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A

S PORAS DA ESALAGEM SE ABRIRAM PARA A ESRADA E O CÉU quente-frio do final da tarde. As cabeças se voltaram para a mulher grávida e o homem alto, atrás dela. Havia três outras mulheres no salão comunal — a estalajadeira e duas que tinham de ser suas filhas. Vanessa bufou o ar e olhou para o teto quando os rostos das três derreteram- se em doçura para sua barriga inchada de possibilidades.

Ela caminhou até uma das mesas, mais lenta do que gostaria. O homem, metido em robes bordados, seguia logo atrás, com uma expressão de respeito bovino. Uma das garotas apressou- se em puxar uma cadeira para Vanessa, mas ela ignorou-a ostensivamente, escolheu outra mesa, e puxou sua própria cadeira. O homem permaneceu de pé, até que ela lhe gesticulou permissão para sentar, o que ele fez com os modos e a afetação de uma donzela.

Vanessa respirou e apalpou uma parte dolorida das costas.

— Meus parabéns, minha senhora — disse a estalajadeira, uma mulher gorda e crespa, suada e leitosa, num sorriso de dentes muito tortos.

— Parabéns por quê? — disse Vanessa. A mulher quase não falteou o sorriso. — Ora, pelo seu filho.

— Vai me dar parabéns também depois que eu usar a latrina nos fundos? — disse Vanessa. — Olhe, acabei de respirar, e o meu coração bateu várias vezes. Estou esperando os parabéns.

O sorriso desandou de um lado.

— Senhora, dar à luz é algo tão especial. — É uma função do corpo.

Uma das garotas tinha se dado conta de algo, e se aproximava incerta da mãe, as sobrancelhas e os dentes de quem tem uma coisa desagradável a falar.

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— Só sei que me doem os peitos. — É o milagre da vida, minha senhora.

— É a primeira batalha da vida. Lembra-se de quando pariu essas duas meninas? Diga- me se não houve dor, se não houve sangue. Você cantou, ou grunhiu? Não defecou? E a força que fez?

Mudez de espanto.

— Imagino que elas berraram e choraram, em vez de gemer de contentamento. Sentiram pela primeira vez o frio do mundo, e estavam também sangrentas e exaustas da batalha. Mas viveram, não é mesmo?

A estalajadeira tinha os olhos afogados. A garota tocava-lhe o ombro, mas ela ignorava. — É a primeira dádiva de Keenn.

E, finalmente, a estalajadeira olhou para sua filha, e olhou para o que ela apontava. Vanessa era uma mulher bela, e impossível de ignorar. Mais alta que a maioria dos homens, uma juba de cabelos ruivos, boca larga e decidida, olhos verdes de martelo. A pele era branca tocada de sol, e o rosto tinha as marcas de uma mulher curtida, e não mais uma jovem. Uma pequena cicatriz no queixo e outras marcas pelo corpo denunciavam uma vida de ações. Não era perfeita, e por isso atraía. Usava um vestido refinado mas prático, resistente, bom para viajar. Botas nos pés, luvas de couro nas mãos, e os antebraços e tornozelos protegidos por metal. A barriga reluzente de vida e os seios fartos escondidos atrás de uma couraça que trazia o símbolo de martelo, machado e espada cruzados. O símbolo de Keenn, o Deus da Guerra.

Vanessa tirou da mochila uma grande maça de guerra, e depositou-a sobre a mesa. Surtiu o efeito desejado, porque a estalajadeira saiu correndo.

— Preferia quando olhavam para o meu traseiro, antes da barriga. O homem que a acompanhava deu um risinho atrás da mão.

Ele fazia um par improvável com Vanessa. Era alto mas arredondado, uma camada fina de gordura recobrindo-lhe cada parte. A cabeça circular e calva quase parecia também estar sob a manta fofa. Seus mantos enfeitados e modos de menina aristocrata davam-lhe um ar inofensivo, como uma ovelha premiada.

O homem chamou uma das garotas, com voz aguda e cheia de floreios. Pediu chá. — Vinho para mim — disse Vanessa, mas foi interrompida.

— Não deveria beber vinho — era um dos clientes da estalagem, um homem de casaca vermelha e um sombrio chapelão escuro.

— Você é minha mãe?

— Não — disse o homem. — Médico.

E disse que Vanessa também beberia chá, pago por ele próprio.

— Esta estalagem está cheia de pessoas que sabem tudo — disse Vanessa.

— Um brinde à senhora — o homem ergueu um caneco. — Seu mau humor é adorável. Vanessa teve que rir, e acabou erguendo seu chá para o estranho.

