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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

2.8 Ahistoricidade da função paterna e nostalgia do patriarcado

3.1.2 Movimento gay

O Stonewall, ocorrido em 28 de junho de 1969, é o marco histórico do início do movimento de emancipação dos homossexuais e de combate à homofobia (QUINET e JORGE, 2013). Ele se refere a uma resistência feroz e inesperada de clientes de um bar de travestis e drags queens em Nova Iorque, o Stonewall, à batida policial de praxe. A data 28 de junho é comemorada a cada ano como o dia internacional do orgulho LGBT (sigla que abarca lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais).

Embora já houvesse iniciativas de combate à estigmatização, criminalização e patologização dos gays desde o final do século XIX, quando surgiu um conjunto de dispositivos e de discursos (legais, médicos, psiquiátricos) inventando a categoria do homossexual, os novos grupos que se organizam a partir dos anos 70 o fazem em torno de uma identidade mais política e agressiva e de um enfrentamento social completamente diferente (SÁEZ, 2005).

O movimento gay dos anos 70 é até mesmo oposto ao que vinha sendo feito, semiclandestinamente, desde a década de 50 nos Estados Unidos, por duas associações de defesa dos homossexuais, a Mattachine Society, formada por homens, e a Daughters of Bilitis, formada por mulheres. Essas associações visavam reforçar os laços de solidariedade e de identidade coletiva entre os homossexuais, buscando a sua assimilação social, a partir de uma postura bastante conservadora. Elas não criticavam as etiquetas negativas que eram atribuídas à homossexualidade pelo discurso dominante da época (doença, anormalidade, inversão), tampouco os valores familiares, os papéis de gênero ou o sistema social homofóbico vigente. Apenas reivindicavam igualdade e aceitação social. Inclusive rejeitavam outros grupos que transgrediam as noções estabelecidas de gênero, como as drag queens e as butchs.

Já os movimentos gays que surgem nos anos 70, impulsionados pelo movimento contracultural americano da década de 60 (feminismo, hippies, nova esquerda, movimento antimilitarista) questionam justamente essas demandas de aceitação total e insistem mais sobre a diferença do que a igualdade. Afirmam a positividade da identidade gay e denunciam as instituições que medicalizam e penalizam a homossexualidade, como a psiquiatria e o direito.

O fato de os travestis terem começado a resistência contribuiu talvez para a adoção de uma linha mais escandalosa e de oposição à ordem heterossexual, e para reforçar a ideia de uma “identidade gay” não necessitando nem de modelos de respeitabilidade nem da adoção de uma estética normalizada heterossexual29. (SÁEZ, 2005, p. 20, tradução minha)

De um modo geral, os movimentos políticos dessa época se desenvolveram em torno de estratégias e categorias identitárias (o negro, a mulher, o gay, a lésbica) para melhor resistir ao status quo. Era preciso que os militantes se definissem como membros de uma minoria oprimida para suscitar mudanças sociais em larga escala (DEAN, 2006).

De fato, na década seguinte, de 80, houve um grande avanço no entendimento e “tratamento” social da homossexualidade, com sua desmedicalização e despenalização. Ou

29 Le fait que les travestis aient entamé la résistance a peut-être influé sur l’adoption d’une ligne plus scandaleuse et d’opposition à l’ordre hétérosexuel, et pour renfoncer l’idée d’une « identité gay » ne nécessitant ni modèles de respectabilité ni l’adoption d’une esthétique normalisée hétérosexuelle.

seja, a categoria de homossexualidade foi removida dos manuais internacionais de doenças e de doenças mentais, e as práticas homossexuais foram retiradas dos códigos penais de vários países, acompanhando um movimento jurídico-institucional com o objetivo de proteger os indivíduos de diversas formas de discriminação (ARÁN, 2010).

