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Movimento feminista e transformações da família

CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

2.8 Ahistoricidade da função paterna e nostalgia do patriarcado

3.1.1 Movimento feminista e transformações da família

As práticas sexuais, as estruturas familiares e as condições da concepção passam por transformações consideráveis nos últimos 50 anos. Os novos arranjos da sexualidade e da família, possibilitados tanto pelas mudanças históricas e morais, como pelos movimentos políticos e os avanços da medicina, levantam uma série de questões sobre as novas relações de sexo e de gênero, os lugares do homem e da mulher na sociedade e na família, a filiação, o parentesco.

Nas sociedades liberais, há a tomada de consciência cada vez mais forte do fato de que os cidadãos podem escolher livremente o estilo de família que querem ter e de que não devem ser penalizados por preferirem uniões alternativas à família heterossexual e monogâmica (DELAISI DE PARSEVAL, 1999). Esse modelo da família nuclear burguesa dá lugar a configurações bastante diferentes, mono, multi e homoparentais.

As famílias monoparentais se referem à criação da criança por um único adulto, mãe ou pai, que pode ser biológico ou adotivo. As multiparentais ou pluriparentais são configurações nas quais a criança é criada por mais de dois adultos, seja em famílias recompostas após um divórcio, seja por arranjos diversos possibilitados pela procriação artificial (duas mães e um pai, duas mães e dois pais, dois pais e uma mãe). Já as homoparentais são aquelas em que a criança é criada por pelo menos um adulto que se autodesigna homossexual. Elas podem se originar depois do rompimento de uma ligação heterossexual anterior ou a partir da adoção, do acesso à reprodução assistida ou à “barriga de aluguel” (no caso de homens gays).

Segundo Márcia Arán (2003), a base “sólida” da família nuclear ruiu e permaneceu o que ela tinha de mais frágil, as relações conjugais, que não se realizam mais segundo as suas normas. A organização pai-mãe-filho, até então naturalizada como o lugar por excelência da

constituição do sujeito, entra em crise, cujo primeiro sinal foi a queda das taxas de fecundidade em alguns países desenvolvidos a partir do pós-guerra e que acontece ainda hoje, sendo inclusive fonte de preocupação de políticas demográficas. Em seguida, vem havendo na esfera jurídica a queda do número de casamentos e, em contrapartida, o aumento do divórcio e da separação. “Um menor número de filhos e uma maior rotatividade de situações conjugais que acabam por provocar uma turbulência na noção de família como o que sustenta e organiza a sociedade” (idem, p. 401).

Desse modo, as famílias se transformam, com a multiplicação de divórcios e a impopularidade crescente do casamento, que deixa de ser o engajamento de toda uma vida e a condição para se começar a vida em casal (CADORET, 1999). Estima-se que hoje 42,5% dos casais casados se divorciam, contra 10% na década de 60 do século XX (CADORET, 2007). E segundo sociólogos da família (apud DELAISI DE PARSEVAL, 1981), tendo em vista a taxa de divórcios, a previsão é a de que uma criança em três viverá uma situação de monoparentalidade antes dos 16 anos, ou seja, será criada só pela mãe ou só pelo pai.

Também a capacitação intelectual das mulheres e sua inserção no mercado de trabalho contribuíram para o adiamento e mesmo certa desvalorização do casamento, pois elas passaram a priorizar as suas carreiras, procurando se consolidar no campo da profissão antes de se casarem e decidirem ter filhos (BIRMAN, 2007).

É parte importante dessa passagem histórica a “revolução dos costumes sexuais” ocorrida na segunda metade do século XX, sobretudo na década de 60, com Maio de 1968 em Paris, e representada principalmente pela relativização da castidade e da monogamia, a afirmação da homossexualidade como uma opção sexual legítima (TAYLOR, 2007).

Nesse contexto, o movimento feminista merece destaque, sobretudo em suas conquistas iniciais no sentido da separação entre sexualidade e reprodução, e entre erotismo e maternidade. A contracepção, com a invenção da pílula anticoncepcional, e a despenalização do aborto na década de 70 (na França) permitiram um novo controle da mulher sobre a sua atividade sexual e o seu papel na procriação. O slogan das manifestantes “Um filho se eu quiser, quando eu quiser” (“Un enfant si je veux, quand je veux”) é revelador do desejo das mulheres de controlarem a reprodução e de uma sexualidade liberada das preocupações da gravidez.

