Cardoso, os serviços públicos se transformaram gover-no grande

vilão dos problemas fiscais do Estado. A professora Elaine Behring, da faculdade de

Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, denomina a reforma administrativa do Estado, de 1994, de um movimento de contrarreforma, pois vai concretizar a desestruturação e desregulamentação do trabalho no Brasil, não só no setor privado, mas também no setor público. A Emenda Constitucional 19 quebra com o estatuto da estabilidade do servidor público, legisla sobre a isonomia salarial e o concurso público, abrindo possibilidade de ingresso no serviço público sem con-curso. Entre os anos de 1994 até 2003, nos municípios de Campina Grande e João Pessoa, não houve nenhum ingresso de trabalhadores em determinadas funções, há um decréscimo muito grande, porque foi um período de alta rotatividade até 2003, ano do reestabelecimento dos concursos.

O saldo deste período foi a quebra da isonomia, da estabilidade e a não obri-gatoriedade do ingresso no serviço público através de concurso, possibilitando a institucionalização das mais diversas formas de vínculos temporários. O que

ante-riormente era utilizado para funções e atividades especificas em caráter emergencial,

basicamente para a educação e a saúde, expandiu-se para todas as áreas do serviço público. As Universidades são um exemplo muito claro deste contexto, com a con-tratação de professores substitutos sem qualquer vínculo com a instituição, e uma

grande rotatividade de profissionais, uma vez que este tipo de contrato só poderia

ser renovado por mais um ano.

No ano de 1998, com a Emenda Constitucional 20, responsável pela refor-ma da Previdência iniciada pelo governo FHC e concluída por Lula, os servidores públicos perderam direitos já assegurados pela Constituição e pelo Regime Jurídico

Único. Estas duas medidas são bastante significativas e vão constituir um processo

de desregulamentação do trabalho nos serviços públicos, impactando no ingresso formal e proteção dos direitos trabalhistas, bem como fazendo avançar o processo de precarização do trabalho. Durante o governo Lula, nos anos de 2004 e 2005, as Emendas Constitucionais 46 e 47 representam a efetivação da reforma previdenciá-ria. Recentemente, em 2012, no governo Dilma, estabelece-se a instituição da previ-dência complementar para o serviço público. Os trabalhadores que ingressarem no serviço público a partir deste período não terão mais aposentadoria integral, deven-do recorrer a um sistema de previdência complementar para alcançar o mesmo teto

salarial que os demais. Assim, essas reformas que vêm acontecendo, desde os anos 1990, não se restringem somente aos trabalhadores em exercício, mas também aos aposentados. Muitas vezes, os trabalhadores do serviço público não se dão conta dos resultados que essas medidas vão ter a longo prazo. A mobilização dos trabalhadores por alguma coisa que ainda vai acontecer é bem mais complicada, a não ser quan-do se incluem outras mobilizações, como, por exemplo, a progressão no momento da aposentadoria.

Outro elemento que vai concretizar esse processo de desregulamentação do trabalho, e que tem um caráter bastante claro na saúde, é a quantidade de trabalhado-res ptrabalhado-restadotrabalhado-res de serviço. O próprio Ministério da Saúde, na gestão de Humberto Costa, em 2003, no governo Lula, realizou um estudo e constatou que haviam 800 mil trabalhadores com vínculos precários. E quais foram as ações que o governo fez,

desde esse diagnóstico até o final de 2010? O DesprecarizaSUS, cuja intenção era

desprecarizar os vínculos trabalhistas no campo da saúde, através da instituição de comissões e comitês estaduais e nacionais. Mas, até 2009, ano em que concluí minha pesquisa, não implementou nenhuma ação que conseguisse reverter o processo de precarização no campo da saúde. Dentro deste processo, uma nova modalidade de gestão do modelo de saúde, através da descentralização e da municipalização dos serviços de saúde, transferiu para os municípios a gestão da força de trabalho,

justi-ficando até certo ponto, o processo de precarização do vínculo. Os municípios não têm recursos suficientes para suprir as necessidades das equipes de saúde da família,

dos CAPS, das UPA e, inclusive, do próprio padrão salarial conquistado. No estado da Paraíba, há municípios muito pequenos, com 5 mil, 10 mil habitantes, e é muito difícil para o gestor montar uma equipe de saúde, manter aquela equipe no municí-pio e fazer concurso para que o trabalhador permaneça na carreira, a partir daquele

concurso. Há uma alta rotatividade de profissionais, pois os municípios não têm ca

-pacidade financeira para manter uma equipe própria. Este também é um legado dos

anos 1990, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que vai impedir os gastos com o

funcionário público, o que se torna uma justificativa para o gestor. Existe ainda uma

série de alternativas que possibilitam o estabelecimento de um sistema de saúde que atenda às demandas da população, que são os consórcios e outras estratégias

pensa-das para a manutenção desses trabalhadores fixados nas equipes de saúde no SUS. Para finalizar, gostaria de trazer um outro elemento de grande polêmica, que

é o Programa Mais Médicos. É uma alternativa para atender às necessidades da po-pulação, mas que se dá através de um vínculo de trabalho temporário. É mais uma evidência de que a força de trabalho no SUS tem sido pensada de forma emergencial. O Mais Médicos aparece como uma estratégia para atender algumas demandas da população, mas não vai resolver o problema da precarização do trabalho no campo da saúde. Pode agravar esse problema, sem entrar no mérito de sua nacionalidade, mas contrata um trabalhador para aquela atividade, para ganhar um salário durante

dois anos, mas não faz carreira naquele serviço. Não se pensa em uma carreira para o SUS e para os trabalhadores da saúde.

