• Nenhum resultado encontrado

breve nota sobre a olisipografia dos anos 30 do século XX

4. Pesadelos urbanos: egotismo, alienação e crimes perversos

4.2. Dentro do abismo de escuridão: Páscoa feliz, de José Rodrigues Miguéis

4.2.2. Multidão urbana, pânico e terror

A rotina do trabalho e o consequente marasmo interior em que o narrador se afunda provocam, em conjunto, um efeito mais para além da transgressão por via do delírio sadomasoquista. “Esmago o meu desejo” (p. 140), diz a certa altura o narrador sem uma clara referência. Parece que este esmagar do desejo, precisamente, está na base de tudo que acontece na novela. É óbvio que quando há esta tendência de subjugar por força os instintos hipertrofiados, o organismo arranca os processos de defesa ou, na linguagem freudiana, de compensação. Isto pode ocorrer, conforme Freud, em sonhos. Repare-se que a linha onírica constitui um plano bastante pronunciado na novela migueisiana, tratando-se ora de um excitante e eufórico sonhar acordado, ora de um sonhar profundo que traz pesadelos e terrores. No primeiro caso, o jovem protagonista costuma deliciar-se com várias fantasias eróticas, onanistas (“nem houve nunca corpo de mulher que pudesse galvanizar-me num espasmo tão intenso e profundo como esses que eu sonhava solitariamente, nas longas insónias da minha puberdade”, p. 41). No segundo caso, porém, os pesadelos, sobretudo se forem repetitivos, podem provocar uma profunda melancolia e depressão. Além disso, o narrador da novela migueisiana refere-se várias vezes a um estranho estado de torpor ou adormecimento cerebral semelhante ao estado de sonambulismo, o qual, com efeito, pode ser patenteado em várias histórias de desdobramento, sinalizando a presença de duplo. Esta abulia pode ser tanto um sintoma da loucura, como um efeito da rotina, ou as duas coisas em simultâneo. É como se o sujeito, em sua função de funcionário/empregado automatizado, estivesse um morto-vivo.

Ao falar sobre os aspetos degeneracionais da civilização ocidental nos textos góticos ingleses (pré)modernistas, Sue Chaplin aponta precisamente para essa afinidade entre o esgotamento, transmitido pela monotonia e rotina, e a imagem da morte, confirmando este paralelismo com o romance The Island of Dr Moreau de H.G. Wells (“Particularly nauseous were the blank, expressionless faces of people in trains and omnibuses; they seemed no more my fellow-creatures than dead bodies would be, so that I did not dare to travel unless I was

151 assured of being alone” [H. G. Wells apud Chaplin, 2011, p. 113]) e com The Waste Land de Eliot (“A crowd flowed over London Bridge, so many/ I had not thought death had undone so many”, Eliot apud Chaplin, 2011, p. 113). Não há, na novela migueisiana, nenhuma alusão tão explícita ao aspeto mortífero do povo urbano automatizado mas, apesar disso, as referências a uma multidão anónima e automatizada vai ao encontro desta sugestão: “Fico de novo entre os prédios indiferentes, inexpugnáveis, e a gente que passa. São horas de recolher a casa. Vultos escuros, apressados, e um rumor de passos batendo o chão confusamente.” (p. 140). Repare-se que o elemento humano está aqui reduzido a um som despersonalizado de passos apressados no chão, exprimindo a completa alienação e indiferença ao ambiente circundante. Esta indiferença é, por conseguinte, metonimizada pelos prédios, também indiferentes como os vultos que ao lado deles passam. É óbvio que nesta imagem do espaço urbano repercutem-se os pesadelos noturnos do narrador migueisiano que traduzem um semelhante pavor e, simultaneamente, uma terrível atração pela morte.

O narrador tem três pesadelos seguidos. No primeiro predomina a imagem de uma cidade distópica, deserta, muito semelhante à paisagem noturna parisiense no conto “La nuit. Cauchemar” (Clair de lune, 1888) de Guy de Maupassant. Neste conto, Maupassant apresenta um narrador que, depois de passar por uma Paris completamente deserta, não aguenta o terror que o domina, suicidando-se no rio. Miguéis aborda a mesma questão, só com a diferença de o “eu” do pesadelo entrar numa casa, igualmente deserta, fria e escura e, dentro desta, num compartimento fechado que corresponde a um cofre. Quando pretende sair, no entanto, não consegue. Fica fechado vivo dentro do cofre como num caixão, a sufocar.