A partir de então, elas se livram de uma função quase que imposta a seus corpos, a da maternidade, podem programar suas vidas, escolher se querem ou não ter filhos, e o momento mais apropriado para isso. Passam a poder conciliar a vida profissional com a experiência da maternidade. Nas palavras de Tort (2001), a maternidade é liberada de seus elementos

patriarcais. Além da possibilidade de arbítrio sobre o próprio corpo, as mulheres passam a ter acesso a uma sexualidade não reprodutiva.

A contracepção apresenta-se, assim, no discurso de sua instauração, como uma contra-concepção. Sob muitos aspectos o desejo feminino pode identificar-se em sua subtração à procriação, no campo em que a feminilidade se separa de sua identificação forçada à maternidade, concedendo-se um tempo para experimentar-se como tal. (TORT, 2001, p. 174)

Para Birman (2007), a invenção de métodos anticoncepcionais seguros e múltiplos provocou não só a instituição da liberdade feminina em larga escala, mas também um exercício amplo, geral e irrestrito do desejo na nossa cultura. As mulheres querem se realizar como singularidades e não só enquanto mães. Além disso, com a possibilidade do divórcio, os laços conjugais também passam a estar atrelados ao desejo. Ou seja, esses laços, hétero ou homossexuais, só se mantêm se os parceiros conseguem sustentar a condição desejante na conjugalidade. A condição desejante é entendida não apenas como exercício prazeroso do erotismo entre parceiros, mas também a possibilidade que cada um oferece ao outro para a expansão de sua potência de ser e de existir.

O movimento de 1968 foi, de modo mais geral, uma revolta antiautoritária, que colocou em questão a dominação masculina e a autoridade dos pais27. Mais do que isso, que contribuiu concretamente para a modificação das relações entre os sexos e do lugar do pai da dinâmica familiar. É reflexo dessa revolta uma modificação da lei francesa, em 1970, que substituiu o termo autoridade paterna por autoridade parental, exercida em conjunto pela mãe e o pai. Segundo Tort (2001), com essa medida o direito firmou simbolicamente a saída da referência patriarcal da família.

O patriarcado28, enquanto controle da vida e da descendência exercido pelo pai, foi e ainda vem sendo desmontado pelas lutas e conquistas feministas quando elas colocam no centro dos debates as relações entre pais e filhos, sobretudo no que diz respeito à autoridade

27 A ideia de declínio do pai é antiga e o seu poder e dominação já haviam sido atacados na Revolução Francesa, em 1789, e na segunda metade do século XIX, quando a juventude escolarizada protestou contra as injustiças do trabalho e o despotismo dos chefes (TORT, 2007). Aqui, a ênfase será dada, porém, aos movimentos políticos ocorridos após a segunda guerra mundial, sobretudo a partir dos anos 60, quando o poder e a autoridade do pai foram colocados em questão com mais veemência.

28 O dicionário de psicanálise define patriarcado como um sistema político-jurídico no qual a autoridade e os direitos sobre os bens e as pessoas se concentram nas mãos do homem ocupando a posição de pai fundador (ROUDINESCO e PLON, 1998). Ou seja, patriarcado pressupõe poderes desiguais e relações hierarquizadas entre o pai e os outros membros da família. Pressupõe desse modo a dominação masculina e a subordinação da mulher, que, como vimos nos capítulos anteriores, são justificadas por um modelo anatômico da diferença sexual.

paterna, as liberdades de cada gênero, as formas de assujeitamento e de violência – sexual e simbólica – das mulheres, as normas da sexualidade e as concepções das subjetivações feminina e masculina. Nesse contexto, a articulação sustentada pela psicanálise entre complexo de Édipo e pai, assim como as particularidades (assimétricas) dos trajetos edipianos do homem e da mulher também são temas centrais das discussões levantadas pelas críticas feministas.