O movimento homossexual pode ser considerado um dos atores sociais mais importantes das últimas décadas do século XX (ARÁN, 2003). No final dos anos 80, com a epidemia de AIDS, em um primeiro momento os homossexuais voltaram a sofrer grande preconceito social, mas a reação organizada do movimento gay, com redes de prevenção e solidariedade às vítimas da doença, contribuiu para o seu fortalecimento e teve repercussões importantes na vida social. Além disso, a morte de homossexuais aidéticos evidenciou a fragilidade jurídica de seus parceiros, que não puderam se beneficiar de bens e herança do companheiro morto. A partir daí, surgiram então em vários países propostas para instituição do reconhecimento jurídico da união homossexual.

Desse modo, a saída da homossexualidade do código penal é seguida, com alguns anos de intervalo, de sua entrada no código civil, com o reconhecimento jurídico da união homossexual. Na França, esse reconhecimento se deu em 1999 com a aprovação do PaCS, Pacto Civil de Solidariedade (Pacte Civil de Solidarité), que permite a união de duas pessoas, de mesmo sexo ou de sexos diferentes, e estabelece entre elas certos direitos e deveres legais, mas não confere ao casal o direito à filiação. Em 2013, foi aprovado o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e, assim, a adoção de crianças por casais homossexuais passa a também ser possível, desde que casados.

Tanto o momento anterior à aprovação do PaCS como esse intervalo de mais de dez anos entre ela e a aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo foram marcados na França por muitos debates, inclusive com divulgação midiática. Como veremos no próximo capítulo, houve diante dessas novas leis uma reação bastante conservadora de alguns psicanalistas e sociólogos franceses, cuja preocupação maior diz respeito à legitimidade da filiação homossexual. Em defesa da moral familiar e de uma suposta “preservação simbólica” da sociedade, eles desempenharam uma importante resistência à aprovação de ambas as leis.

No Brasil, o primeiro projeto de “parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo” data de 1995, de autoria da então deputada federal Marta Suplicy, mas não foi aprovado na Câmara dos Deputados. Após algumas decisões judiciais em âmbito estadual permitindo a união civil entre pessoas do mesmo sexo ao longo da década de 2000, a união estável homoafetiva foi tornada juridicamente possível em todo o país em 2011. Dois anos depois, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça emitiu uma resolução que possibilita a conversão da

união estável homoafetiva em casamento e determina que os cartórios realizem casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Essa decisão não tem a mesma força que uma lei, como a de 2013 na França, e pode ser contestada por juízes.

Também em nosso país há ainda reações conservadoras em relação à união homossexual e à homoparentalidade. Um exemplo recente é o Estatuto da Família, projeto de lei criado em 2013 por um deputado da bancada evangélica, provavelmente em resposta às conquistas dos casais homossexuais, que tenta definir o que pode ser considerado família e trata dos seus direitos e das políticas públicas voltadas para atendê-la. Segundo esse estatuto, família é a união entre homem e mulher, por meio de casamento ou união estável, ou a comunidade formada por qualquer um dos pais e os filhos. Ou seja, ele exclui não só as uniões homossexuais, mas também outras alternativas de arranjos familiares. O projeto propõe ainda a criação da disciplina escolar “Educação para a família” e a celebração, em todas as escolas, do Dia Nacional de Valorização da Família.

O Estatuto da Família foi aprovado por comissão especial na Câmara dos Deputados no ano passado, com argumentos como o de que a “família natural”, “aberta à fecundidade” tal como é descrita por seus defensores, isto é, a heterossexual, que pode gerar filhos “naturalmente”, merece proteção, pois é a base da sociedade. A população, convidada a votar pela internet se concordava ou não com a definição de família do Estatuto, teve participação recorde nesse tipo de enquete: 10 milhões de votos. Ao contrário dos deputados, a votação popular não aprovou essa definição de família, embora a disputa tenha sido acirrada. Os votos contrários à proposta contabilizaram 51%, contra 48% a favor. Em oposição ao Estatuto da Família, no singular, há o Estatuto das Famílias, no plural, projeto também de 2013 em trâmite no Senado, que traz um conceito extensivo de família, visando acolher as uniões homossexuais e outros arranjos familiares contemporâneos.