Nós, docentes e estudantes, temos o desafio de pensar o SUS no que diz res -peito à questão da promoção, do avanço tecnológico, dos insumos, das novas pesqui-sas. Existem vários campos de conhecimento e pesquisadores dentro da saúde, mas é preciso pensar no sistema a partir do seu trabalhador. Estamos pensando a saúde pública de uma maneira inversa, pois consideramos a estrutura e a organização dos serviços, mas estamos esquecendo do trabalhador. Precisamos inverter essa lógica e pensar primeiro no trabalhador de saúde. Organiza-se tudo em termos de estrutura, uma UPA nova, mas quem vai prestar serviço ali? Quais são os tipos de vínculo? Quanto tempo de serviço? Qual é a carga horária? O trabalhador da saúde tem que ser pensado na sua integralidade. Não haverá integralidade para o sistema sem a

in-tegralidade do trabalhador. Quero deixar este desafio e essa provocação para todos

PLATEIA:

A questão é para o Professor Ruy Braga. Na sua apresentação, quando o se-nhor traz alguns dados sobre os baixos salários, a feminilização e a precarização do trabalho no Brasil, nós encontramos um paralelo com a situação dos trabalhadores

técnicos da saúde. Acabamos de realizar uma pesquisa sobre qualificação profissional

destes trabalhadores e encontramos dados que demonstram que a média de salário

também é de 1,5 salários mínimos. Há uma ausência de regulamentação especifica, a formação profissional é menos exigente e está voltada para um grupo de trabalha

-dores menos qualificados. Isso pode demonstrar que os trabalha-dores técnicos da

saúde ocupam muitos postos de trabalho de forma precária. Na nossa observação cotidiana, como docentes destes trabalhadores, também observamos essa tendência, especialmente com os agentes de saúde e com o pessoal administrativo terceirizado. Em relação à organização dos trabalhadores, o senhor aponta uma mudança no Go-verno Lula, a adesão de muitos sindicatos ao projeto de goGo-verno, inclusive dirigindo planos de fundos de pensão de muitas categorias, o que tem contribuído para um enfraquecimento do poder de pressão da classe trabalhadora. Por outro lado, o se-nhor fala sobre uma maior organização política do precariado. Nós gostaríamos que o senhor discutisse esta contradição: ao mesmo tempo em que há um pessimismo em relação à organização da classe trabalhadora no Governo Lula, há um certo oti-mismo em relação a organização deste grupo de trabalhadores chamado precariado. A segunda questão é se podemos fazer uma relação dos movimentos atuais de mo-bilização no Brasil com uma onda de momo-bilização do precariado?

PLATEIA:

Vou dirigir as perguntas ao professor Ruy Braga. Ao recuperar a questão de Chico de Oliveira, “O núcleo racional do problema da modernização periférica deve ser buscado na história da dominação do atraso sobre o moderno na periferia do

sis-tema”, você ressalva que “evidentemente, isso não implica que, do ponto de vista dos

trabalhadores, não existam tendências progressistas no atual momento hegemônico, apenas reconhecemos que a evolução da luta de classes no país é fundamentalmente

reprodutivista e, em consequência, conservadora”. Mais adiante diz ainda: “Não me parece exagerado afirmar que, no Brasil, em grande medida, a consciência da classe trabalhadora se confunde com a consciência do direito a ter direitos”, sendo que esse

tipo de consciência é o que parece emergir nos tempos atuais. Poderíamos deduzir que a luta social orientada por esse tipo de consciência, consciência do direito a ter direitos, é reprodutivista e conservadora? A luta por direitos implica na formulação

de políticas públicas que, a exemplo do PROUNI, tende “a reforçar a regulação dos

conflitos laborais por meio da reprodução de um certo consentimento entre tra

-balhadores” e, ao mesmo tempo, alimentam o capital privado. Em que medida tais

políticas colaboram para o apassivamento da classe trabalhadora, ou geram contra-dições que abririam outras possibilidades para a luta social? Gostaríamos, ainda, que discorresse sobre o papel do sindicato hoje, considerando que existe uma cooptação do sindicato pelo aparelho do Estado e uma incipiente organização do precariado, ainda que orientada pela consciência do direito a ter direitos. Qual a perspectiva do

sindicalismo fazer convergir essa organização com a luta classista? Por fim, na sua

opinião, o precariado está presente entre os manifestantes que têm ido às ruas atual-mente, inclusive com expressões contrárias aos sindicatos e aos partidos?

No documento contradições e desafios para a saúde (páginas 69-76)