A questão do pai e a questão feminista são solidárias, portanto. Na década de 80, a conquista dos novos direitos à procriação medicamente assistida foi igualmente determinante para a crise do patriarcado, na medida em que favoreceu ainda mais a liberdade da mulher no exercício da sua sexualidade e da procriação. Se as conquistas feministas e médicas já haviam tornado possível uma sexualidade liberada dos imperativos da reprodução, as novas tecnologias reprodutivas liberaram a reprodução e a filiação dos imperativos da sexualidade, na medida em que elas podem ocorrer hoje sem a necessidade da relação sexual (PERELSON, 2006, 2010).

Vale lembrar que na família patriarcal o pai não era apenas pai do filho, mas governava a todos (mulheres, crianças, escravos, domésticas). Era ele inclusive quem decidia sobre a amamentação dos bebês, autorizando ou desautorizando a mulher a continuar amamentando seu filho (TORT, 2007). Desse modo, se a mulher adquire o controle da procriação e pode decidir conceber um filho sozinha, vemos que a família que aí se instaura se afasta bastante do modelo patriarcal. O pai perde o controle sobre as mulheres, as mães, a procriação, e daí sobre a educação das crianças. Novos horizontes se abrem no campo da maternidade, da paternidade e da filiação.

A nova onda de reproduções assistidas provocou, assim, uma turbulência nos nossos valores, crenças e representações sobre a filiação, além de uma reviravolta na representação da relação entre natureza e cultura (ARÁN, 2003). Pode-se mesmo falar em uma “revolução familiar” na contemporaneidade (TORT, 2007), pois o pai foi expulso de seu sacerdócio familiar e doméstico, e a concepção dos laços familiares e da sexualidade passam a depender da vontade dos indivíduos.

A partir dos anos 90, essa revolução se acentua e complexifica, a partir dos debates centrados nas formas de reconhecimento da união de casais homossexuais e no seu acesso à filiação, e nas demandas de mudança de sexo feitas pelos transexuais. Surgem polêmicas sobre as normas sexuais no quadro das estruturas da filiação e tentativas concretas de abalar e subverter a dominação da ordem heterossexual. Essas transformações dissociam quatro

elementos até então indissociáveis (CADORET, 2002): filiação, casamento, procriação e sexualidade.

Por fim, também faz parte dos debates contemporâneos uma interrogação sobre a sexualidade dos pais, especificamente sobre o tema das violências conjugais, do incesto e da pedofilia. Juntos, os movimentos antiautoritário, feminista, de minorias sexuais e de denúncia da violência paterna desmontam os elementos que compõem o pai do patriarcado (TORT, 2007): o poder, o exercício da dominação masculina, o controle da reprodução, a definição e a garantia das normas sexuais, o monopólio da atribuição da filiação e do nome, o domínio da relação entre a mãe e a criança, e o exercício da violência sexual sobre elas.

No que diz respeito à atribuição do nome, vale destacar duas mudanças ocorridas na legislação francesa, após a substituição da autoridade paterna pela autoridade parental, que aconteceu, como vimos, em 1970. A primeira foi a autorização em 1985 de que na certidão de nascimento de uma criança fosse acrescentado o sobrenome da mãe após o sobrenome do pai, até então o único passível de registro. Ainda assim, esse sobrenome materno só tinha título de uso e não podia ser transmitido pelo indivíduo posteriormente a seus filhos.

Somente em 2001 outra proposição de lei foi aprovada permitindo então aos pais darem aos filhos o sobrenome da mãe, do pai, ou os dois, e na ordem em que preferirem. Também a regra de só o pai transmitir seu sobrenome foi abolida, em nome do respeito aos princípios de igualdade entre as mulheres e os homens e do princípio da não-discriminação em função do sexo inscrita na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (TORT, 2001). Conforme veremos no capítulo 4, essas leis ainda suscitam polêmicas e críticas conservadoras por parte de psicanalistas.

A partir desses fenômenos e transformações podemos afirmar, acompanhando Arán (2009), que se configura hoje um território novo para se pensar a diferença sexual, onde fronteiras até então rígidas, como a entre homem (público) e mulher (privado), tendem a se deslocar e se reorganizar de outros modos.