No segundo pesadelo, o narrador encontra-se num cais, novamente deserto, e embarca num navio. Tendo em conta as suas fantasias adolescentes, o motivo do mar/navio deveria significar a satisfação, realização de um desejo. Mas não é assim. Trata-se de um “barco-fantasma”, também deserto. O motivo da sufocação já é anticipado pela referência ao ar (“O ar sufoca”, p. 102). A seguir, o barco transforma-se em um bote que, mais uma vez, se assemelha a um caixão. O bote naufraga, o sujeito é acometido pelo terror de ser dilacerado pelos corvos. Atmosfera marítima, noturna, é delineada em tons sombrios e espetrais (“No fundo nocturno, a brancura espectral e sinistra da rebentação desenrola-se, agitada, pela costa fora, como uma mortalha ululante”, p. 103).

No terceiro pesadelo, o “eu” caminha ao longo duma larga rua, numa atmosfera primaveril e deliciosa que faz lembrar o Brasil para onde o patrão se retirou. Mesmo dentro do sonho, o sujeito sente-se desdobrado: “Procuro ver-me eu-próprio-um-outro” (p. 107). Esta situação evoca o já mencionado conto “Eu-próprio o Outro” de Mário de Sá-Carneiro e, assim,

152 se confirma o paralelo já anteriormente estabelecido entre a novela migueisiana e a prosa carneiriana. A seguir, porém, o sujeito depara-se com uma procissão fúnebre, silenciosa e fantasmagórica (“Dir-se-ia que roço e traspasso fantasmas”, p. 108) e averigua, após olhar para dentro do caixão, que o morto é ele próprio. Mas sabendo-se morto, debate-se com a questão de quem é se, de facto, continua vivo (“Se aquele sou eu .. Sou eu, então, outro?, p. 109). Mesmo sendo evidente que se trata da lógica de sonho, o problema fica claro para o narrador e para o leitor. O eu-passado, o empregado pontual e marido cumpridor, é definitivamente morto e, em seu lugar, domina um novo eu, subversivo e detrator de convenções sociais. A mesma problemática, com efeito, aparece também noutras prosas de José Rodrigues Miguéis, como é por exemplo o conto “O lodo” (Passos confusos, 1982) em que o narrador passa primeiro por uma cidade anónima e a seguir atravessa um leito de um rio, composto de lodo. Aqui, o “eu” do narrador luta com uma criança-vampiro que simboliza o seu eu-passado. Mas enquanto este conto traz à cena o trauma do emigrante, a novela Páscoa feliz parece apontar para as sensações de um homem alienado, ou mesmo aniquilado, por força do trabalho e vida rotineira.

Todos os três pesadelos convergem na sensação de uma angústia atroz, experimentada pelo sujeito ao ser, de facto, enterrado vivo. Trata-se de um motivo que pertence ao imaginário predileto da literatura de terror, pelo menos desde o século XVIII, sendo aproveitado, no que diz respeito à literatura portuguesa, na prosa de Raul Brandão, Domingos Monteiro ou Agostinho da Silva (cf. Špánková, 2020). A inclusão deste motivo na novela migueisiana sublinha a verdadeira atmosfera de terror (com os tropos “góticos”), que se alia muito bem à história de duplicidade, crime, alienação psíquica e transgressão de convenções sociais. Além disso, o motivo do enterrado vivo não deve ser percebido como um elemento sensacional supérfluo, mas antes deve ser lido como um componente significativo da problemática tratada em toda a novela e que corresponde, em toda a sua extensão, à crise do homem moderno. O empregado obediente e humilde, que nunca levanta a voz para discutir o que quer que seja, pode sentir-se, de facto, como um enterrado vivo, à imagem do eu do pesadelo: “Sinto que estou realmente no esquife, eu, morto e só! (...) Estou morto. (...) Um terror sem limites. Que escuridão horrível! (...) Tenho a rigidez dos mortos.” (p. 110). Estas imagens provocam a sensação insólita de não existir uma clara e definidora fronteira entre a vida e a morte. Também os mortos (verdadeiramente mortos) podem, com efeito, assumir um aspeto de um vivo, desde que haja alguém com a sensibilidade recetiva deste fenómeno. É o caso dos espetros, imagens fantasmáticas criadas pelo cérebro suficientemente perturbado ao ponto de justapor a fatualidade e fantasia numa nova realidade eminentemente subjetiva. Nas conceções modernas, a noção da espetralidade baseia-se em especial nos postulados de hauntology de Derrida (1994),