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Bebeu em silêncio por um tempo, embaçando o rosto no vapor cheiroso, rolando pensamentos incertos na cabeça. inha dores e expectativa, e saudade de lutar.

— Vamos pernoitar aqui, senhora? — disse o homem de mantos, com sua voz de criança. — Você não tem mais magias, não é? Então vamos ter que esperar.

Ele assentiu em silêncio, dando golinhos educados em seu chá.

O estranho espiava os dois, por debaixo de seu chapéu largo e frouxo, interessando-se para desviar a mente de si próprio. Olhara primeiro Vanessa, mas depois concentrara-se no homem. O porte físico, a voz miada e os pêlos finos, moles e raros que trazia no rosto diziam que o acompanhante de Vanessa era um eunuco. O estranho lembrava-se agora de algo que combinava com a etiqueta e as vestes do castrado: havia uma pequena ordem de magos em Wynlla, o Reino da Magia, que fornecia transporte arcano para damas e famílias abastadas. Eram todos emasculados, polidos e gentis, como vasos de porcelana. Ele riu sob o chapéu. A clériga de Keenn era uma dama então, e rica, e precisava chegar rápido a algum lugar. Ler as pessoas era melhor do que ter de pensar nos próprios problemas.

Vanessa bebeu o chá e devorou o que lhe trouxeram, enquanto o eunuco cortava pedacinhos de vegetais e enfiava cuidadosamente na boca. Depois, eles subiram as escadas para quartos particulares que haviam alugado pela noite.

O estranho tentou se ocupar de mais alguma coisa. Puxou da mochila um livro amarrotado, mas logo desistiu do bolor das páginas. Bebeu mais, comeu muito pouco, e notou quando um aldeão, de cara rude e peluda, cochichou qualquer coisa com a estalajadeira. inha olhos de coelho acuado, e logo correu porta afora, com um olhar para as escadas.

O estranho não acreditava em destino, apenas em milhões de pequenas escolhas que, no final, compunham um caminho a ser construído por cada um. Ali estava uma bela escolha, uma bela estrada temporária — uma bela fuga, se ele fosse franco consigo mesmo.

Ele não era herói, e uma clériga de Keenn não era uma donzela em apuros. Mas ele não acreditava em deuses, e por isso uma clériga da guerra era igual a qualquer outra mulher. E ele era um cavalheiro.

Vanessa estava massageando seus pés, desejando que nada daquilo tivesse sequer começado.

O quarto em lusco-fusco de um lampião fraco mostrava os cantos escuros, a cama quase limpa, a sacola com suas roupas e suas armas, e duas moscas no teto. Que era idiotice viajar naquele estado de gravidez ela sabia. Sendo filho de quem era, o que ela carregava na barriga iria viver. Mas ela deveria estar se preparando para a batalha do parto, e de qualquer modo Vanessa há muito deixara de ser aventureira. Massageou o outro pé, e puxou a maça de guerra para mais perto. Já era ruim não vestir armadura, e estar desarmada era insuportável.

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Antes de dormir, fez os exercícios para não deixar a maciez da maternidade escorrer para os músculos. Relembrou suas batalhas e as pessoas que matara, para não deixar que a alma se tornasse maternal. Deitou-se na cama e, dentro de sua cabeça, contou ao filho histórias de morte e de glória, de força e de conflito.

— Mal posso esperar para você ir para a guerra — disse em voz alta.

Havia nela uma satisfação de legado. E, por ter demorado tanto, ainda mais precioso. Vanessa riu de si mesma, mas já imaginava-se treinando a criança em espadas e combate desarmado, curando um braço quebrado e assistindo às brigas infantis. Já se orgulhava dos meninos que, um dia, seriam vencidos pelo seu filho.

Adormeceu. Acordou imóvel.

Vanessa disparou a mão, de instinto, para a maça que repousava ao seu lado. O braço trancou sem se mexer, e ela nem conseguia virar o pescoço. Como uma parede de tijolos pesava- lhe o peito, e era difícil respirar. Sentia-se envolta em um casulo invisível, mas conseguiu revirar os olhos para acompanhar as sombras movendo-se no quarto. entou invocar uma magia de Keenn, mas seus movimentos estavam restritos demais para a prece, e não podia tocar o símbolo sagrado.

— Apenas covardes recorrem a emboscadas — falou com dificuldade, o casulo pres- sionando-lhe os maxilares juntos.

Sentia cheiro de lavanda e incenso, e de coisa limpa. Ouvia o ressoar fofo de sapatos delicados.

— Pode me chamar de covarde, eu não me importo — disse uma voz de mulher. — É melhor entrar escondido em um quarto do que derramar ainda mais sangue.

Vanessa expeliu uma risada à força. — Clérigas de Lena! Eu deveria saber.