153 cuja caraterística primordial corresponde, precisamente, à desestabilização ontológica, Julian Wolfreys resume: “Strictly speaking, that which is spectral is neither living nor dead; it is, moreover, neither simply a presence nor an absence; it crosses and recrosses such binary loci” (Wolfreys, 2016, p. 638). Na novela migueisiana há um tipo de espetralidade que poderia ser classificado como “aparição”. Trata-se de visões de pessoas próximas, familiares, enquanto mortas. A primeira visão corresponde ao pai morto:

Meu pai! Vejo-o morto – onde isso vai! – com as mãos lívidas e magras enclavinhadas numa cruz de madeira, e o lenço manchado de sangue atado na cabeça... Apavora-me a visão que julgava extinta.” (p. 98)

Este tipo de aparição, mesmo que assombrosa, é mais próxima da lembrança traumática, uma vez que o pai do narrador realmente morreu, por afogamento, quando este era ainda criança. Mas há outra visão muito mais perturbadora que se relaciona com o filho, imaginado como morto: “Como tudo é branco! O sorriso dele é branco... Flores? Não, não! Flores não! (...) Tens as mãos tão frias...” (p. 144). As duas visões compartilham a isotopia fúnebre, justapondo-se assim ao pesadelo do narrador. Ademais, o narrador fica deveras assombrado pela visão do seu filho, quando este lhe começa a aparecer por todo o lado: “Por toda a parte ele me aparece, sufocado, com as mãozinhas estendidas para mim” (p. 91). Aparições, conforme Mackenzie Bartlett, expõem a psique àquilo que a assombra: morte, o passado, o eu inconsciente (cf. Bartlett, 2016, p. 36). O mesmo é válido para a novela de Rodrigues Miguéis: todos os pesadelos e aparições corroboram a perceção de que Renato, afinal, não faz outra coisa senão imaginar e desejar a morte, por ser traumatizado pelo seu passado (na infância e na idade adulta antes do desdobramento) e por ser assombrado pelos seus impulsos ocultos do inconsciente, sadomasoquistas.

As visões fantasmáticas correspondem à mesma isotopia: o pai morreu sufocado por afogamento, o filho é imaginado como sufocado. Em todos os pesadelos, a sensação de aprisionamento (no cofre-caixão, no bote-caixão e no próprio caixão) também provoca a sufocação. É óbvio que se trata de imagens que exprimem os traumas do narrador, a sua incapacidade de se livrar dos espetros do passado e das suas pulsões inconscientes. Mas não é só o trabalho que asfixia o narrador pela rotina, também a casa, o matrimónio e tudo que exprime um quotidiano regular e monótono provoca as mesmas sensações de aperto. Enfim, até o corpo da esposa sinaliza ao narrador que o seu passado está morto (“Na urna branca do seu corpo – impossível tocá-lo! – olho o meu passado morto, sem remédio, inatingível.”, p. 97) e que os seus sonhos de infância e adolescência fracassaram (“O meu desejo de partir tornava-se

154 doloroso sob a consciência duma inacção que me impedia de sonhar aventuras e viagens, como outrora, na adolescência”, p. 47). Por conseguinte, estas pulsões do inconsciente relacionam-se estritamente com o espaço urbano em forma de um espelhamento recíproco, porque é sempre nalgum espaço sentido como aprisionador (o quarto, a rua, a cidade) que o narrador fica assaltado pelas visões (“Isto não é nada, é o pesadelo que me assedia de novo em plena rua, o terror que me volta, mascarado na ilusão.” p. 145)150 e porque o próprio espaço físico (geográfico e cósmico) provoca a mesma sufocação (“A noite asfixia, extingue as luzes...”, p. 145).