Lena, a Deusa da Vida, era uma eterna rival de Keenn. Embora um pregasse a morte e a glória do combate e a outra ensinasse a vida e a paz a qualquer custo, não era comum que houvesse conflito direto entre seus seguidores. Clérigas de Lena — todas mulheres — não acreditavam em confrontos. Clérigos de Keenn procuravam adversários mais valorosos.

Mas Vanessa encontrara exceções.

Um rosto redondo, emoldurado de cachos castanhos, fez-se visível por sobre ela. A clériga tinha lábios muito vermelhos, olhos muito azuis, e bochechas muito coradas, como batatas ape- titosas. rajada em mantos verdes e dourados, uma capa branca por cima de tudo, e um sorriso insuportável. Atrás dela, havia mais passos, mais respirações. Cinco ao todo, Vanessa julgou.

— Você vai encontrar a justiça que merece — disse a serva de Lena.

Vanessa conhecia a magia de paralisação, e sabia que tentar mover o corpo era inútil. Fechou os olhos e focalizou a mente, reduziu os pensamentos a um ponto brilhante que concentrava-se em quebrar o feitiço. Clérigas de Lena adoravam esse tipo de truque.

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— O que foi que eu fiz a vocês? — grunhiu Vanessa. — Pisei em alguma flor? Ou esta é apenas uma agressão gratuita?

Era fácil lidar com monstros, soldados ou guerreiros vingativos: sempre se podia esperar uma espada no escuro, e bastava quebrar uma ou duas cabeças. Não era complicado lidar com magos: eles tentavam matar você de longe, mas uma flechada certeira ou um bom chute tornava metade deles inútil. Era difícil, mas possível, lidar com clérigos rivais: servos de Megalokk ou Ragnar ou mesmo auron ou Khalmyr eram poderosos mas, estudando, sabia- se o que esperar deles.

Nunca se sabia o que esperar de clérigas de Lena.

Elas não podiam ferir um ser vivo, não podiam usar de qualquer tipo de violência, e preferiam morte, escravidão ou qualquer humilhação a desestabilizar as baboseiras cósmicas que, segundo elas, dependiam de sua docilidade. Então, quando clérigas de Lena atacavam, era melhor pensar rápido, porque seriam imprevisíveis.

— Você poderia ser punida por uma vida inteira de crimes, assassina — era, dessa vez, uma voz de homem.

— Um paladino de Lena? — riu Vanessa. — Você está acostumado a seguir ordens de mulheres. Siga as minhas e me tire daqui, cordeiro.

O homem fez-se visível, manto verde sobre armadura dourada, e um pesado cajado nas mãos. Paladinos de Lena podiam lutar, mas nunca matavam — quebravam um braço e choravam de culpa, e geralmente restringiam-se a alguns hematomas.

— As ervas já estão prontas, Ludmilla? — disse a primeira mulher. — Quase — veio a resposta do fundo do quarto.

Vanessa sentia agora um outro cheiro, pungente e verde de remédio. Não conseguia ver o que a tal Ludmilla preparava, tinha a cabeça fixa e os olhos presos ao teto, onde as moscas se agitavam.

— Acham que, se me envenenarem, Lena vai perdoá-los? — Vanessa forçava a voz descontraída, mas um fiapo gelado correra-lhe pela espinha. entava ganhar tempo, para libertar-se do feitiço.

— Não é veneno — disse a primeira mulher. — Porque Lena é piedosa — rosnou o homem.

— Então o que é o tal castigo de Lena? Um purgante? E qual é o meu crime? — como se não fosse nada, mas ela suava de tentativa.

— rês pessoas morreram por sua causa na semana passada — o paladino de Lena cuspiu. — Como se você mesma as tivesse matado. Você foge, assassina, mas não vai fugir agora.

Era verdade, embora ela não estivesse fugindo, e nem soubesse que estivera sendo perseguida. Vanessa passara, numa das inevitáveis paradas de que seu mago eunuco precisava entre os saltos mágicos, em uma vila patética, um ajuntamento formado por quatro fazendas e a casa de uma viúva, tornada estalagem. Havia uma rixa antiga entre duas das famílias,

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duas das fazendas. Ninguém se lembrava de como ou quando começara, mas o fato é que, há gerações, descendentes odiavam descendentes, e brigavam sem nunca resolver. Quando Vanessa chegara, havia muita bebedeira e resmungos, porque dois garotos de uma das famílias haviam prendido e amarrado um filho da outra, e deixado-o na porta de sua casa, vestido de menina e cheio de maquiagem.

Uma brincadeira ou uma ofensa grave, os mais velhos tentavam decidir-se. Vanessa ouviu uma conversa bêbada, e aconselhou os homens: caso fosse ofensa, deveria ser vingada. E a rixa deveria acabar, e só acabaria com um pouco de sangue. Deu-lhes uma espada curta e, para ser justa, o mesmo presente à outra família. Naquela noite, foi dormir satisfeita, porque Keenn ensinava que a luta era o caminho para a força e a única vitória era aquela em combate. De manhã, havia três cadáveres, e uma das famílias fora vencedora.

Ela não havia pensado naquilo desde então.

— A rixa se resolveu — disse Vanessa. — Eu tinha razão. — Pessoas morreram! — rugiu o homem.

— Morrem o tempo todo, e sem resolver nada. — Está pronto, Brenna — disse Ludmilla.

Brenna, a primeira mulher, assentiu com ombros caídos.

odos agora apareceram na visão periférica de Vanessa. Ocuparam-se de montar qualquer coisa, e uma garota saiu do quarto, voltando logo depois com uma chaleira fumegante. A estalajadeira os estava ajudando.

Vanessa concentrava-se, mas não podia quebrar o feitiço. A calma escorria-lhe com o suor, e ela começou a se debater, sem sentir. Brenna ergueu-lhe o vestido até a cintura. Outras posicionaram-lhe na cama, e fizeram força para levantar seus joelhos e abrir suas pernas. Vanessa sentiu a goela fechar.

— alvez alguns digam que você merece coisa pior, senhora — disse Brenna, que parecia ser a líder. — Mas Lena ensina a piedade. Nós não vamos fazer mal a você, mas não podemos permitir que a morte se perpetue.

— Então vão roubar o meu filho.

— Vamos cuidar dele, ou dela, e ele vai viver em um templo de Lena. Longe de você, longe da morte.

A tal Ludmilla apareceu, carregada de anos e fragilidade, toda ossos e mantos. inha uma tigela cheia de pasta verde de cheiro forte, e tentou enfiar uma colher da mistura na boca de Vanessa.

— Coma. Isso vai provocar o nascimento.

Ela lutou contra os maxilares, tentou virar a cabeça e sentiu o pescoço estalar. A língua forçava a colher para fora, e ela ainda controlava os lábios, para cuspir a pasta no próprio rosto.

— Não resista, vai ser melhor assim. Nós temos clérigas prontas para garantir a saúde da criança. A magia de Lena vai assegurar que seja forte, mesmo um ou dois meses cedo demais.

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Um fio de saliva e pasta verde escorreu pela garganta de Vanessa. Ela engasgou e tossiu, e seus nervos gritaram quando acabou engolindo uma parte. Reuniu forças de todo o corpo para uma cusparada forte, que enviou um jato verde sobre ela mesma. Os braços e pernas amoleceram com o esforço.

— Nathanael, por favor — disse Brenna, a líder.

O paladino surgiu de novo, o rosto de enfermeiro endurecido, e agarrou a cara de Vanessa com uma mão enorme. Forçou os dedos por entre os dentes, e com a outra mão puxou a mandíbula para baixo. Sob o feitiço e sob o paladino, Vanessa achava que seu crânio iria rachar, e a boca se abria cada vez mais. Fechou os olhos, e orou a Keenn.

“A morte não é suficiente para meus inimigos. A vida não é suficiente para mim. Eu desejo a luta e o sangue, e que nunca viva em paz. A lâmina assassina antes da morte na cama, o fogo da batalha antes do esquecimento do tempo”.

Seu pensamento explodiu em vermelho, e ela soltou um urro animalesco, distorcido pela mão do paladino. Fechou o maxilar com força, e decepou dois dedos do homem, que gritou e retirou a mão. Vanessa cuspiu os pedaços cortados, como um bicho. Seus olhos estavam injetados, rajados de sangue, e ela babava vermelho e verde.

Uma das clérigas fez menção de atender a mão ferida, mas o paladino afastou-a e foi de novo a Vanessa, dessa vez com uma curta barra de ferro. Enfiou-lhe a coisa entre os dentes, e fez alavanca para abrir-lhe a boca de novo. Vanessa, encharcada de suor, sujeira e baba, tentou morder o ferro, mas só conseguiu quebrar um dente. O paladino tremia de esforço, e usou outra mão para segurar-lhe a língua, enquanto Ludmilla despejou uma colherada farta na boca aberta. Massageou-lhe a garganta, e Vanessa não pôde evitar engolir.

— Será melhor assim — enquanto forçava outra colher da pasta verde. — Você vai ver, será melhor assim.

O pescoço fixo, os olhos vidrados nas moscas do teto, que estavam paradas, observando tudo com curiosidade.

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